No Conjur
Guerra jurídica
“Modelo de processo baseado em delações impede o verdadeiro combate à corrupção”
15 de dezembro de 2019, 7h19
Por Pedro Canário, Maurício Cardoso, Rafa Santos e Emerson Voltare
Para tentar se livrar de uma condenação pesada, um empresário acusado de fazer doações secretas a políticos decidiu fazer acordo com seus acusadores. Em troca de ficar menos tempo preso, o empresário confessou que havia reformado uma casa para um político importante.
Parece uma descrição das denúncias da “lava jato” que atingiram o ex-presidente Lula. Mas aconteceu em 2006, nos Estados Unidos. O então dono e presidente da empresa do setor de petróleo Veco, Bill Allen, disse ao FBI ter bancado a reforma de um chalé do senador republicano Ted Stevens. Dois anos depois, foi descoberto que os procuradores do caso fraudaram documentos e impediram a defesa do senador de ter acesso a provas que o beneficiariam.
O caso foi anulado em 2010, mas o objetivo foi conseguido: Stevens, um dos principais líderes do Partido Republicano, não conseguiu se reeleger, desequilibrando as forças políticas no Congresso na época da votação do Medicare for All, o programa de saúde público lançado pelo governo Barack Obama.
Não é coincidência que os casos de Ted Stevens e Lula sejam parecidos, diz o advogado Cristiano Zanin Martins, que defende o ex-presidente na “lava jato”. Na análise dele, são capítulos da mesma história. Zanin acaba de lançar, junto com os advogados Valeska Teixeira Martins e Rafael Valim o livro Lawfare: uma introdução, em que conceitua esse tipo de processo judicial carregado de contexto político e misturado com objetivos geopolíticos.
De acordo com os autores, lawfare, que é traduzido em círculos militares como guerra jurídica, “é o uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar o inimigo”. Lula não é o primeiro nem o único caso de vítima de lawfare no mundo, mas é o mais recente, diz Zanin, em entrevista exclusiva à ConJur.
A “lava jato”, analisa o advogado, é uma ferramenta de lawfare, e não meramente um processo penal. Na verdade, diz ele, o método de trabalho dos procuradores de Curitiba “impede o real combate à corrupção”.
Para Zanin, o modelo de força-tarefa alimentado por delações premiadas não serve à realização de justiça ou descoberta da verdade. Serve para “botar narrativas de pé”. “Os acordos são assinados para confirmar as teses acusatórias, e não para revelar o que aconteceu e mostrar o caminho para se chegar aos responsáveis”, afirma o advogado.
Cristiano Zanin Martins é, junto com a advogada Valeska Teixeira, advogado de Lula desde o início da “lava jato”. É formado em Direito pela PUC de São Paulo com especialização em Processo Civil e membro da International Bar Association (IBA).
Leia a entrevista:
ConJur —- O livro defende a tese de que as acusações que pesam contra o ex-presidente Lula são um caso de lawfare, é isso?
Cristiano Zanin Martins —- Na verdade, o livro é conceitual. É uma introdução ao debate sobre o tema e contamos alguns casos de como o lawfare acontece. O caso Lula é um deles. Também contamos o caso da Siemens, que sofreu diversos processos, com base na FCPA [lei de corrupção internacional dos EUA], em reação a uma relação comercial com o Irã, furando o embargo comercial dos Estados Unidos. Outro caso é o do ex-senador republicano Ted Stevens. Ele seria um voto decisivo numa votação importante no Congresso dos EUA [a aprovação do plano de saúde público Medicare for All, conhecido como Obamacare] e passou a ser alvo de diversas acusações e investigações, tudo sem materialidade, mas que conseguiram impedi-lo de participar as eleições e de ser reeleito, desequilibrando o jogo. Esse caso é muito parecido com o do presidente Lula.
ConJur —- Por quê?
Cristiano Zanin Martins —- A acusação é de que ele teria recebido propina por meio da reforma de um chalé no Alasca e essa propina viria de uma empresa do ramo de petróleo e gás. O script é exatamente o mesmo. O que a gente conta no livro é que o lawfare não é um fenômeno que atinge apenas a política ou apenas o campo da esquerda. O caos da Siemens é um lawfare com fins comerciais. Ted Stevens era um senador do Partido Republicano [o senador morreu em 2010, num acidente de avião].
ConJur —- E todos os casos têm a ver com os EUA?
