Causou alvoroço a declaração de Paulo Guedes, ministro da Economia, no sentido de que não devemos nos assustar caso alguém peça o AI-5. Apesar do pedido do ministro, é difícil não tomar um susto quando se ameaça implantar uma legislação nos moldes da que autorizou o fechamento do Congresso Nacional e das Assembleias Estaduais, a censura prévia, a suspensão do habeas corpus e de outras garantias constitucionais, dentre outras coisas, bem, assustadoras.
A não ser que Guedes estivesse pensando na história da humanidade, a qual é recheada de episódios brutais de autoritarismo. Sob este prisma, realmente, não há com o que se assustar: o autoritarismo nas sociedades governadas por seres humanos é a regra.
Em uma série de conferências realizadas no Brasil em 1973, quando o AI-5 estava em pleno vigor, Michel Foucault discorreu sobre “a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras”. No sistema feudal, por exemplo, o julgamento era regulamentado pelo sistema da prova, mas não da prova da verdade. O que se buscava provar era o peso, a importância, a força de quem reivindicava algo ou acusava alguém. Um dos tipos de prova era a corporal, chamada de ordálio. O ordálio da água consistia em atirar uma pessoa na água após amarrar sua mão direita ao seu pé esquerdo. Se a pessoa não se afogasse, perdia o processo pois nem a água lhe aceitava. Caso se afogasse, ganhava o processo pois a água não lhe teria rejeitado. Como se vê, a sanha por punir o réu a qualquer preço não é exatamente recente.
Por volta do século XII se estabeleceu na Europa uma nova prática judiciária, o inquérito. Diferentemente do período feudal, no qual havia uma disputa entre indivíduos para saber quem tinha razão, agora um poder externo e acima dos indivíduos — o poder judiciário — é quem busca determinar a verdade por meio de perguntas, questionamentos dirigidos aos notáveis da sociedade. Foucault rejeita o senso comum de que essa mudança foi uma evolução para um sistema racional de estabelecimento da verdade. Para o filósofo, o personagem central do inquérito é o poder, que se impõe aos indivíduos por meio do julgamento e da punição.
O poder judiciário esteve, portanto, desde a sua origem, muito mais ligado às relações de poder do que a nobres ideais como justiça e liberdade. É importante destacar este fato para não esquecermos que, mesmo em tempos de propalada normalidade democrática, o autoritarismo segue tendo um papel central nas sociedades humanas. Que o digam aqueles que de forma rotineira são vitimados pelo aparelho repressor do Estado, em sua maioria cidadãos marginalizados de países marginalizados.
É evidente, contudo, que estamos diante de uma escalada autoritária no mundo e no Brasil. Esta mambembe normalidade democrática está ruindo. A permanência da crise econômica para bilhões de pessoas ao redor do globo parece ser a causa fundamental para a radicalização da política. E a radicalização é o catalisador da ascensão dos celerados de extrema-direita, que vêm chegando ao poder em países importantes. Seja através do voto, seja surfando na onda de golpes sofisticados — com guerra híbrida e manipulação da opinião pública na veia — ou de golpes à moda antiga, com exército na rua e muito sangue derramado. As mobilizações massivas na América do Sul são uma espécie de outro lado da moeda. Os governantes de direita do Equador, do Chile e da Colômbia sentem em seus lábios trêmulos o gosto amargo da revolta popular contra as políticas cada vez mais excludentes exigidas pela entidade amorfa que chamamos de “mercado”.
Os protestos latinoamericanos foram a desculpa de Eduardo Bolsonaro para ressuscitar o AI-5: “Se a esquerda radicalizar, terá que ter resposta”, disse ele. Guedes deu a entender que falar em AI-5 seria aceitável como resposta a uma duvidosa agitação popular convocada por Lula. O detalhe é que Eduardo falou sobre AI-5 antes de Lula ser solto e poder discursar. Jair Bolsonaro, depois de um longo e ensurdecedor silêncio, finalmente se manifestou sobre o assunto para tranquilizar a nação: falar sobre AI-5 não tem nada demais e se trata de uma questão de liberdade de expressão poder falar do assunto.
