Em entrevista ao Roda Viva, que tive a pachorra de assistir inteira, com muita calma, para entender o contexto, o ex-presidente Michel Temer usou a palavra golpe várias vezes.
Em todas as vezes, porém, o fez com sutil ironia, como a zombar da versão da esquerda (e não apenas da esquerda, mas sobretudo dela) de que houve um golpe.
Intrigado, o jornalista Ricardo Noblat (minuto 48:52) faz uma pergunta direta:
“O senhor se referiu a essa questão como golpe, golpe, golpe. O senhor acha que houve um golpe?”
Michel Temer responde sucinta e peremptoriamente: apenas se a Constituição for golpista.
Em toda a entrevista, de qualquer forma, vê-se Michel Temer tentando se descolar da imagem de golpista. Assegura que não conspirou. Que tentou ajudar o governo até o último momento. Por fim, confirma que recebeu ligações de Lula e que estaria disposto a ajudar o ex-presidente a costurar fórmulas para evitar o impeachment.
Temer está no direito dele.
O que me espanta é que parte da esquerda, depois de tudo que sofremos nesses últimos anos, fruto de um impeachment profundamente traumático, e que foi o ápice de um processo tão doloroso de crise política, ainda dê algum crédito a Michel Temer!
Temer não fez nenhuma “mea culpa”, tampouco admitiu que foi golpe. Temer foi o capitão do golpe. Foi o conspirador principal, porque ele é quem assumiria o governo.
Admito apenas uma coisa: Temer é lhano no trato. Fala bem. Transmite serenidade. Essas características são virtudes para um político, e isso explica que tenha se mantido à frente de um dos maiores partidos do país durante tanto tempo.
Nesse sentido, Temer é o antípoda de Ciro Gomes, que entra nessa história porque alguns meios passaram a promover a incrível narrativa de que Michel Temer diz que é golpe, e Ciro Gomes, não.
A confusão teve início por causa de um erro estúpido (com perdão do termo, mas não tem outro) de um jornalista da CBN, que começa sua pergunta a Fernando Haddad, durante entrevista veiculada nesta quarta-feira, dizendo que “Ciro evitou tratar o impeachment como um golpe”.
Isso é (perdão mais uma vez) mentira.
A revista Forum separou o trecho que gerou a confusão do jornalista, embora tenha feito uma chamada um pouco exagerada, dizendo que “Ciro Gomes diz a Kennedy Alencar na CBN que o povo não quer saber de Lula Livre“. Ciro também não falou isso. O que o vídeo mostra é Ciro explicando que o Lula Livre não tem “centralidade” na luta do povo, que hoje está preocupado prioritariamente com o desemprego. É a mesma coisa que o próprio Lula iria dizer, horas depois, em entrevista ao editor da Forum, Rovai.
Aliás, no vídeo abaixo, Ciro afirma que a sentença de Sergio Moro condenando Lula é “nula”, e faz críticas duríssimas ao juiz; se houvesse um pouquinho de boa vontade por parte de petistas com Ciro, a chamada para esse vídeo poderia ser: “Ciro diz que sentença de Lula é nula”. Quem fala isso é, evidentemente, favorável à liberdade do ex-presidente, e adepto da tese de que ele não teve um julgamento justo.
Vamos ao vídeo de Ciro, em sua entrevista na CBN:
Ciro não é, definitivamente, uma pessoa “lhana”. É um cara muitas vezes ríspido, de uma franqueza brutal que beira a truculência. Às vezes comete exageros retóricos lamentáveis, e ele próprio tem sido sua principal vítima, como inclusive já admitiu muitas vezes. Numa de suas eleições, liderava o pleito, tinha chances reais de ganhar, mas acabou caindo em armadilhas fáceis montadas pela imprensa, irritou-se, e perdeu votos.
Esses defeitos do Ciro são inquestionáveis. Seus correligionários e seguidores, no entanto, devem considerar que ele tem qualidades outras que compensam esses defeitos. E por isso o líder da trabalhista, sem tempo de TV e sem recursos eleitorais, obteve 12% dos votos nas eleições presidenciais, conquistando o segundo lugar em diversas capitais importantes, como Belo Horizonte, Fortaleza, Florianópolis e Rio de Janeiro, tem lotado auditórios por onde passa, recebe convites constante para entrevistas, e mantém uma presença muito expressiva nas redes sociais.
Entretanto, daí a dizer que Ciro “evitou tratar o impeachment como golpe”? Ou pior, alimentar a narrativa de que Temer diz que foi golpe e Ciro não? Para que isso?
No vídeo da entrevista, vemos Ciro se referir ao golpe como golpe, apenas acrescenta, ironicamente, que o PT também usa o termo golpe; a ironia era necessária para explicitar o que, em sua opinião, seria a contradição petista de se aliar, dois anos depois, nas eleições de 2018, a forças políticas golpistas, como Eunício Oliveira no Ceará (inimigo político de Ciro no estado).
Quem acompanhou um pouquinho as lutas políticas dos últimos anos sabe que poucos quadros da esquerda denunciaram mais o golpe do que Ciro Gomes, e não apenas em palestras e entrevistas, mas de maneira ainda mais objetiva: o Ceará foi o estado que, proporcionalmente, mais deu votos contra o impeachment.
No auge da luta política contra o impeachment, em setembro de 2016, quando o Senado ainda não tinha fechado o caixão do golpe, o então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, deu entrevista ao Estadão afirmando que “golpe era uma palavra muito dura”. A entrevista virou capa no Estadão e chocou a própria militância petista.
Esse vídeo abaixo faz uma comparação da maneira como Ciro e Haddad trataram o impeachment naquele período:
Ciro tem muitos defeitos e pode-se não gostar dele, não votar nele, criticá-lo, é perfeitamente normal. Agora dizer que ele não considera o impeachment um golpe é simplesmente mentira.
Quanto a Michel Temer, pode ser lhano, cordial, se fingir de bonzinho, jurar que não era sua intenção dar o golpe, que aceitaria conversar de boa com Lula e ajudá-lo nas articulações da Câmara, mas… depois de tudo, é inacreditável que alguém ainda caia nessa lorota, e acredite nesse “conspirador filho da puta”.