Cristiano Zanin Martins —- Sempre os EUA e sempre o mesmo grupo de procuradores do Departamento de Justiça. Que é o mesmo grupo que atuou na “lava jato”.
ConJur —- E sempre por meio da FCPA?
Cristiano Zanin Martins —- O conceito que a gente propõe de lawfare é o do uso estratégico do Direito para fins de perseguição política, mas também para fins geopolíticos, militares e comerciais. A gente parte de conceitos da guerra convencional, em que primeiro acontece a escolha do campo de batalha — no lawfare, da jurisdição mais favorável —, a escolha das armas — no lawfare, são as leis, a propaganda — e as externalidades.
ConJur —- O que são externalidades?
Cristiano Zanin Martins —- São os meios para viabilizar essa guerra jurídica para que ela se torne aceitável perante a população e a opinião pública. Para isso, sobretudo, é usada a imprensa para viabilizar outras táticas também, incluindo as operações psicológicas.
ConJur —- No caso Lula, a jurisdição favorável seria o Paraná?
Cristiano Zanin Martins —- Sim. Alguns autores participaram de seminários e congressos patrocinados pelo governo americano.
ConJur —- Toda vez que vocês falam nisso, são acusados de teoria da conspiração.
Cristiano Zanin Martins —- A participação dos americanos na “lava jato” não é teoria da conspiração. Provamos nos processos que procuradores norte-americanos prestaram ajuda para a construção do caso e para a viabilizar uma condenação — totalmente descabida, como se vê. Isso está gravado em vídeo, procuradores norte-americanos reconhecendo publicamente em uma audiência, que tinha a participação do ex-PGR Rodrigo Janot, que eles haviam participado da construção do caso e da viabilização da sentença condenatória. E aí, num momento, falam: “Fizemos isso informalmente, diante das relações que temos com as autoridades brasileiras”. Ocorre que existe um tratado dos EUA com o Brasil para disciplinar a cooperação em matéria penal [MLat], que foi totalmente desrespeitado.
ConJur —- E o caso do ex-presidente Lula se encaixa em qual categoria de lawfare?
Cristiano Zanin Martins —- Nossa interpretação é que usaram de maneira perversa das leis e dos procedimentos jurídicos para fins de uma perseguição política e geopolítica.
ConJur —- Mas o objetivo ali era Lula ou a Petrobras?
Cristiano Zanin Martins —- Os dois. Existe uma entrevista muito interessante do Julian Assange [fundador do Wikileaks] ao jornalista Fernando Morais em que ele diz que os EUA viam o Brasil de duas formas: Petrobras e militares. Então a Petrobras foi colocada no olho do furacão não por uma investigação, ou aleatoriamente, mas de caso pensado. A Petrobras tem uma importância geopolítica enorme e estratégica. É preciso lembrar que imediatamente antes da “lava jato” foi revelada a espionagem dos EUA no Brasil tendo como alvo também a Petrobras. Não se pode olhar para a “lava jato” sem verificar essa espionagem.
ConJur —- Mas o fato é que houve corrupção na Petrobras.
Cristiano Zanin Martins —- Sim, havia ali um foco de corrupção em alguns diretores e alguns gerentes. Só que isso foi transformado em propaganda para viabilizar esse uso perverso das leis e procedimentos jurídicos contra alvos pré-estabelecidos. O problema foi transformar esses casos de corrupção numa causa nacional que pudesse viabilizar essa perseguição a algumas pessoas e algumas instituições.
ConJur —- Agora, existe um argumento poderoso contra essa tese: se for verdade que o consórcio de Curitiba está num conluio com os EUA para desmoralizar o PT, o ex-presidente Lula e depenar a Petrobras, como dizer isso também do STJ e do Supremo?
Cristiano Zanin Martins —- De um lado há as pessoas que praticaram o lawfare conscientemente, mas de outro há as que foram iludidas por aquilo que chega até elas por meio, sobretudo, da imprensa. No caso do ex-presidente Lula, toda a fase da instrução foi conduzida de maneira absolutamente parcial pelo ex-juiz Sergio Moro. Ou seja, todo o conteúdo do processo foi conduzido pelo Moro, que não permitiu que fossem feitas provas da defesa e conduziu de forma enviesada a produção de provas pela investigação para que prevalecesse a tese acusatória. Esse foi o pacote que chegou aos tribunais superiores e a partir dele é que fizeram a análise jurídica dos fatos, confirmando as decisões do ex-juiz Sergio Moro, que foram produzidas nesse ambiente de parcialidade.
