Os prisioneiros do tempo e o sonho da liberdade

Cronos, o deus do tempo, devora um de seus filhos. Pintura de Francisco de Goya (1819-1823).

O Caetano Veloso canta, na sua Oração ao Tempo, que ele, o Tempo, é um dos deuses mais lindos. O economista John Maynard Keynes, por sua vez, escreveu que no longo prazo estaremos todos mortos.

Podemos ser poéticos como um Caetano ou objetivos como um Keynes para falar do tempo, mas o fato é que vivemos como seus prisioneiros.

A começar pelo funcionamento de nossa mente, um incessante e caótico transitar por passados e futuros projetados. Presos ao tempo, vivemos tentando adaptar o passado e imaginar o futuro conforme nossa limitada visão de mundo. A esmagadora maioria dessas projeções mentais é inútil, errônea ou, frequentemente, os dois.

Esta imensidão de erros se reflete em nossas análises políticas, históricas, sociológicas.

Por exemplo, uma projeção que poderia parecer razoável há algumas décadas é a de que em pleno 2019 os preconceitos em nossas sociedades ditas civilizadas estariam reduzidos à insignificância. Os gritos racistas e gestos nazistas de alguns torcedores búlgaros, cometidos há alguns dias em uma partida de futebol entre Inglaterra e Bulgária, compõem apenas uma das inúmeras demonstrações diárias de que alguns violentos instintos primitivos ainda nos assombrarão por algum tempo — e de que erramos feio na referida projeção. O placar do jogo foi um sonoro 6 a 0 para os ingleses, mas os nazistas tardios seguem convencidos de que são de alguma forma superiores por conta de irrelevâncias como a cor da pele ou os traços faciais. Em estultice, de fato, são insuperáveis.

Mesmo imersos em um oceano de previsões redondamente enganadas, seguimos tentando prever o futuro. O fato de que algumas dessas projeções acabam confirmadas pelo tempo nos impele a continuar bancando os videntes.

A hipótese de que o golpe de 2016 e a Lava Jato seriam desmascarados e suplantados mais rapidamente do que o golpe de 1964 parece ser uma destas previsões que se confirmarão. É difícil imaginar que tamanha movimentação golpista possa ficar impune por muito tempo na era da internet, tendo em vista a quantidade e a rapidez com que a informação circula. É o que o sociólogo John B. Thompson chama de “nova fragilidade” dos poderosos, a qual a Vaza Jato vem comprovando espetacularmente. Sergio Moro ainda detém uma popularidade relativamente alta; entretanto, as escabrosas revelações da Vaza Jato tendem a fazer com que seu prestígio seja corroído aos poucos.

Outra projeção que tem boas chances de ser confirmada pela realidade é a de que a linha política autocrática, reacionária, neoliberal, paranoica, anti-ambiental e miliciana de Jair Bolsonaro e seu clã familiar deve isolar cada vez mais o presidente da República e, desse modo, dificultar a permanência da onda conservadora que se verifica no Brasil nos últimos tempos. Muito embora os índices de aprovação de Bolsonaro apresentem certa renitência, a implosão de seu próprio partido, com acusações gravíssimas de parte a parte, é um indicativo de que o chefe do executivo tende a ser apoiado por um núcleo duro cada vez menor e mais fanatizado – tanto no meio político quanto na população em geral. E isto não é sustentável.

Tal perspectiva é corroborada pelos ventos políticos que agitam a América Latina. Na Argentina às vésperas do segundo turno das eleições, amplo favoritismo para a chapa Alberto Fernández/Cristina Kirchner, a qual antagoniza com o liberalismo econômico de Mauricio Macri. No Equador e no Chile, massivas explosões de indignação popular contra dois governos com práticas à direita emparedam seus presidentes e certamente provocam medo em outros governantes do continente e até mesmo na OEA.

Eis uma previsão infalível, afinal: governos que seguem a mal disfarçada cartilha neoliberal — segundo a qual o Estado só serve para garantir os rendimentos do capital e para reprimir a população pobre, trabalhadora ou insurgente — estão fadados ao fracasso.

Nesta pequena e talvez um tanto quanto despropositada digressão sobre o tempo, não poderíamos deixar de mencionar a figura central, para o bem e para o mal, da política brasileira, Luiz Inácio Lula da Silva. Suas inquestionáveis habilidades políticas não impediram que demonstrasse uma visão estreita da conjuntura — para dizer o mínimo — no processo eleitoral de 2018, quando preferiu manter a hegemonia petista na esquerda a incrementar as chances de vitória do campo progressista sobre Bolsonaro. Lula basicamente confessou, em algumas entrevistas recentes, que costurou as alianças eleitorais pensando apenas no melhor para o PT. Basta observarmos a surpreendente decisão de Cristina Kirchner, que abriu mão da cabeça de chapa por conta da perseguição empreendida pelo Judiciário argentino, e a iminente vitória do seu campo nas eleições na Argentina para perceber o tamanho do erro de Lula em suas projeções de curto prazo.

