O livro de Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, A Desigualdade Vista do Topo, foi o grande vencedor do Jabuti deste ano.
Trata-se da publicação, em forma de livro, da tese de doutorado do mesmo autor, para a Universidade Federal de Brasília (UNB), a qual pode ser baixada gratuitamente aqui.
Eu li o trabalho, e recomendo. Os primeiros capítulos resgatam o debate sobre desigualdade ao longo do século XX. É sempre interessante saber como o chamado “primeiro mundo” tratava o tema. Os EUA, em especial, era o país em que mais se discutia, e com mais seriedade e preocupação, o tema da desigualdade.
Souza lembra que o ônus da dúvida e da crítica, durante toda a primeira metade do século XX, acerca da centralidade do tema da desigualdade, cabiam aos opositores dessa ideia. O “status quo”, o discurso hegemônico, pertencia àqueles que defendiam políticas redistributivas. Daí a relativa facilidade com que governos dos EUA, Europa e Japão implementaram um arcabouço jurídico e tributário profundamente progressivo, com leis sobre herança, renda, propriedade, que chegavam a ser, em alguns casos, quase confiscatórias, como ocorreu sobretudo nos países anglo-saxônicos e Japão, onde impostos sobre herança atingiam patamares acima de 70%, às vezes mesmo perto de 90% do total.
Essas leis apenas eram possíveis porque a academia, e o próprio “senso comum”, tratavam a luta contra a desigualdade como um dos objetivos centrais do processo democrático. Esse “espírito do tempo” se aprofunda durante a II Guerra, período no qual explodem as demandas fiscais do Estado, que precisava financiar o esforço bélico. Como pobres e classe média já estavam dando sua própria vida nos combates, o Estado precisou ir atrás dos ricos, que por sua vez, por causa da guerra, não tinham espaço moral ou político para se oporem.
O clima começa a mudar ao final dos anos 60, quando o ambiente de relativa estabilidade política permite que as elites econômicas organizem um contra-ataque de grandes proporções. Então o ônus da crítica começa a virar, ou seja, os defensores das políticas de redistribuição é que, aos poucos, começam a ser aqueles que devem explicações. Mas apenas na década de 80 é que o jogo virará, definitivamente, em favor dos que, mais tarde, ficarão conhecidos como “neoliberais”. Quando lança Capitalismo e Liberdade, em 1962, Friedman é quase um “outsider”.
O livro tem lançamento obscuro, como ele mesmo lembrará, vinte anos depois, por ocasião de outro trabalho seu (Livre para Escolher), no início da década de 80, que encontrará uma recepção entusiástica junto aos grandes meios de comunicação e opinião pública, com Milton e sua esposa, Rose Friedman, co-autora, rodando o país para apresentar o trabalho, e, em seguida, estrelando seu próprio programa de TV, batizado com o mesmo nome do livro.
Começam a era neoliberal, com a eleição de Ronald Reagan, nos EUA, e Margareth Tatcher, no Reino Unido, e desde então são as ideias que denunciam o problema da desigualdade, e favoráveis às políticas redistributivas, que precisam se justificar perante a opinião pública.
Entretanto, a recente escalada da desigualdade global, entre países e dentro dos países, incluindo aí as economias mais avançadas do mundo, começou a forçar novamente mudanças nos ambientes intelectuais hegemônicos. O problema da desigualdade voltou ao centro do debate.
A partir do capítulo 5 da tese de Pedro Souza, ele traz os gráficos, e os respectivos comentários, referentes à desigualdade no Brasil, dos anos 20 até os dias de hoje.
O autor mostra, através de cálculos até então inéditos, porque baseados no imposto de renda, que os períodos autoritários do Brasil foram marcados por um forte aumento da desigualdade, em particular o regime militar que vigorou de 1964 até metade da década de 80.
Entretanto, o autor também revela que os anos Lula/Dilma, apesar de terem testemunhado uma expressiva redução da pobreza, viram igualmente o aumento da concentração de renda em mãos das famílias no topo da pirâmide social.