ConJur —- E o Ministério Público, onde se encaixa nessa história?
Cristiano Zanin Martins —- Não tenho a menor dúvida de que o MPF de Curitiba estava plenamente consciente do que estava acontecendo e foi um ator importante de lawfare. A denúncia do Power Point é peça fundamental nessa história, é uma peça de propaganda para iludir a população e fazê-la acreditar que havia um grande esquema e que o ex-presidente Lula seria o que eles chamam de “maestro” desse esquema. Aquilo não foi feito de maneira despropositada. O conteúdo foi totalmente deturpado. Tanto é que conseguimos, na Justiça Federal em Brasília, o arquivamento do inquérito do quadrilhão, que era o eixo central dessa tese da “lava jato”.
ConJur —- Mas o que o Power Point tem a ver com lawfare?
Cristiano Zanin Martins —- Ele tem uma linguagem totalmente norte-americana. Fala em “propinocracia”, que é um departamento que existe dentro do Departamento de Justiça dos EUA [o departamento, ligado à seção de combate a crimes financeiros, se chama Kleptocracy]. Não é coincidência que o Power Point se refira a esse termo. Se você pegar isso e o vídeo em que os procuradores americanos admitiram ajuda plena, mas informal, aos procuradores da “lava jato”, você chega à origem de tudo isso.
ConJur —- E isso tudo seria causa de nulidade das condenações, ou dos processos? Qual seria a consequência concreta dessa análise?
Cristiano Zanin Martins —- Colocamos inúmeros argumentos para demonstrar a nulidade dos processos e essa ajuda informal foi um deles. Ela não tem respaldo no ordenamento jurídico e deveria ser vista como causa de absoluta nulidade de todos os processos.
ConJur —- Agora, foram os governos petistas que transformaram as operações policiais em espetáculos midiáticos.
Cristiano Zanin Martins —- Não posso fazer a defesa disso porque não sou filiado ao PT e nunca participei dos governos petistas. Este ano completo 20 anos de advocacia e tenho muito orgulho de fazer a defesa do ex-presidente Lula. Mas não é uma posição política. É uma atuação profissional associada, claro, a uma admiração pessoal ao presidente Lula. Mas não tenho filiação partidária e nem participei dos governos dele.
ConJur —- Houve inclusive uma pressão forte no PT para que vocês fossem substituídos no caso, para que Lula contratasse um medalhão da advocacia criminal e coisas do tipo. Isso atrapalhou a defesa?
Cristiano Zanin Martins —- Claro que ao longo desses quatro ou cinco anos passei alguns dissabores por ocupar essa posição na defesa do ex-presidente. Mas houve uma avaliação correta da nossa parte que não se tratava de procedimentos criminais normais ou de investigações normais. Estavam ali pelo menos desde 2015 gestando um ataque assimétrico do sistema de Justiça contra o ex-presidente Lula para inviabilizá-lo politicamente e neutralizar a posição importante que ele sempre ocupou no país e no cenário internacional. O tempo mostrou que nossa avaliação foi correta, mas algumas pessoas, acredito até que pessoas próximas ao ex-presidente, não fizeram a mesma avaliação e subestimaram o que viria, que já havia uma condenação pré-estabelecida. Hoje não é possível que alguém genuinamente tenha dúvidas de que esse processo foi absolutamente ilegítimo, sem diferença entre acusador e juiz, com objetivo politico e geopolítico claro.
ConJur —- Agora, uma pergunta que fica é: a troco do quê todos os procuradores e parte do Judiciário fizeram isso? Por que se submeteram a esse plano do Departamento de Justiça dos EUA? O que ganharam com isso tudo?
Cristiano Zanin Martins —- Não sei, não tenho essa resposta. O que posso constatar é que eles causaram um dano de elevadas proporções ao sistema de Justiça brasileiro e que eles efetivamente aderiram a uma atuação dos EUA. Isso está comprovado. Inclusive o material do Vaza Jato mostra um arquivo do Deltan que era uma lista de tarefas e uma delas era procurar empresas que pudessem fazer acordo com os EUA. Foi uma espécie de agenciamento do governo americano.
ConJur —- E como acha que vai ser a recepção desse material da Vaza Jato vai ser recebido no Judiciário? Ainda há certa resistência, não?