É curioso que o autoritarismo necessite perverter até mesmo o idioma para se autojustificar moralmente. Para Bolsonaro, ameaçar com a volta a legislação que deu salvaguarda jurídica à tortura de Estado é um direito, uma questão de liberdade. Esse padrão se repete nas pautas reacionárias: alega-se ser uma questão de liberdade manifestar e/ou colocar em prática preconceitos, opressões e violências diversas. Parece que não aprenderam o conceito simples que se ensina às crianças de que a sua liberdade acaba onde começa a do outro.
O novo partido do presidente se apresenta à sociedade com um grotesco mosaico feito de munição. O ministro da Justiça, Sergio Moro, com seu genial projeto “anticrime”, só pensa em punir e aumentar penas, a não ser que se trate de um policial, este, na cabeça autoritária do ministro, pode ter licença para matar. Não dá para exigir muito em matéria de noções sobre liberdade dos integrantes de um governo desses, convenhamos.
O fato é que a ideia de que a violência é um método válido de ação política está cada vez mais normalizada. Com a contribuição preciosa dos grandes veículos de comunicação conservadores, cujo discurso democrata se revela positivamente ridículo quando autoritarismos grotescos são minimizados — tanto no tom da cobertura quanto no destaque dado — em nome de uma convergência na agenda econômica que, a bem da verdade, exige um maior grau de truculência dos órgãos de repressão estatais para ser implementada.
Diante deste deteriorado quadro, a pergunta que se impõe é: como os partidos e a militância de esquerda podem contribuir para a debelação deste surto autoritário? Além da evidente necessidade de formar frentes estratégicas o mais amplas possíveis, penso que são necessárias mudanças mais fundamentais na atuação organizada do campo popular. Qual o antídoto para o autoritarismo, afinal? A resposta óbvia é o aprofundamento da democracia. O sistema representativo está muito aquém das necessidades das multidões cuja explosiva saída às ruas é uma demonstração de que querem ter voz no debate público e nas decisões sobre a vida em sociedade — e não apenas serem chamadas a votar de quando em quando.
A implementação de uma democracia mais participativa parece tão imperativa quanto distante, ao menos neste momento. Mas precisamos mirar neste alvo. Não podemos ter a pretensão de guiar as massas ignaras rumo à terra prometida, até mesmo porque há severas discordâncias entre as esquerdas sobre o tipo de grama que a terra deverá ter, quais árvores serão plantadas e se haverá mesmo leite e mel em abundância ou adotaremos o moralmente superior veganismo. É preciso, portanto, fomentar uma cultura democrática na população. A coletividade deve ser percebida como a instância suprema das decisões, desde as discussões na associação do bairro até os debates sobre as grandes questões nacionais.
Os partidos de esquerda, ao se burocratizarem e passarem a tomar as decisões por cima, sem sequer consultar as bases, ficam parecidos demais com os partidos de direita. Implementar uma democracia radical dentro dos partidos, com amplo debate entre filiados e prévias para escolha de candidatos e definições de alianças em todos os níveis em que houver viabilidade pode ser um poderoso atrativo para novos filiados. Que tal a esquerda resgatar suas bandeiras democráticas de décadas passadas na prática e, quem sabe, sua militância orgânica? Esta esteve tão demodê nos últimos tempos mas, caso volte a ter força, pode representar uma lufada de ar puro no combalido pulmão democrático brasileiro.
As recentes e potentes manifestações de rua que sacudiram governos da América Latina, assim como todas as grandes manifestações dos últimos anos, têm a horizontalidade, a falta de liderança e a falta de rumo como características comuns. Seria uma jogada de mestre dos partidos de esquerda tornarem-se polos aglutinadores e organizadores dessas massas — que certamente existem no Brasil também, em estado latente. Para isso, os partidos precisam se tornar atraentes e nada melhor do que a radicalidade democrática para seduzir um povo sedento por participação. Sendo a prática o critério da verdade, somente tornando suas instituições modelos de regime democrático os partidos do campo popular terão legitimidade e força para, se assim desejarem, propor novos modelos de funcionamento da democracia: mais direta, participativa e popular, em todas as esferas de poder.