23/10/2019
Por Lúcia Müzell, no RFI
Vendido como um exemplo de estabilidade econômica na América Latina, o Chile enfrenta a maior onda de contestação já vista desde os anos 1990. Os protestos que se acentuaram no fim de semana catalisam anos de aperto financeiro das classes de renda baixa e média, e se potencializam com a insatisfação de uma geração de aposentados com o valor baixo das pensões.
A gota d’água foi o aumento de 3,75% do valor das passagens de metrô nos horários de pico, justamente o mais utilizado pelos trabalhadores. “Foi apenas um estopim de vários conflitos e tensões que perpassam o modelo econômico chileno desde a ditadura, em 1973. Um modelo neoliberal que traz consequências sociais muito complicadas de serem administradas”, afirma Fábio Borges, professor de Relações Internacionais da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana).
“É simbólico porque o Chile, por muito tempo, foi considerado um exemplo na condução econômica, com maior estabilidade e crescimento. Mas o que essas manifestações demonstram é que essas contradições estavam presentes, porém, provavelmente por causa do trauma da ditadura, isso não vinha a público”, diz.
Com as contas em dia, o desemprego e a inflação sob controle, o país é visto como modelo por governos conservadores como o do presidente Jair Bolsonaro. Olhados isoladamente, os índices macroeconômicos de fato são de fazer inveja: o país cresce acima da média latino-americana, a 2,5%, o índice de desemprego é estável, em torno de 7% – graças a um mercado de trabalho flexível –, e a dívida pública não ultrapassa os 25% do PIB.
Desde a ditadura, os sucessivos governos chilenos seguem os preceitos da ortodoxa Escola de Chicago, que formou economistas como o brasileiro Paulo Guedes. Não à toa, o modelo chileno de aposentadorias, privatizado e por capitalização, inspirou a proposta do governo de reforma das pensões no Brasil.
Entretanto, a geração de aposentados pós-reforma no Chile agora não consegue fechar as contas do mês – os benefícios chegam a ser de apenas 60% do salário mínimo, ressalta Jorge Muñoz, especialista em sociologia do trabalho e estudos comparativos entre Europa e América Latina, da Universidade de Brest, na França.
“Nestes últimos anos, estão se aposentando os primeiros chilenos que pararam de trabalhar desde a adoção deste sistema. Essa situação gera, em parte, os protestos atuais, porque os aposentados estão se dando conta de que o que foi prometido em termos de recursos não foi alcançado”, indica o professor chileno. “Muitas pessoas estão vivendo com uma aposentadoria muito baixa. O Estado deveria intervir, para tentar compensar o que o sistema privado não está oferecendo.”
Pagar para tudo
O que se verifica nas aposentadorias se repete em serviços públicos básicos, como educação e saúde. A privatização retirou profissionais do setor público, que também é debilitado pela falta de recursos. Para ter acesso a boas escolas e hospitais, é preciso pagar caro no Chile.
“Desde que o Chile ingressou na OCDE, teve de entrar nos padrões comparativos da organização e ficou evidente que é um dos países mais desiguais, incluído na comparação com outros da América Latina. Os salários são muito baixos, por exemplo”, frisa Muñoz. “Mais de 50% dos chilenos ganham menos de 400 mil pesos por mês, cerca de R$ 2.800. Parece bom, mas se consideramos o custo de vida no Chile, que é altíssimo, sobretudo na capital, torna-se uma situação muito difícil de administrar para a maioria dos chilenos, na vida cotidiana.”
Resultado: o endividamento das famílias atinge índices preocupantes, com um terço dos adultos sem conseguir chegar no fim do mês sem contar com a ajuda de um crédito. “Como toda a lógica econômica girou em torno das privatizações, muitas pessoas recorrem a empréstimos para terem acesso a uma educação de qualidade, ou resolver um problema de saúde emergencial”, pontua Borges. “O setor financeiro é muito dinâmico, mas em detrimento a uma estabilidade de renda das pessoas, que ficam vulneráveis em troca de ter uma condição mínima de vida.”
O professor da Unila avalia que a tensão social atual coloca em cheque o modelo ultraliberal adotado pelo país, sem que os problemas estruturais de base não tenham sido solucionados previamente. Essa situação, sublinha, se repete em outros países latino-americanos.
“Na América Latina, as políticas neoliberais agravam o problema”, destaca Borges. “Na Europa, já houve uma etapa de construção do Estado de bem-estar social: em algum momento, eles atacaram os problemas de desigualdades, viabilizaram os direitos trabalhistas, à saúde e a infraestruturas. Na América Latina, nós nunca passamos dessa primeira etapa.”