Cristiano Zanin Martins —- Isso ainda está em processo de amadurecimento no Judiciário. Temos alguns pedidos específicos para que essas mensagens sejam levadas em consideração. Esse material está na posse do Estado brasileiro, seja na secretaria da 10ª Vara Federal de Brasília, seja no Supremo Tribunal Federal, e se isso pode comprovar as teses defensivas, meu entendimento é que nos deve ser dado acesso a ele. Mas não é só a Vaza Jato. O próprio livro do Janot tem um capítulo inteiro dedicado a Lula em que o ex-presidente é descrito como uma obsessão da “lava jato”. Todas essas coisas reforçam o que sempre dissemos.
ConJur —- Uma coisa que se percebe em todos os casos é uma retórica muito forte dos juízes. Tanto no caso do Guarujá quanto no caso do sítio de Atibaia, os desembargadores fizeram discursos duros sobre como a corrupção é um mal maior e como o ex-presidente Lula era o chefe de uma poderosa organização criminosa que prejudicou o país por muitos anos. Mas o que se discutia era a posse ou propriedade de dois imóveis.
Cristiano Zanin Martins —- Na verdade, eles não precisam provar nada, tudo tem um script já traçado. Tudo foi feito com base numa tese do procurador Deltan Dallagnol que ele chamou de “explanacionismo”. Segundo essa tese, não é necessário provar, basta argumentar. A tese defende que, se não houve uma explicação melhor para a hipótese da acusação, a hipótese da acusação deve ser tida como verdadeira. E se o réu não der uma explicação convincente sobre as teses acusatórias, ele pode ser condenado. O que se tem, então, é uma transferência do ônus da prova para o réu.
ConJur —- Uma análise já comum sobre a “lava jato” é que aquelas leis de 2013, a da Organização Criminosa e a que previu a responsabilização de empresas foram os principais pilares da operação. Essas leis são incluídas na sua tese de lawfare também? Elas são anteriores à “lava jato” e às revelações do Snowden.
Cristiano Zanin Martins —- Essas leis têm origem na pressão feita pela OCDE sobre diversos países. A Lei 12.850, que tipifica a organização criminosa, prevê instrumentos muito agressivos que são um prato cheio para a prática de lawfare.
ConJur —- Mas essa instrumentalização do Direito, para usar uma expressão muito usada pelo Lenio Streck, não é uma novidade da “lava jato”.
Cristiano Zanin Martins —- É, o uso do Direito como instrumento de perseguição é bastante antigo. Mas na lawfare existem outros instrumentos que viabilizam a prática, a normalização dessa instrumentalização, que é inaceitável. Se houver esse uso do Direito como instrumento em grande escala, seria barrado à medida que os tribunais tomassem conhecimento do uso indevido. Com lawfare, outras táticas são desenvolvidas para impedir que os tribunais percebam isso de pronto.
ConJur — Outro dos pilares da “lava jato” é a delação premiada, mas parece que elas andam em baixa. Isso mostra a fragilidade do modelo?
Cristiano Zanin Martins — As fragilidades são inúmeras. Primeiro porque, na “lava jato”, ficou mais do que claro que o MPF em Curitiba conduziu os processos de delação para que eles se referissem ao ex-presidente Lula, como se fosse uma condição para o acordo. E pior: parece que houve uma combinação ali para não formalizar o acordo para não parecer que foi algo encomendado. Isso ficou evidente no caso do Leo Pinheiro. Ele estava o tempo todo em negociação com os procuradores e mudou a posição processual dele para acusar o ex-presidente Lula, mas a formalização dos acordos só aconteceu mais tarde.
ConJur — E essa é a principal base para as acusações contra o ex-presidente.
Cristiano Zanin Martins — O MPF ignora o parágrafo 16 do artigo 4º, que diz que ninguém pode ser condenado com base exclusivamente em delações. A própria lei estabelece uma presunção de que o delator mente, mas inúmeras sentenças da “lava jato” partem de depoimentos de delatores. Isso só mostra que esse modelo de delações impede o verdadeiro combate à corrupção.
ConJur — Como assim?
Cristiano Zanin Martins — São assinados acordos para botar narrativas de pé, não para combater a corrupção. O Ministério Público chega com uma série de acusações e oferece um acordo que vai te livrar da prisão ou te permitir ficar com uma parte do dinheiro que a acusação diz que foi desviado. Mas o fato de o delator ter confirmado não quer dizer que tudo aquilo seja verdade. Os depoimentos dele foram dados na expectativa de uma contrapartida, e não no interesse da realização de justiça Na verdade eles estão confirmando teses acusatórias, e não revelando o que aconteceu “nas sombras do poder”, como diz o Moro.
