É com grande pesar e muitas lágrimas nos olhos que venho dar a informação de que o professor Wanderley Guilherme dos Santos, nosso dileto amigo, e, sobretudo, um grande amigo do Brasil e da humanidade, faleceu na madrugada desta sexta-feira, vítima de uma pneumonia.
Wanderley Guilherme, com toda sua erudição, era uma pessoa alegre e simples, amante da literatura, das artes, da amizade, da vida.
Nos últimos tempos, no entanto, vinha estudando, com algum pessimismo, o risco que as novas tecnologias, num mundo dominado por corporações e governos sem preocupação real com o bem estar da humanidade, ofereciam a milhões de famílias, que não teriam mais empregos.
Minha última visita a ele se deu há alguns dias, em seu apartamento na rua das Palmeiras, em Botafogo, onde sentávamos na varanda e conversávamos sobre o Brasil e o mundo. Apesar de intelectualmente pessimista com os rumos das coisas, ele me assegurou (porque eu lhe perguntei) que estava muito bem consigo mesmo e com a vida.
Ele estava desgostoso com o Brasil, naturalmente, pela degradação política pela qual estamos passando desde que as agitações golpistas começaram a desestabilizar a democracia brasileira, ainda no início de 2014.
Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político, publicou inúmeras obras importantes para se entender os percalços da democracia brasileira, entre elas O Paradoxo de Rousseau e Horizonte do Desejo. Neste último, ele investiga as razões práticas pelas quais o povo brasileiro, frequentemente, parece apático: porque há riscos e custos na ação política, que são muito mais pesados para as classes mais pobres do que para os extratos médios.
No mesmo livro, ele critica os conservadores brasileiros por não enxergarem que é “impossível” ser mais conservador do que o Brasil já o é. Os que acusam o Estado de ser grande, esquecem que boa parte desse tamanho é voltada justamente para manter o status quo… conservador.
Em seus livros, de qualquer forma, Wanderley Guilherme foi um dos primeiros a desmistificar as mentiras de que nossos servidores ganham muito ou que o funcionalismo público no país é excessivo. Ele prova que o Brasil mantém um percentual de funcionalismo, relativo ao emprego geral, abaixo da média da maioria dos países. O que há, de fato, é uma distribuição ruim em todos os sentidos: o Estado tem poucos engenheiros e muitos ascensoristas; e os salários do Executivo são muito baixos vis a vis do Judiciário; e por assim vai.
Embora andasse pessimista nos últimos tempos, como todo mundo, Wanderley Guilherme sempre foi um entusiasta do processo democrático, e foi ele que me indicou o clássico A Democracia e seus Críticos, de Robert Dahl, um de seus autores preferidos.
A história de Wanderley Guilherme se confunde com a história da Ciência Política no Brasil, da qual ele foi o fundador, ao idealizar e criar o primeiro curso de pós-graduação no país, o famoso Iuperj, durante muitos anos alocado na Universidade Cândido Mendes, e depois transferido ao Estado do Rio, incorporado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Renomeado para Iesp, e ainda hoje considerado um dos mais importantes centros de estudo em ciência política da América Latina, funciona em Botafogo, perto da residência de Wanderley, e que era a sua segunda casa e família. Lá, a biblioteca se chama Wanderley Guilherme, em sua homenagem, e boa parte dos livros foram doados pelo próprio. Lá ele dava, até hoje, cursos e palestras.
Wanderley Guilherme acompanhava atentamente os acontecimentos políticos brasileiros, pelos jornais e blogs, que lia diariamente. O Cafezinho tem a honra de ter abrigado as suas últimas contribuições neste sentido, visto que ele manteve, por aqui, durante algum tempo, a coluna Segunda Opinião.
Basta dar uma lida nos títulos de suas colunas para ver como o professor se mantinha atento ao pulso da política nacional:
Wanderley Guilherme: Brasil caminha para periferia da periferia
Wanderley: Bolsonaro não merece nenhum crédito de confiança
Wanderley: o possível futuro africano no Brasil
Wanderley Guilherme: a prisão de Lula e o provável fracasso brasileiro
Wanderley Guilherme: a insuperável leveza do governo Bolsonaro
Wanderley: a democracia deve ir às ruas
E o exército? Onde está o exército?
Wanderley Guilherme: O purgatório bolsonariano
Wanderley Guilherme: Por que o brasileiro vota em Bolsonaro?
Wanderley Guilherme: que candidatos estariam dispostos a moralizar a Lava Jato?
Foram as críticas do professor, no início de 2018, que me convenceram que a esquerda, e este blog junto, estávamos enveredando por trilhas irresponsáveis, ecoando um radicalismo estridente, estéril e impotente, fazendo ameaças de rebelião e guerra civil que não metiam medo a ninguém e só nos isolavam.
Foi também o professor que alertou para a emergência de Ciro Gomes como uma alternativa possível nas eleições presidenciais.
Nos últimos encontros que tivemos, todavia, o professor andava irritado e decepcionado com Ciro, por causa de suas agressões abaixo da cintura contra PT.
“Ciro está perdendo votos”, ele me dizia.
Mas ele andava irritado com toda a esquerda, por sua incapacidade de construir articulações políticas viáveis, e sua falta de disposição em construir um diálogo mais amplo, com empresários, militares, classes médias, trabalhadores, de maneira a assegurar não apenas vitórias eleitorais como também, principalmente, governos minimamente estáveis.
Em sua última entrevista, concedida ao Cafezinho ao final de setembro último, Wanderley sugere que as esquerdas deveriam se informar melhor sobre as dissidências que estariam ocorrendo no seio do liberalismo nacional, e que prestasse atenção aos artigos de André Lara Resende, porque aí poderia ser um caminho para se construir novas estratégias e novas alianças para derrotar esse monstrengo antidemocrático e antipovo que é o governo Bolsonaro.
O professor Wanderley Guilherme simbolizava, para mim, e para muitos, a integridade, a coragem e a independência intelectuais. Era uma dessas figuras imprescindíveis, incorruptíveis (e não apenas do ponto-de-vista vulgar, mas sobretudo desse tipo de incorruptibilidade muito mais rara, que é a incorruptibilidade intelectual). Apesar de ser uma pessoa lhana, generosa e, porque não dizê-lo, um bon vivant, era um pensador rigoroso, severo, sério, consigo mesmo e com outros.
Com 84 anos, dedicava-se à aventura do conhecimento com o entusiasmo e a energia de um jovem estudante.
Sua morte representa um perda real para o Brasil em geral, e para mim em particular, que vinha lhe visitando regularmente, em busca de alguma luz para minhas dúvidas e perplexidades. Por uma dessas coincidências estranhas da vida, hoje pela manhã, antes de receber a notícia triste, pensei nele e namorei a ideia de reler seus livros que tenho na estante.
Wanderley Guilherme tinha planos de voltar a escrever sua coluna de opinião. É uma pena que tenha se ido antes de realizar seu intento. Nos tempos sombrios que vivemos, seria muito importante ouvir a palavra do professor.
Mas os seus livros, seus artigos, seu pensamento, sua generosidade, seu amor à cultura, à pesquisa e ao conhecimento, permanecem como rochas indestrutíveis, sobre as quais, quero crer, ergueremos novos sonhos, novas estratégias, novos planos de combate ao obscurantismo, ao egoísmo, e a todos os obstáculos à liberdade e felicidade de homens e mulheres do Brasil e do mundo inteiro!
Descanse em paz, professor. Sua vida foi plena. Você pensou, você lutou, você amou sua família, seus amigos e seu país.
Você foi um grande homem.
Adeus.