MPF divulga relatório sobre violência religiosa e debate perseguição contra religiões afro-brasileiras
Em seminário realizado na PR/RJ, profissionais de diversas áreas e representantes da sociedade civil debateram o aumento da violência contra religiões de matrizes afro-brasileiras
O auditório da Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro (PR/RJ) foi palco do seminário “Perseguição religiosa: um estado de coisas:cenários e desafios”. Promovido pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), com apoio da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), o evento aconteceu na última quarta-feira, 28 de agosto. Profissionais de diversas áreas e representantes da sociedade civil debateram o aumento da violência contra religiões de matrizes afro-brasileiras.
Abrindo o debate, o procurador da República Jaime Mitropoulos, integrante do GT de Enfrentamento ao Racismo da PFDC, apresentou o trabalho realizado pela relatoria Estado Laico e Violência Religiosa. A relatoria foi criada após o fórum interreligioso de São Paulo ter denunciado o aumento dos casos de intolerância religiosa em todo Brasil e teve como objetivo verificar a efetividade de políticas públicas nacionais de promoção da igualdade racial, de salvaguarda da diversidade cultural e de proteção às minorias religiosas.
Durante um ano, a relatoria diligenciou junto a Procuradorias Regionais dos Direitos do Cidadão, Ministérios Públicos Estaduais, Secretarias de Segurança Pública e de Direitos Humanos em todos os estados da federação, bem como ao então Ministério dos Direitos Humanos. Além disso, a relatoria coletou dados, estatísticas e juntou notícias de casos de violência praticada por motivação religiosa.
Na sequência, o procurador expôs algumas das conclusões da relatoria. Preconceito, discriminação, racismo, inclusive o racismo religioso, são flagelos que atravessam a história do Brasil e estão presentes no nosso cotidiano. Contudo, constatou-se, nos últimos anos, o recrudescimento da violência religiosa em face das religiões de matrizes afro-brasileiras. São repetidos casos de apedrejamentos, depredações, incêndios criminosos, atentados contra a vida e o sagrado.
Em paralelo ao crescimento do número de casos de violência, proliferam discursos de ódio religioso. Com o denominado proselitismo destrutivo, alguns segmentos religiosos usam meios de comunicação para atacar religiões de matrizes africanas. Mitropoulos ilustrou a situação com um fato, narrado em ação proposta em 2014, no qual um líder religioso incentivava fiéis a “fecharem terreiros do bairro”.
Atualmente, na baixada fluminense, estão em evidência sistemáticos ataques desferidos pelo que ficou conhecido como “bondes de Jesus”. São bandos armados que invadem, ameaçam, torturam, fecham casas, expulsam pessoas de suas comunidades. Proíbe-se a utilização dos instrumentos litúrgicos. Em razão da natureza e da gravidade dos fatos, é possível falar, além dos crimes da lei 7716/89, em terrorismo religioso.
“Está em curso uma sistemática ofensiva fundamentalista com o objetivo de varrer comunidades religiosas de matrizes afro-brasileiras do mapa e apagá-las da memória. São crimes de ódio contra humanidade que vêm sendo praticados em série. A reiterada violação aos direitos fundamentais vem interferindo na vida de comunidades que estão sendo impedidas de expressar sua fé e de viver de acordo com suas tradições e cultura”, afirmou o procurador.
Outro dado da realidade, nesse mesmo contexto, é a desproporção entre o crescimento desse extremismo religioso e os casos não elucidados. “Ainda existe uma combinação de omissão e ineficiência do estado em grande parte condicionada pelo racismo estrutural até hoje existente”, destacou.
“Culturicídio” – O historiador e escritor Luís Antônio Simas também abordou os ataques sistemáticos sofridos pelos adeptos das religiões de matrizes africanas e o quanto isso está relacionado a um processo histórico de tentativa de “branqueamento” da população brasileira, desde a época de colonização. Simas enfatizou a importância da influência afro-ameríndia na construção da cultura carioca: “O momento é muito grave. É um ‘culturicídio’. É necessário encontros como esses. É urgente dar voz aos acontecimentos e lembrar das influências africanas na cultura brasileira, sobretudo na cultura carioca. Desafio a qualquer um aqui a me falar algo da cultura carioca que não seja influenciada pela África. Não existe.”
O historiador também discorreu sobre o desastre que foram os mais de trezentos anos de sequestros e de tráfico de escravizados, ensinando que a cultura afro-ameríndia é uma forma de resistência ao colonialismo. Nessa linha, acrescentou que o comportamento denominado “colonialidade” sempre buscou e ainda hoje busca apagar a cultura diaspórica, na qual se inserem as religiões de matrizes africana e indígena. “Ainda está em curso o projeto colonial que tenta aniquilar essas culturas”, alertou o palestrante.
A jornalista Flávia Oliveira abordou a questão sob o ponto de vista da cobertura jornalística. A imprensa hegemônica, tal como o Estado, a Igreja Católica, a polícia e o Judiciário, participou no passado da desqualificação, folclorização e demonização das religiões afro-brasileiras. Nos anos seguintes à Constituição de 1988, que coincidem com a perseguição crescente por denominações neopentecostais e, mais recentemente, organizações criminosas, ela, imprensa, tem papel relevante nas denúncias de agressões a religiosos e ataques a terreiros. Mas tem um porém, alertou a jornalista: “Falta uma abordagem mais atenta sobre mitos, práticas e herança cultural dos afrodescendentes e dos povos indígenas. Isso não está presente na imprensa porque falta diversidade nas equipes, nas pautas e nas colunas de opinião. Jornais têm católicos como colunistas, mas não têm umbandistas, candomblecistas e nem mesmo evangélicos em seu elenco formadores de opinião. Uma presença maior naturalizaria o debate; faria bem à sociedade”, defendeu.