ConJur —- Boa parte dos donos do dinheiro no país aceitaram sem problemas as teses da “lava jato”. Exemplo disso são as palestras muito bem remuneradas do Deltan, o financiamento de estratégias de marketing para ajudar os procuradores a divulgar a mensagem da “lava jato”.
Cristiano Zanin Martins —- Muitos foram iludidos por essa propaganda da “lava jato”. Mas o lawfare aplicado aqui no Brasil levou o país a um caos jurídico e a um caos econômico. E muitas dessas pessoas já se deram conta de que subverter o Estado de Direito tem consequências muito graves e incontroláveis para o país. Tanto para o Direito quanto para a Economia e para tudo o que for essencial.
ConJur —- Não parece que a “lava jato” tenha ficado impopular.
Cristiano Zanin Martins —- Tenho sido abordado, principalmente em aeroportos, por pessoas falando “olha, eu vi você lá em 2016 criticando a ‘lava jato’ e sempre achei que fosse uma coisa meio sem lastro, pra defender o seu cliente. Mas hoje a conta chegou para mim, para minha empresa, meus funcionários”. Um deles me disse que era fornecedor de uma empreiteira que foi atingida pela “lava jato” e teve de demitir milhares de funcionários e hoje tem 20 empregados apenas para fazer a gestão patrimonial, porque a atividade produtiva acabou. Esse efeito cascata na economia tem levado as pessoas, especialmente os empresários, a perceber que a conta dessa irresponsabilidade chegou até eles também. Talvez hoje tenham uma visão diferente do processo.
ConJur — Uma das alegações da suspeição de Moro e dos procuradores se baseia no grampo ao escritório. Isso deu em alguma coisa?
Cristiano Zanin Martins — Nada. Ninguém foi punido, sequer investigado. O ramal principal do nosso escritório foi grampeado durante 23 dias. Durante 23 dias todos os 25 advogados do escritório foram monitorados e as estratégias da defesa foram antecipadas, justamente num período fundamental para a definição da competência da “lava jato”, se o caso ficaria em Curitiba ou em São Paulo, com o MP estadual.
ConJur — Esses grampos foram usados nos processos?
Cristiano Zanin Martins — Toda a nossa estratégia e nossas ações foram monitoradas em tempo real pelos órgãos de persecução de Curitiba, que tentavam a qualquer custo neutralizar nossas estratégias. Essas informações foram usadas, sim. Foram depositadas na 13ª Vara Federal de Curitiba planilhas com resumos das nossas conversas e a indicação sobre se aquilo era relevante para eles ou não. Como se pode aceitar uma violência jurídica dessas?! Mas, lamentavelmente, isso aconteceu e, até hoje, não teve nenhuma consequência.
ConJur — Houve outras ilegalidades, como a busca de provas pelo MPF na Suíça ou aquele contato direto da Polícia Federal com a fabricante do BlackBerry no Canadá. Nada disso teve consequência também?
Cristiano Zanin Martins — Nada. E tudo isso está no processo. É incrível. Recentemente fizemos uma perícia que levantou todas essas ilegalidades, inclusive a manipulação nos sistemas da Odebrecht que estão sendo usados para instruir ações penais. Tudo isso está devidamente comprovado nos autos. Mas impressiona a criatividade para tentar mascarar todos esses dados, que seriam suficientes para fulminar de nulidade todos esses processos.
ConJur — Voltando ao lawfare, o que acontece depois? Qual a consequência de se reconhecer que determinada situação ou uma acusação, enfim, faz parte de uma estratégia de lawfare? Qual é o passo seguinte?
Cristiano Zanin Martins — Olha, não sou um pessimista. O ex-presidente Lula já foi absolvido em dois casos que não estavam em Curitiba, e foram absolvições sumárias, antes mesmo da instrução. No último caso, do quadrilhão, o próprio juiz reconheceu que ali se estava tentando criminalizar a atividade política. O outro caso foi o baseado na delação do Delcídio. Foi feito um grande escarcéu com essa delação e depois ficou comprovado que era tudo mentira. Tanto é que o MPF foi quem pediu a absolvição do presidente Lula e não houve recurso depois da sentença. Então, veja: quando você se depara com a atuação correta do sistema de Justiça, você consegue o reconhecimento de que esses processos são absurdos. Já há até membros do MPF dizendo que as acusações são absurdas. E é importante lembrar que esse processo do quadrilhão é o eixo central da “lava jato”.
