23 de julho de 2019, dia em que os famigerados hackers de Araraquara foram presos, suspeitos de serem os autores da interceptação e repasse para o The Intercept Brasil das mensagens chocantes trocadas entre procuradores da Lava Jato, o ex-juiz Sergio Moro e outros personagens. Chamei um carro por um aplicativo de carona à tardinha. Entrei e cumprimentei o motorista, um cara simpático aparentando ter uns 50 e poucos anos. No rádio, falava-se sobre a prisão dos hackers. Pedi para ele aumentar o volume. Era o programa do Reinaldo Azevedo. O outrora antipetista mor desancava Moro, Dallagnol e a Lava Jato. Ouvíamos em silêncio. A certa altura do programa, alguém deu a informação de que Moro havia anunciado que o material encontrado com os hackers seria destruído. Não me contive e manifestei meu assombro. O motorista então falou: “Esses caras tinham que tá tudo preso!”. Desenvolvi um pouco mais a conversa para ter certeza de que ele estava falando de Moro, Dallagnol e cia. Estava.
Topar com esse tipo de crítica aberta à Lava Jato seria improvável há poucos meses atrás – e impensável há poucos anos.
Duas semanas depois do episódio dos hackers, a coluna Painel, da Folha, afirmou que, segundo pesquisas internas de partidos sobre sua aprovação, Moro “perdeu pontos na casa das dezenas”, mas “mesmo fraco é forte, maior que Jair Bolsonaro”. Na pesquisa Veja/FSB, divulgada no dia 23 de agosto, Moro aparece ostentando uma alta aprovação: 55% de “ótimo” e “bom”. Na última pesquisa do Datafolha, realizada nos dias 29 e 30 de agosto, 54% dos entrevistados afirmam que Moro faz uma gestão boa ou ótima no ministério da Justiça e Segurança Pública. No entanto, em uma pesquisa anterior do Datafolha, feita nos dias 4 e 5 de julho, 58% dos entrevistados consideraram como “inadequadas” as conversas entre Moro e os procuradores do MPF reveladas na Vaza Jato, contra 31% que as consideram “adequadas”.
As percepções da população sobre Sergio Moro parecem contraditórias, e são mesmo. Essa incoerência aparece em outras perguntas feitas na última pesquisa mencionada. Por exemplo: 59% dos entrevistados consideram que as irregularidades cometidas por Moro na Lava Jato “são graves” e suas decisões “devem ser revistas”, mas 54% consideram a condenação de Lula por Moro “justa”, sendo que este último índice não apresentou variação entre abril e julho de 2019; ou seja, a percepção da população sobre a prisão de Lula não mudou após a Vaza Jato.
Embora sua aprovação popular siga em um patamar elevado, não se pode dizer o mesmo do prestígio de Moro no Poder Judiciário e junto ao próprio presidente Bolsonaro. A decisão do Supremo Tribunal Federal que requisitou o material obtido com os hackers presos (passando por cima do estapafúrdio anúncio que Moro fez a um ministro do STJ de que os materiais encontrados com os hackers seriam destruídos) e a decisão que impediu a transferência de Lula para um presídio paulista foram indícios iniciais importantes da mudança de postura do Judiciário em relação aos desmandos lavajateiros. Mais recentemente, a decisão que anulou, pela primeira vez, uma sentença de Sergio Moro proferida no âmbito da Lava Jato é ainda mais emblemática. A Suprema Corte, outrora nem tão suprema assim diante do bumbo punitivista tocado pela mídia conservadora, sente que o clima político está tornando-se propício para o enfrentamento com Moro e o autoritarismo penal que ele personifica – o que é o mínimo diante do festival de obscenidades jurídicas, políticas e morais de Dallagnol, Moro e demais cruzados do combate à corrupção reveladas pelo The Intercept.
Já Bolsonaro entrou em rota de colisão com seu ministro em virtude das tentativas de ingerência do presidente na Polícia Federal – com a visível finalidade de impedir o aprofundamento de investigações sobre seu clã familiar – e por conta do corte no orçamento do ministério da Justiça e Segurança Pública. Sobre o novo Procurador Geral da República, recém escolhido pelo presidente, Moro sequer foi consultado – e seu candidato, por óbvio, não foi o escolhido. A motivação de Bolsonaro para esta fritura em fogo brando de Moro é evidente: impedir que qualquer nome de direita possa fazer-lhe sombra na disputa eleitoral de 2022.
