Uma mensuração mais precisa do rendimento das famílias brasileiras é fundamental para entender melhor como elas pensam e, a partir daí, desenvolver estratégias políticas bem sucedidas.
A Pesquisa do Orçamento Familiar (POF) 2017/18, do IBGE, divulgada há pouco, nos oferece informações estratégicas neste sentido.
Eu fiz um exercício estatístico para compararmos as amostras usadas pelos dois principais institutos de pesquisa com os números do IBGE.
Datafolha e Ibope (em especial este último) talvez estejam usando números defasados em suas pesquisas, o que pode explicar algumas falhas ocorridas em 2018, nas sondagens de intenção de voto.
A mais recente pesquisa Ibope de avaliação de governo, divulgada há algumas semanas, trazia um recorte por renda no qual os eleitores com renda familiar inferior a 2 salários representavam 56% dos entrevistados; os eleitores com renda acima deste nível representavam 37% da população; outros 7% não responderam.
Entretanto, segundo o POF 2017/18, quase 40 milhões de famílias, ou 57% da população brasileira (estimada em 69 milhões de famílias pela mesma pesquisa), tem renda familiar superior a R$ 2,8 mil.
As famílias brasileiras com renda inferior a R$ 2.862 por mês, eram 29,3 milhões, ou 42,4% do total.
O salário mínimo em 2019 está em R$ 998. Segundo o Ibope, os entrevistados com renda familiar superior a 5 salários, ou aproximadamente R$ 5.000/mês, representam 11% do total de sua amostra.
Mas segundo o POF 2017/18, o Brasil tem 18,6 milhões de famílias, ou 27% do total da população, com renda acima de R$ 5.700.
Considerando uma renda superior a R$ 9 mil/mês, temos 9 milhões de famílias, ou 13% da população.
Examinem os gráficos e tabelas abaixo (clique nas imagens para ampliar). Eu volto em seguida.
A tabela acima mostra que, mesmo considerando o POF anterior, de 2008/09, as amostras usadas por Datafolha e Ibope já apresentavam diferenças significativas em relação aos números do IBGE. Com o POF divulgado este ano, porém, essas diferenças se tornam ainda mais relevantes.
Arredondado um pouco os números, para que eles caibam na unidade “salário mínimo”, podemos afirmar que, segundo o POF 2017/18, apenas 24% das famílias brasileiras apresentavam renda inferior a 2 salários; vendo a mesma realidade por outro ângulo: 76% das famílias brasileiras tem renda mensal acima de 2 salários.
Os números do IBGE nos permitem fazer especulações mais objetivas sobre as classes sociais brasileiras.
A renda, apesar de não ser o único fator a ser considerado, é a maneira mais fácil de entendermos o perfil e o tamanho na sociedade brasileira, por exemplo, do que se convencionou chamar de “classe média”.
Então eu estabeleci alguns parâmetros que me pareceram razoáveis, e dividi as famílias brasileiras em sete classes: classe baixa baixa, classe baixa média, classe baixa alta, classe média baixa, classe média média, classe média alta e classe alta. O quadro a seguir traz as faixas de renda correspondentes a cada um desses grupos.
Fui bastante severo com a categoria classe média: apenas aquelas famílias com renda superior a R$ 5,7 mil, conforme o POF 2017/18, foram classificadas como classe média. Daí para baixo, classifiquei como classe baixa.
Assim me parece que o termo classe média fica menos vulgarizado.
Quando agrupamos as subclasses, temos o seguinte quadro:
- a classe baixa, formada por famílias com renda mensal inferior a R$ 5,7 mil, abriga 50,4 milhões de famílias, ou 73% da população brasileira.
- a classe média, com renda mensal entre R$ 5,7 mil e R$ 23,8 mil, é formada por 16,7 milhões de famílias, com 24% da população.
- a classe alta, ou os “ricos”, ganham acima de R$ 23,8 mil ao mês, e totalizam 1,84 milhão de famílias.
Na tabela abaixo, eu uso a classificação inventada por mim para apresentar um comparativo das duas últimas POF do IBGE. Clique para ampliar.
A participação de programas sociais federais na renda total das famílias aumentou 94% nos últimos 10 anos, de 0,57% para 1,12%, mas este percentual ainda assim não é relevante.
A partir da classe baixa alta, os programas sociais federais não tem mais participação expressiva no rendimento total das famílias.
Já a participação do trabalho no rendimento total cresce conforme escalamos a pirâmide social: enquanto nos estratos mais baixos, o trabalho corresponde a menos de 45% da renda, nas classes médias e na classe alta, o trabalho vai de 64% a 70%.
Identificar essas diferenças nos ajudam a entender as prioridades políticas e o processo ideológico de cada classe.
Na última pesquisa de intenção de voto antes do segundo turno, Bolsonaro conseguiu uma vantagem de 61% X 39% sobre Haddad entre eleitores com renda familiar mensal entre 2 e 5 salários; esse segmento, segundo o Datafolha, representaria cerca de 38% do eleitorado; segundo nossos cálculos, porém, usando o POF 2017/18 do IBGE, ele corresponde a quase metade (49%) dos eleitores.