ConJur — Uma das frentes da defesa do ex-presidente é acesso às informações do processo da Petrobras nos EUA. Por quê?
Cristiano Zanin Martins — Primeiro porque a Petrobras assumiu posições inconciliáveis no Brasil e nos EUA. Aqui ela se diz vítima e atua como assistente da acusação nas ações da “lava jato” em Curitiba, inclusive em relação ao ex-presidente Lula. Nos EUA, a Petrobras se declarou culpada e apresentou às autoridades americanas um relato detalhado dos supostos ilícitos que ocorreram na empresa. E não há nesse relato qualquer referência ao ex-presidente Lula.
O segundo motivo é que sempre pedimos, aqui no Brasil, acesso a todos esses documentos apresentados, com os contratos que as denúncias apontam contra o ex-presidente Lula, e houve uma resistência enorme à apresentação desses documentos.
Enquanto a Petrobras nos EUA preparou um arquivo detalhado e especifico para entregar às autoridades e gastou uma quantia expressiva para fazer essa compilação, aqui ela nega acesso a esses documentos. O que a gente quer também é mostrar que essa negativa de acesso aos documentos faz parte de uma lógica de acusar com base meramente em retórica.
ConJur — E por que não dão acesso?
Cristiano Zanin Martins — Porque com essa documentação facilmente comprovaríamos que nenhum valor da Petrobras ou desses contratos foi direcionado ao ex-presidente Lula.
ConJur — Mas o que a acusação diz não é que o dinheiro foi para o PT e o sistema político?
Cristiano Zanin Martins — Nas denúncias contra o ex-presidente Lula eles enumeram alguns contratos e dizem que os valores deles foram usados para pagar vantagens indevidas contra o ex-presidente. Só que eles nunca fizeram a prova disso – porque isso nunca ocorreu.
ConJur — O próprio Moro já reconheceu que não existe dinheiro da Petrobras nos casos de Lula, não?
Cristiano Zanin Martins — Não sei se num ato falho, ele reconheceu que não foram identificados valores da Petrobras destinados ao ex-presidente Lula. Se não tem nenhum valor da Petrobras destinado a Lula, então por que essas ações estão em Curitiba? E se a espinha dorsal da operação foi afastada pelo principal juiz do caso, isso mostra a falta de consistência das acusações.
ConJur — Vocês já pediram perícia nesses contratos e o Moro negou, não foi?
Cristiano Zanin Martins — Ele negou várias perícias. Na verdade, na “lava jato” nunca foi feita nenhuma perícia para comprovar que qualquer valor da Petrobras foi destinado a qualquer dos acusados. Eles sempre partiram da premissa de que essa era uma realidade, o que é inaceitável. Como se pode ter uma acusação de crime financeiro sem perícia para demonstrar o caminho do dinheiro? A lógica do follow the money [siga o dinheiro] é inerente a qualquer processo sobre crime financeiro, menos na “lava jato”. Esse é um dos argumentos sobre a nulidade dos processos: o artigo 158 do Código de Processo Penal exige a perícia nessas situações.
ConJur — Um dos pilares da “lava jato” é o modelo de força-tarefa, que também é uma fonte de críticas ao trabalho dos procuradores. O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, diz que o modelo é inconstitucional, porque aproxima demais investigadores, acusadores e, pior, o juiz. Mas o grande argumento contra os críticos é a efetividade das forças-tarefa. Sem a da “lava jato”, por exemplo, a corrupção na Petrobras não teria sido descoberta.
Cristiano Zanin Martins — Não dá para justificar violações de garantias fundamentais a partir de um eventual resultado. Seria dizer que os fins justificam os meios. Entre as garantias fundamentais, estão o do promotor natural e o do juiz natural. Não se pode escolher o promotor que vai tocar um caso, muito menos o juiz. E o modelo de força-tarefa é uma clara violação a essas garantias fundamentais. E não há dúvida de que esse modelo impede a realização de justiça, porque se monta um grupo e uma propaganda para justificar sua existência. E é impossível garantir a presunção de inocência com o trabalho da força-tarefa, porque se você entra no radar dela, já significa uma culpa selada, é como se fosse uma cruzada. Você, investigado, entra numa cruzada contra um grupo de autoridades que vai defender suas ações a qualquer preço.
Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
Maurício Cardoso é diretor de redação da revista Consultor Jurídico
Rafa Santos é repórter da revista Consultor Jurídico.
Emerson Voltare é editor da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 2019, 7h19