Mesmo com sua inaptidão para julgar Lula confirmada inapelavelmente pela Vaza Jato e sendo fustigado por seu próprio chefe, a resiliência de Moro nos índices de aprovação popular torna seu futuro uma incógnita. Terá força política para sair da sombra do presidente e candidatar-se? Se sim, por quanto tempo? As reiteradas garantias de Glenn Greenwald de que estamos mais próximos do começo do que do fim da Vaza Jato indicam que virá à tona mais material explosivo contra o ex-juiz. É um fato que sua aura de baluarte do combate à corrupção, construída com tanto esmero, está, ainda que lentamente, evaporando. Um apostador deveria jogar suas fichas no opróbrio lento e agônico de Moro e não em um sucesso eleitoral.
Coerente com o objetivo de se firmar como nome único da direita para 2022, Bolsonaro passou a desferir sopapos verbais também em João Doria, insinuando até que o governador de São Paulo era “amigo do PT” – não há limites para o tosco macartismo à brasileira. O escorregadio Doria apenas vem apenas se esquivando dos ataques, por enquanto, sem partir para o confronto direto. Ele sabe que é o favorito para ser ungido pela Globo e pelo ente misterioso que chamamos de “mercado” na próxima disputa presidencial. Escaldado pelo seu próprio açodamento – quando foi eleito prefeito de São Paulo, em 2016, saiu em desabalada campanha para ser o candidato à presidência pelo PSDB e caiu do cavalo -, Doria mudou sua linha e deve tentar aparentar menos avidez pelo cargo máximo da República nos próximos meses. Por esses dias surgiu o boato de que Doria estaria cogitando atrair Moro para ser seu vice na disputa presidencial. Seria uma chapa forte da direita e uma possibilidade de salvação política de Moro. Caso seja mesmo Doria o adversário de Bolsonaro à destra, a estratégia de campanha provavelmente será apresentá-lo como diferente do atual presidente: menos tosco, menos autoritário, menos preconceituoso… Ocorre que seu “projeto” econômico é quase idêntico ao do atual governo: privatizações e corte de investimentos públicos.
E é em cima deste ponto que a oposição tem uma tarefa central: colar Doria ou qualquer outro nome que a direita venha a apresentar no desastre econômico ao qual o governo Bolsonaro está levando o país.
Diante do patente desastre deste liberalismo econômico rasteiro que não dá certo em lugar nenhum – como bem sabem os argentinos depois de quatro anos de governo Macri – a oposição faria bem em propor um programa radicalmente diferente. Defender de forma enfática o papel do Estado como indutor da economia, retomar a discussão sobre uma auditoria da interminável dívida pública, propor a utilização de parte das reservas internacionais para impulsionar a economia com investimentos públicos em infraestrutura, educação, saúde e na retomada da indústria, retomar os investimentos em ciência e pesquisa. Diante do paradoxo infinito do liberalismo, segundo o qual a política econômica do governo nunca é liberal o suficiente – é preciso sempre cortar mais investimentos e vender mais patrimônio, mesmo que não haja sinal algum de que isso faça a economia reagir -, não temos o direito de reeditar uma política econômica vacilante ou mesmo submissa, como foi a dos governos petistas em alguns momentos e especialmente após a eleição de 2014.
Recordo-me de Dilma Rousseff justificando a política contracionista de Joaquim Levy com o argumento de que o dinheiro para investimentos públicos havia acabado, sendo que as reservas internacionais acumuladas – as quais cresceram vertiginosamente a partir de 2006, por mérito dos próprios governos do PT – poderiam ter sido usadas para evitar o aprofundamento da crise econômica. Outra atitude estarrecedora de Dilma foi o veto à auditoria da dívida pública, aprovado pelo Congresso no auge das turbulências pré-impeachment, sabe-se lá como. Sua estratégia de ceder os anéis para ficar com os dedos acabou resultando na perda da mão, dos braços e do corpo democrático inteiro do país.