Outro dado importante para entender a dinâmica da opinião pública é uma pesquisa Datafolha, colhida entre os dias 4 e 5 de julho deste ano, sobre a prisão de Lula.
Entre eleitores com renda familiar entre 2 a 5 salários, os quais, segundo nosso parâmetro, são os estratos superiores da classe baixa (classe baixa alta), 63% consideram que a prisão de Lula é justa.
Entre os que ganham menos de 2 salários de renda familiar (que correspondem a 24% da população), no entanto, 51% consideram que a prisão de Lula é injusta.
Uma outra pesquisa, feito pelo instituto FSB em parceria com a Veja, na segunda semana de agosto, trouxe a seguinte amostra.
Num eventual segundo turno, entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, a vantagem do presidente sobre o petista ainda é profundamente marcada pela renda. Entre eleitores com renda entre 2 e 5 salários, os quais, lembre-se, eu classifico aqui como classe baixa, ou seja, pobres, mas que já apresentam valores e aspirações semelhantes aos da classe média, Jair Bolsonaro ganha por 57% X 28%; entre eleitores com renda acima de 5 salários, a maior parte do qual está na classe média baixa, a votação de Bolsonaro seria de 61% X 28%.
Na pesquisa para o primeiro turno, se a eleição fosse hoje, o resultado ficou assim:
A vantagem de Bolsonaro junto ao eleitorado com renda superior a 2 salários ainda é avassaladora.
Esses números mostram que o principal desafio do campo progressista, portanto, será reconquistar o respeito dos estratos mais instruídos da classe baixa e da classe média.
A estratégia de alguns intelectuais, de criar estereótipos negativos, e até mesmo preconceituosos, sobre a classe média, me parece equivocada, e segui-la talvez tenha sido uma razões das sucessivas derrotas que o campo progressista vem sofrendo há algum tempo.
Nos Estados Unidos, as elites intelectuais progressistas cometeram erros similares, e que levaram à vitória de Donald Trump.
A pesquisadora Joan C.Williams lançou há pouco um livro intitulado White Working Class, Overcoming Class Cluelessness in America, que poderíamos traduzir para Classe Trabalhadora Branca, Superando a Ignorância de Classe nos EUA. No livro, Williams explica que decidiu, a pedido de seu editor, chamar a classe média americana de “classe trabalhadora”, para evitar uma armadilha semântica e política (também comum no Brasil), na qual profissionais liberais com alto poder aquisitivo, e que deveriam, com mais justiça, chamar a si mesmo de “ricos”, se auto-classificam de “classe média”.
Quer dizer, aqui a confusão é ainda pior. Com objetivo de criar uma narrativa, que se revelaria exagerada, e até mesmo falsa, de que as crescentes insatisfações com os rumos do país, durante os governos de esquerda, resultavam de um preconceito de elite enraizado nas classes privilegiadas, setores progressistas passaram a demonizar a classe média, termo que passou a ser associado a “elite”.
Só que a classe média brasileira, assim como a americana, não é elite. Não possui os meios de produção. Não acumula grandes poupanças ou propriedades. Sua estabilidade financeira depende de trabalho duro, disciplina, e a confiança de seus empregadores em sua honestidade, o que a faz dar grande importância a esses valores.
Partilhando os mesmos valores da classe média, vem os estratos mais instruídos da classe baixa, que eu chamo aqui de “classe baixa alta”. Somando essa classe baixa alta à classe média baixa, temos um total de 30 milhões de famílias, ou 44% da população brasileira.
Desde as “jornadas de junho” de 2013 que a classe média parece ter tomado consciência do poder político que as redes sociais lhe proporcionaram. A partir daí, ela tem obtido vitórias sucessivas. Foi às ruas para pedir o impeachment, e conseguiu. Foi às ruas para pressionar o sistema de justiça a prender Lula, e conseguiu. Nas eleições de 2018, a rejeição ao PT junto à classe média era avassaladora, e foi uma das principais causas da vitória de Jair Bolsonaro.
Segundo o Datafolha, a rejeição a Fernando Haddad junto a eleitores com renda familiar média acima de 5 salários atingiu 66% pouco antes da eleição no primeiro turno (mas cairia para 58% na última sondagem); segundo o POF 2017/18, temos quase 19 milhões de famílias com renda acima de 5 salários, que representam 27% da população.
Nossa classificação inscreve o eleitor que ganha de 5 a 10 salário de renda familiar como classe média baixa. Não estamos falando aqui, portanto, do voto ou da rejeição das “elites”.
Entre eleitores com renda média de 2 a 5 salários (classe baixa), Haddad também despontava como líder em rejeição (chegou a 48%, contra 41% de Bolsonaro) .