Vale a pena ler esta matéria da BBC sobre como a eleição brasileira influenciou na estratégia de Kirchner. Um trecho:

Outra semelhança entre a disputa na Argentina e no Brasil é o fato de que Cristina, assim como Lula, tem um “núcleo duro” de votos — algo entre 25% e 30%, no caso da ex-presidente —, mas também enfrenta uma rejeição alta entre parte dos eleitores. “Ela tinha plena consciência de que, se fosse candidata, não iria ganhar. Teria que colocar alguém que conseguisse somar votos fora desse núcleo duro”, acrescenta essa mesma fonte.

Em uma análise de longo prazo, contudo, o afiado tino político do ex-presidente Lula salta aos olhos. A decisão de não resistir à prisão, quando poderia buscar refúgio em alguma embaixada ou fora do país, escancara de forma chocante a injustiça e o autoritarismo dos quais é vítima. A recusa em aceitar a liberdade condicional oferecida cinicamente pelos procuradores da Lava Jato (desnorteados com a cada vez mais provável libertação de Lula por conta das revelações da Vaza Jato) e a impressionante resiliência que demonstra, ao preferir permanecer trancafiado em uma cela até que o Judiciário reavalie os processos nos quais foi condenado, são dignas de grandes personagens históricos.

Tais gestos de martírio em nome da honra serão amplamente reconhecidos e respeitados por muitas décadas. Lula parece saber disso ao dar declarações prontas e acabadas para entrarem nos anais da história: “Não troco minha dignidade pela minha liberdade”, escreveu o ex-presidente em uma carta redigida na prisão.

É interessante que, muito embora nossa mente esteja sempre imaginando futuros possíveis, há uma certa interdição neste hábito de projetar.  Tentamos prever o que vai acontecer conosco no dia, na semana ou no mês, bem como quem vai ganhar as próximas eleições ou o próximo campeonato brasileiro. Mas normalmente não usamos nossa imaginação para pensar em novas formas de organização da sociedade e de nos relacionarmos uns com os outros.

Por que isso?

Talvez por conta da crença implícita na lógica competitiva e individualista inerente ao capitalismo: a de que o ser humano é egoísta por natureza e que nada pode mudar isto. Imaginar um mundo em que a cooperação seja a regra e em que não existam as brutais diferenças de condições de vida que são a regra na história da humanidade parece uma utopia ingênua.

Entretanto, é possível modificar o funcionamento de nossa mente. Com a prática da meditação, por exemplo, desenvolve-se a capacidade de silenciar a mente e, em decorrência, de escolher os tipos de pensamento que se quer cultivar. É um dos caminhos para a transformação da consciência humana do modo egoísta para o modo solidário, cooperativo, amoroso.

Se podemos modificar a forma de atuação da nossa mente, podemos modificar a fora de organização da sociedade inteira.

Por esses dias circulou a notícia de que o jogador de futebol senegalês Sadio Mané, do Liverpool, teria declarado que não precisa de Ferraris, relógios, diamantes ou aviões e que, uma vez que passou fome e sobreviveu a tempos muito difíceis, prefere ajudar quem vive em situação de pobreza. Fui pesquisar e vi que alguns veículos brasileiros corrigiram suas matérias, afirmando que não há a confirmação de que Mané teria mesmo falado tais coisas

Real ou não a declaração, a ideia é deveras sensata. Não faz sentido que nosso modelo de sucesso seja uma vida de luxos enquanto uma multidão de pessoas, gente como a gente, come o pão que o diabo amassou. O prazer de acumular coisas ou status é efêmero, ilusório, grosseiro. Há, na existência, prazeres muito mais duradouros, verdadeiros e refinados os quais a espécie humana pode desfrutar.

Apesar de parecer, não estamos, no fundo, presos ao tempo. Podemos treinar nossa mente para que aprenda a interromper seu fluxo caótico de pensamentos sobre o passado e o futuro e, assim, possa usufruir do momento presente sem culpas ou ansiedades. Com a mente tranquila, podemos imaginar infinitos novos modos de vida para a raça humana. Podemos sonhar com a libertação do nosso passado de opressões e violência e com um futuro coletivamente próspero para a humanidade.

Usemos nosso poder de imaginação — e de ação — para criar um mundo sem os extremos de opulência e miséria que nos assolam. Um mundo onde todos possam ter condições de exercer suas liberdades, desenvolver suas habilidades, utilizar suas criatividades, apreciar, enfim, este mistério a que chamamos vida.

Pedro Breier: Pedro Breier nasceu no Rio Grande do Sul e hoje vive em São Paulo. É formado em direito e escreve sobre política n'O Cafezinho desde 2016.
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