É evidente que o PT tem méritos em seus longos 13 anos de poder: política externa altiva e estratégica, uso da Petrobras como alavanca para o crescimento do país, nível de emprego baixo, aumento do poder de compra da população, expansão do acesso ao ensino superior. Não à toa Lula ainda é a referência política para uma parcela enorme da população. Reparem na foto abaixo, tirada por mim no dia 24 de julho, um dia após a prisão dos hackers de Araraquara:
Em um clássico boteco popular brasileiro, algumas pessoas, provavelmente trabalhadores (alguns estavam uniformizados), assistem, compenetradas, uma entrevista de Lula à Folha de São Paulo, feita na prisão onde Lula está trancafiado há mais de ano. A entrevista é exibida em uma TV conectada à internet, provavelmente por meio do YouTube. Dois elementos importantes saltam aos olhos a partir desta imagem: as poderosas possibilidades que a popularização da internet fornece ao campo progressista para uma comunicação direta com a população e, como já dito, a permanência da popularidade de Lula junto ao setor mais atingido pelas políticas econômicas da direita. O martírio a que o ex-presidente está sendo injustamente submetido reforça sua mítica de líder popular, mas há que se separar o martírio do projeto.
Não há sinais, tanto nas declarações de Lula quanto nas de Haddad na última eleição, de que o PT pretenda fazer algo diferente, em matéria de política econômica, do que foi feito no período em que governou o Brasil – e todos estamos vendo com que facilidade Temer e agora Bolsonaro vêm destruindo as conquistas civilizacionais do último período. É preciso vontade política e assertividade para fazer – ou ao menos suscitar o debate na sociedade sobre – mudanças estruturais quanto à dívida pública, ao sistema tributário, ao sistema político e o fomento à indústria no Brasil.
O PSOL tem radicalidade no seu projeto mas não apresenta os meios de colocá-lo em prática. Sem fazer alianças táticas com partidos e setores não alinhados ideologicamente não parece haver perspectiva de chegada ao poder. Citar os governos do PT como exemplo cabal de que alianças mais amplas não dão certo é uma simplificação analítica grosseira, uma vez que justifica um fracasso por um fator tomado isoladamente. Uma maior combatividade e radicalidade nas pautas não pode significar sectarismo. Sem atrair setores da população e setores da política que não se alinham de forma ferrenha a um campo ideológico, a oposição não sairá do gueto em que está espremida e de onde assiste, atônita, a implosão do país. Além disso, o poder institucional é muito, perdão pela redundância, poderoso para que o desprezemos. A direita tem o capital, os conglomerados de mídia e o Judiciário ao seu lado. Vamos abdicar do naco de poder que a democracia atual, bem ou mal, nos dá acesso porque temos medo de repetir a tragédia das alianças petistas? Que aprendamos com os erros do PT, em vez de nos isolarmos, traumatizados.
Eu sei que não são eleições que vão derrubar o sistema capitalista – e este, está cada vez mais claro, precisa dar lugar a outra forma de a sociedade se organizar, para que a praga do egoísmo que mata o potencial criativo e solidário das pessoas seja transcendida pela humanidade. Não há caminho fácil, mas sem uma mudança drástica na educação (nas suas premissas, forma e conteúdo) e sem uma democratização das comunicações é virtualmente impossível cultivar uma mentalidade revolucionária no povo brasileiro. A disputa por cargos eletivos que têm poder para mexer nessas questões é, não tenho dúvidas, uma importante frente de batalha para, quem sabe, tornarmos realidade a fantasia do “marxismo cultural” que pulula nas mentes olavianas.
Não é fácil, por óbvio, compor com setores da sociedade nos quais aflorou um antiesquerdismo doentio. É necessário, contudo, tentar. O PDT vem tentando diferenciar-se do PT quanto ao projeto para o país e aos métodos na disputa política. Tem a seu favor o brilhantismo de Ciro Gomes e o projeto mais consistente, na minha visão, do campo da oposição, e como pontos fracos uma base parlamentar fragmentada e uma retórica agressiva demais de Ciro em relação ao PT, a qual acaba afastando a imensa base social petista.
As fraturas políticas e emocionais geradas pelo embate entre petistas e pedetistas nas últimas eleições estão longe de cicatrizar, como bem demonstra a resistência de Lula a admitir que a postura de isolar Ciro enterrou a possibilidade de vitória do campo progressista. “Ele [Ciro] queria que eu deixasse o PSB para ele? Que largasse o PCdoB? Não tem sentido”, disse Lula em uma entrevista recente a Bob Fernandes. Pensando apenas sob a lógica partidária não tem sentido mesmo, mas se a ideia era adotar a melhor estratégia para que Bolsonaro não chegasse ao poder, a realidade demonstrou que o caminho escolhido por Lula e pelo PT foi desastroso. A postura de Lula somada ao rechaço sumário de Ciro a qualquer aliança com o PT torna difícil o vislumbre um trabalho conjunto entre os partidos mais proeminentes da centro esquerda brasileira. Esse racha pode ser novamente fatal para os planos da oposição de retornar ao poder.