Às vésperas da eleição no segundo turno, o Ibope fez uma pesquisa sobre rejeição aos partidos políticos. Novamente nos deparamos com um quadro de rejeição muito alto ao PT junto aos eleitores com renda familiar acima de 2 salários: 47% de rejeição entre eleitores com renda de 2 a 5 salários, e 53% de rejeição entre eleitores com renda superior a 5 salários.
Sobre esse antipetismo, que produziu o impeachment e depois a vitória de Jair Bolsonaro, e que ajuda a manter a extrema-direita coesa, há um livro lançado em 2018, por dois pesquisadores brasileiros, David J.Samuels e Cesar Zucco, mas escrito em inglês, intitulado Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans, Voting Behavior in Brazil. A tradução seria algo como Militantes, Antimilitantes e Não-militantes, o comportamento do voto no Brasil.
Apesar do assunto principal do livro ser o conceito mais geral de “antimilitância”, logo no início os autores admitem que o fenômeno, no Brasil, se materializa no antipetismo, e daí eles vão especular sobre suas causas e analisar o que ele significa.
O livro traz descobertas muito importantes para se entender a conjuntura política brasileira. Os dados usados vão até as eleições municipais de 2016. Eles descobrem, por exemplo, que o antipetismo foi desenvolvendo, com o tempo, vários aspectos do que se chama “Identidade social”, que é justamente o conceito que se usa para definir as subculturas partidárias. Ou seja, o antipetismo vinha adquirindo características de postura e opinião que se costuma ver na militância partidária.
Outra descoberta é que o antipetismo, já consolidado como uma “identidade social” política, tinha se tornado o maior grupo “partidário” do país. Cruzando diversas pesquisas, eles fazem uma tabela com a evolução de quatro grandes grupos de opinião política: os militantes duros (hard-core partisans), os simpatizantes (positive-only partisans), os antimilitantes (negative partisans) e os não militantes. Os militantes duros (onde o PT representa quase a metade) caíram muito em 2014, para 14%, contra 21,7% em 2010 e 29,20% em 2006. Já os antimilitantes atingiram seu nível máximo em 2014, com 22,57%, assim como os não-militantes, que chegaram a 45% no mesmo ano.
Em seguida, eles separaram os grupos que orbitam em torno do PT, e que representariam perto de 40% do eleitorado: Petistas duros (hard-core partisans), simpatizantes petistas (positive-only petistas), anti-petistas puros (que não tem outro partido, apenas não gostam do PT) e anti-petistas de outros partidos.
Nota-se um crescimento constante do “antipetismo puro”, que atinge 15,59% em 2014, e, segundo os pesquisadores, continuava a crescer em 2015 e 2016 na esteira dos ataques midiáticos e das denúncias de corrupção.
Já os “petistas puros” seriam 7% em 2014, o menor percentual desde 1989, quando era apenas de 5,5%. O auge do petismo, segundo essa pesquisa, foi em 2006, quando o “petismo puro” chegou a quase 14% do eleitorado.
Quando os autores vão pesquisar as causas do antipetismo, notam, com certa surpresa, que elas variam com o tempo, de modo que eles concluem que o antipetismo “escolhe” suas razões conforme as circunstâncias. A corrupção não seria, de fato, o principal motivo, mas apenas aquele mais “à mão” para dar vazão a um sentimento. Em 1997, por exemplo, numa pesquisa que sondava as razões de não se gostar do PT, 17% dos entrevistados respondem que simplesmente “não gostam”. Já em 2006, quando as denúncias do mensalão vem à tôna, 46,5% afirmam que a principal razão era a corrupção e a perda de confiança.
Uma outra tabela que chama atenção é uma pesquisa inédita que os próprios autores organizaram entre outubro e novembro de 2015, via Facebook, e sobre a qual eles aplicaram técnicas estatísticas para lhe deixar mais ou menos conforme a realidade sócio-econômica e regional do eleitorado brasileiro.
A quantidade de respondentes categorizados como “antipetistas” foi de 747, num total de 2.099, ou seja 35%, ao passo que os “petistas” somaram 121 respostas, ou 6%.
Um outro aspecto interessante na pesquisa é que, segundo os autores, a clivagem entre petismo e antipetismo não se caracterizaria como “esquerda e direita”; suas pesquisas indicam que as diferenças ideológicas entre os dois grupos não apresentam diferenças relevantes nesses termos (para ler esse trecho, clique aqui e aqui).
A tese principal dos autores é que a política brasileira, por alguma razão, estruturou-se em torno desses dois núcleos duros de identidade: petismo e antipetismo.
Na história recente do país, concluem, nenhum partido conseguiu mobilizar tantas paixões e tantos ódios como o Partido dos Trabalhadores.
Um entendimento melhor sobre o caminhão que nos atropelou em 2018 passa pelo estudo desapaixonado, franco, objetivo, de todas essas questões, uma atenção redobrada para as ondas de opinião nas redes sociais, e o desenvolvimento da capacidade de ouvir e compreender as demandas das diferentes classes.