Por Rogerio Dultra dos Santos
O Brasil é hoje o país dos tenentes. E não só pelo Presidente Jair Bolsonaro, um ex-militar.* Mas, em especial, pela movimentação político-partidária dos procuradores de piso do Ministério Público Federal, no coração da já famigerada “Operação” Lava-jato.
O caráter político-moral e messiânico dos tenentes não é uma novidade na história do Brasil e nem o é a comparação dos moralistas de antanho com os demiurgos da Lava-jato. O cientista político Luiz Werneck Vianna já alertava para o monstro forjado pelo recuo das instituições políticas ante o avanço do corporativismo midiático da República de Curitiba ainda em 2016 (https://www.ocafezinho.com/2016/12/20/juizes-e-procuradores-que-se-comportam-como-tenentes-de-toga-afirma-luiz-werneck-vianna/)
Apesar do professor Werneck lembrar que nos anos 1920 os tenentes não eram somente os aventureiros que se lançaram para a morte na tomada do forte de Copacabana, eles tinham projeto de reforma política e econômica definido.
Em seu livro de 1932, João Cabanas escrevia sobre o exemplo de um obtuso líder do movimento militar que, como tantos outros, se tornara interventor de Getúlio Vargas: “Colocado, por inexplicáveis manobras e por circunstâncias ainda não esclarecidas, na chefia do mais importante estado do Brasil, revelou-se de uma extraordinária, de uma admirável incompetência, criando, em um só ano de governo, um dos mais trágicos confusionismos de que há memória na vida política do Brasil, dando também origem a um grave impasse econômico (déficit de 100 000 contos), e a mais profunda impopularidade contra a Revolução de Outubro, e ‘ter provocado no povo paulista, um estado de alma equívoco e perigoso’. Nossa história não registra outro período de fracasso tão completo como o do tenentismo inexperiente!”.
Sabemos hoje que esse estado de confusão entre salvacionismo, militarismo, política e direito produziu na história movimentos muito mais radicais que o gerado pelo tenentismo brasileiro. Parte dos tenentes getulhistas abraçou o golpe de Estado e legitimou uma constituição de fachada que lhe assegurava poder político, reeditando de forma modernizada o velho coronelismo do voto de cabresto: a partir de Vargas, os tenentes sequer precisaram de sufrágio para que se tornassem senhores dos Estados.
Para além do Estado autoritário, antiliberal e semi-fascista de Vargas o mundo viu surgir um movimento muito mais radical e paradigmático: o nazi-fascismo.
Ernst Fraenkel, no seu clássico O Estado dual (1941), argumentava que na Alemanha sob Hitler coexistiam duas formas institucionais do direito. No campo cível, as normas jurídicas e os processos e procedimentos judiciais e administrativos garantiam a propriedade privada numa regularidade e numa normalidade que se chocavam com a situação da área pública. No campo penal e administrativo vigorava o Estado de Prerrogativa, o mando do füher, a mais violenta arbitrariedade.
Essa aparente dupla face das instituições sob o nazismo não teria outro desfecho senão o domínio do Estado de Prerrogativa sob todos os campos da vida social, o que soterraria os resquícios formais do Estado de Direito.
A questão que se coloca hoje é a seguinte: é possível que a era Bolsonaro/Lava-Jato possa ser considerada uma revivescência institucional-judicial do moralismo tenentista em conjunção ao Estado de prerrogativa nacional-socialista da Alemanha dos anos 1930?
Para um início de resposta, acrescente-se à conjuntura atual a eclosão de uma violência contra as classes subalternas mediada pelo racismo estrutural que nos acomete. Violência de classe que encontra perfeito eco em parte significativa de nossos governantes. O poder grotesco aparecendo seja nos atos do Presidente da República, seja em governadores como Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, ou João Dória, de São Paulo.
O discurso – e a prática – potencialmente genocida do Presidente ecoa por estes seus correligionários, que o emulam com o desejo nada oculto de substituírem num futuro próximo o pai político, dando segmento ao projeto barbaro de dissolução de uma civilidade ainda em gérmen.
O resultado é o incremento da violência de Estado nas periferias, com a população pobre e negra sendo exterminada como insetos, bem ao estilo do desejo de políticos fascistas, como o penalista italiano Enrico Ferri. Este desejava que a profilaxia sanitarista atingisse as escolas públicas, identificando criminosos na mais tenta idade e os isolando em navios a serem afundados preventivamente.
A imaginação fascista para a barbárie não tem limites. E o Brasil se mostra um terreno cada vez mais fértil para o seu desenvolvimento. Senão, vejamos.
Os vazamentos do The Intercept desnudam não somente o enviesamento político do processo penal no Brasil mas o projeto de tomada de poder imaginado nos devaneios mais recôndidos, nos mais loucos desvarios dos chats privados que Deltan Dallagnol, o tenente lavajatista, mantinha consigo próprio.
O projeto moralista de limpeza da política, característico de mentalidades autoritárias, transmutou-se rapidamente em projeto de poder. Não é por acaso que Sérgio Moro não estava só. As instituições judiciais, transformadas em balcão de negócios escusos, forjaram-se como trampolim político para todos os que assim desejassem fazê-lo.
No caso das quimeras políticas de Deltan, acrescente-se que os aliados de sempre, como o Senador Álvaro Dias, figuravam como plenamente descartáveis diante do messianismo redentor do procurador.
Mas este, o chefe do que se pode chamar de uma verdadeira quadrilha formada em Curitiba sob o olhar condescendente das agências de controle, tinha razão em sua estratégia: para que se lançar Senador sem que a corporação entrasse de vez na política como um todo?
O sentido politico da corporação teria que se realizar como projeto corporativo de poder. Ecos do tenentismo.
Mas esse projeto de poder só seria possível ao Ministério Público Federal se este assumisse não somente as pretensões políticas dos tenentes de Curitiba, mas também incorporasse como usuais e regulares as práticas aberrantemente ilegais e inconstitucionais realizadas durante a “Operação” Lava-jato.
Neste projeto, o Estado de Prerrogativa realizado no ensaio da Lava-jato em Curitiba se expandiria como um câncer por todo o parquet.
O Partido Lavajatista encontraria uma instituição – o MPF – para se ocupar do financiamento desta nova aventura, que seria a de substituir a classe política corrupta por um conjunto de cruzados ungidos por Deus, instituintes do que provavelmente seria um dentre muitos projetos de Estado ditatorial teocrático em gestão hoje no país.
Assim, não é exagero afirmar que o tenentismo fascista e proto-teocrático do Presidente Jair Bolsonaro encontrou um seu espelho no tenentismo corporativo-fascista moralista teocrático da “Operação” Lava-jato (que pode ser chamado em resumo de lavajatismo) de um de seus líderes.
Ai de nós se dependêssemos apenas do movimento histórico das estruturas econômicas e sociais. Ai de nós se não aparecesse um sujeito histórico forjado para abalar essa estrutura. E aqui não falo ainda de partidos e movimentos sociais. Falo do competente Glenn Greenwald e de sua estratégia jornalística de desmontar, uma por uma, as mentiras e de denunciar, um por um, os crimes do lavajatismo que ainda quer avançar sobre nós.
Graças a Glenn, o nosso tenentismo lavajatista está morrendo na praia, desta vez de forma bem pouco heróica.
*A primeira versão deste artigo informava erroneamente que o Presidente Jair Bolsonaro era um tenente que virou capitão quando se aposentou. Está informação é errônea e foi corrigida no texto atual.