De todo modo, essas tensões não são impedimento para que a esquerda retome sua tradição democrática e popular dos anos 80 e 90 nas eleições municipais do ano que vem – até porque a política local é regida por peculiaridades de cada cidade, muitas vezes destoantes das brigas nacionais. Os partidos progressistas bem que poderiam, a partir de suas direções nacionais, estaduais e municipais, impulsionar uma onda de ações e debates nas cidades, que envolvam candidatos e militantes de partidos diversos, movimentos sociais, entidades de bairro, igrejas e a população em geral, para discutir problemas locais e conectá-los à realidade nacional e mundial, chegando, quem sabe, a prévias para definição de candidaturas majoritárias. Debates abertos a todos, para discutir projetos, os quais em seguida podem alimentar as redes sociais e estender a discussão para mais pessoas.
A dialética permanente entre militantes, candidatos e cidadãos pode ser o caminho para que a esquerda retome sua tradição de construção partidária pela base. Quando os partidos do campo popular se burocratizam e tomam todas as decisões “por cima”, fica mais difícil para a população diferenciá-los dos partidos conservadores. Para que isso aconteça, é necessário um exercício de “arrefecimento do ego”, digamos assim, das lideranças partidárias. É natural que no decorrer das duras disputas políticas cotidianas, os dirigentes se esqueçam de que a inescapável briga pelo poder é apenas um meio para se atingir os fins mais nobres da política: justiça social, educação e saúde de qualidade, oportunidades para todos.
Este movimento é ainda mais necessário pelo singelo motivo de que estamos sob o governo de um lunático de extrema-direita. O caos instalado pelos discípulos de Olavo de Carvalho segue em frente. Nessa situação limite, construir a resistência pela base da sociedade é um imperativo. Além disso, qualquer um que se oponha a Bolsonaro em alguma questão deve ser tratado como um aliado. A arte sutil de combinar trabalho de base, alianças pontuais com setores diversos e diferenciação do conservadorismo no campo econômico deve ser o norte permanente da oposição.
Em que pese um aumento lento porém constante na reprovação do presidente, ele mantém uma base de apoio coesa e, eis o busílis, é o detentor do poder central. Sendo que, não esqueçamos, seu governo tem apenas 8 meses completos. O estrago, contudo, já é amazônico, como ficou patente para o mundo todo no episódio das queimadas. A política de incentivo à destruição ambiental do governo federal colou em Bolsonaro a pecha de vilão mundial do desmatamento e do aquecimento planetário. Sua humilhante prostração à Donald Trump apenas reforça a péssima imagem que Bolsonaro construiu para o Brasil ao redor do globo. Noam Chomsky define precisamente essa aliança macabra:
Estamos chegando a um ponto em que os danos ambientais são irreversíveis. Se passar disso, será o fim da vida humana organizada no planeta. E temos gente como Trump e Bolsonaro negando que exista aquecimento global e adotando políticas que o exacerbam. Para mim, eles são os maiores criminosos da história. Hitler queria matar todos os judeus, mas essas pessoas estão dizendo: “Vamos matar toda a sociedade, destruir tudo e ter lucros.
Eis o potencial macabro do nosso adversário.
Se Bolsonaro e Trump não destruírem o planeta antes, vamos ter que lidar com a sanha autoritária e a fúria antipovo do ex-capitão por algum tempo. Episódios que fedem à ditadura como a interrupção, pela PM, de shows em que houve críticas a Bolsonaro, censura de filmes e revistas, declarações grotescas e desumanas, atentados violentos como o ocorrido contra o bar de refugiados Al Janiah, em São Paulo, bem como ataques sem precedentes a direitos dos trabalhadores e ao serviço públicos, terão que ser enfrentados com coragem, inteligência e estratégia.
Para que emerja do caos um Brasil que, além de saber o que não quer, saiba para onde caminhar.