Uma das razões do aumento dessa concentração nos últimos anos é consequência de um regime fiscal profundamente regressivo, em que os ricos pagam menos impostos que os pobres. Esse quadro tributário se agrava sobretudo a partir de 1995, quando o governo federal encerra a cobrança de impostos sobre lucros e dividendos.
Essa isenção irá beneficiar os brasileiros no topo, e ao mesmo tempo elevar a carga tributária sobre a classe média (via imposto de renda) e população mais pobre (via impostos sobre o consumo).
Uma série de outras isenções, que vão sendo gradualmente concedidas às famílias mais ricas, acaba fazendo com que o percentual de imposto sobre a renda efetivamente pago por elas apresente uma linha declinante, como se pode ver no gráfico trazido pelo autor (figura 65, abaixo).
Pedro Souza denuncia, em seu trabalho, que os brasileiros mais ricos tem se beneficiado cada vez mais de facilidades tributárias que isentam parte crescente de seus rendimentos. O gráfico abaixo (figura 63) mostra que, de 2006 até 2013, houve um declínio expressivo dos rendimentos tributáveis para o 1% mais rico do Brasil.
A desigualdade brasileira sempre foi um caso à parte no concerto das nações. Apesar deste ser um problema global, não há nenhum país do mundo com graus tão elevados de concentração de renda. Os EUA viram sua desigualdade explodir nos últimos anos, mas esta se manteve relativamente baixa (na comparação com o Brasil, ao mesmo), ao longo de quase todo o século XX. Nem o período de reformas regressivas radicais da administração Reagan mudou significativamente esse quadro. A desigualdade americana apenas chegou perto da brasileira ao final da década de 90 (figura 44, e tabela 5, abaixo).
É importante, contudo, notar que os efeitos reais da desigualdade americana são completamente distintos daqueles sentidos pela população brasileira, pelo fato singelo e determinante de que os EUA são o país mais rico do mundo.
Em 2014, os 50% mais pobres dos EUA tiveram renda média de 25 mil dólares, após os impostos… a renda dos pobres da América cresce após os impostos, por causa do sistema tributário progressivo vigente nos EUA, onde existe o “imposto negativo”, uma ideia, aliás, de Friedman que é elogiada até hoje por economistas de esquerda, como Piketty. Os 50% mais pobres da América detinham, em 2014, 19,4% da renda nacional
Já os 50% mais pobres do Brasil, em 2015, gozavam de uma renda média de 3,4 mil dólares, e detinham apenas 12% da renda total no país.
As tabelas abaixo, pertencentes do grupo de Piketty, e que não estão no trabalho resenhado neste post, mostram ainda a desigualdade brasileira, quando vista ainda mais do alto do que se propõe Pedro Souza, que vai até os 0,01%… ou seja, quando olhamos para a concentração de riqueza dos 0,001%, é ainda mais estarrecedora.
Segundo os cálculos do grupo de Piketty, que também trabalha com imposto de renda, a renda dos 0,001% mais ricos do Brasil correspondia, em 2015, a 3,9% da renda nacional; o mesmo grupo nos EUA, país conhecido por seus bilionários, detinha 1,4% em 2014, após os impostos.
A tese de Pedro Souza traz também um gráfico comparativo da renda do 1% mais rico do Brasil e em outros países em desenvolvimento (figura 45, abaixo). O Brasil, mais uma vez, é campeão.
Por fim, é interessante examinar uma tabela trazida por Pedro Souza com as ocupações com maior renda, segundo as declarações do imposto de renda de pessoa física, para o ano de 2013 (tabela 6, abaixo).
É um quadro bastante ilustrativo da posição privilegiada de algumas categorias do serviço público, e que é particularmente chocante quando se compara à renda média do trabalhador brasileiro. Segundo dados divulgados em outubro último pelo IBGE, a renda média do brasileiro é de R$ 65 mil por ano (repare que estamos falando de renda familiar, que soma, portanto, salários de vários membros da mesma família). Agora compare essa média com a renda anual de um membro do ministério público (R$ 498 mil/ano) e do judiciário (R$ 489 mil/ano).
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