A juíza federal Adriana Cruz, analisando a questão sob o prisma da Lei n.13.260/2016, falou sobre a possibilidade de caracterizar alguns casos de violência religiosa como terrorismo, além da configuração do crime de racismo religioso, previsto na Lei n.7.716/89. A magistrada frisou que o sistema de justiça como um todo deve conhecer e estar melhor preparado para identificar, analisar e julgar os casos de racismo e de intolerância religiosa.
Daniel Sarmento encerrou os debates na parte da manhã. Professor de Direito Constitucional, Sarmento discorreu sobre o conceito de laicidade, enfatizando que a neutralidade do Estado não o exime do dever de restaurar o equilíbrio democrático, quando a liberdade religiosa de determinados grupos está sendo violentada por outros segmentos da sociedade. O professor da UERJ também abordou o estado de coisas caracterizado pela sistemática violação de direitos fundamentais. Por fim, o constitucionalista reforçou a urgente necessidade de estimular o debate e investir no campo da educação.
Histórico de perseguição – Abrindo o segundo bloco do evento, mediado pelo procurador da República Sergio Suiama, a promotora de Justiça do MP/BA Livia Santana, integrante do GT de Enfrentamento ao Racismo, realizou uma análise da historicidade jurídica de todo um legado de racismo religioso existente desde a época do Brasil-Colônia.
De acordo com a promotora, quando o Brasil passou a ter um regimento jurídico próprio, através da Constituição Imperial de 1824, a mesma definia o catolicismo como religião oficial. A palestrante explicou como as religiões de matrizes africanas continuaram a ser perseguidas ao longo do tempo, através do sistema legal construído para perpetuar o tratamento desigual. Isso permaneceu acontecendo mesmo após o advento do estado laico brasileiro, em 1891.
Livia Santana relembrou o episódio que ficou conhecido como “Operação Xangô” ou “Quebra ”, ocorrido em 1912, em Maceió, onde houve depredação de templos e terreiros da capital alagoana e espancamento de praticantes de religiões de matriz africana em praça pública. “O ‘Quebra de 1912’ deu origem ao ‘Xangô rezado baixo’, fenômeno de silenciamento das religiões afro-brasileiras naquele Estado. Rituais de matrizes africanas passaram a ser realizados em locais fechados, sem palmas, sem atabaques e objetos litúrgicos característicos. Estamos repetindo essas atrocidades da nossa história. A “Operação Xangô’ ainda acontece hoje”, narrou a promotora enquanto mostrava imagens das manchetes dos jornais da época. Livia Santana também lembrou a morte de Mãe Gilda, que faleceu após sofrer insultos por parte de um jornal, em Salvador, em 2000. Por causa do episódio, o 21 de janeiro foi escolhido como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.
As produções culturais também foram pauta de debate neste segundo painel. Neste mês, a imprensa noticiou a censura praticada pelo Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF), no Rio de Janeiro, contra três filmes que seriam exibidos na Mostra do Filme Marginal, a ser realizada em setembro. Um dos filmes vetados, o documentário “Nosso Sagrado” (2017), que também aborda a questão do racismo institucional contra religiões de matriz africana, foi desaprovado sob a alegação de adotar caráter partidário. A pastora da Igreja Luterana e integrante do Conselho Estadual de Promoção e Defesa da Liberdade Religiosa (Coneplir), Lusmarina Garcia, citou o fato como um “exemplar de discriminação e de preconceito institucional” e se referiu às últimas falas do presidente da República como “um discurso permissivo da violência religiosa”.
Na sequência, a promotora de Justiça e assessora de Direitos Humanos e Minorias do MP/RJ, Eliane Pereira, reforçou o discurso dos outros convidados acerca do racismo religioso contra as religiões de matrizes africanas. A promotora trouxe ao debate estatísticas de evasão escolar, a taxa de natalidade materno-infantil e o registro de mortes da população negra em operações policiais. Eliane ressaltou a importância de facilitar o diálogo dentro das instituições.
O procurador da República e também integrante do GT de Enfrentamento ao Racismo, Sérgio Suiama, agregou ao tema a desigualdade na aplicação da lei decorrente da perseguição desproporcional contra praticantes de religiões afro-brasileiras e destacou estratégias de combate ao racismo religioso: “Para enfrentar a intolerância religiosa de maneira mais efetiva, não devemos nos ater somente à solução penal. É importante investir em educação, sensibilização e laços de solidariedade, pois são questões que se combinam”, completou.
Fechando o bloco, a Iyalase, professora e pesquisadora do Centro de Tradições Afro Brasileiras, Dolores Lima, apresentou a pesquisa sobre casos classificados como intolerância religiosa, parceria entre o Fórum de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (Fonsapotma) e a Universidade Federal Fluminense (UFF). O levantamento, realizado de 2011 à 2017, revelou denúncias contra invasões aos terreiros e agressões a sacerdotes e adeptos a estas religiões, o que foi classificado por Dolores como “a sociedade civil começando a trabalhar para a criação de aparato estatal (contra o racismo religioso)”. A Iyalase, durante a palestra, apresentou fotos de execuções de autoridades tradicionais de matriz africana, crimes estes praticados Brasil afora.
Educação para tolerância – Educação foi um dos principais assuntos debatidos durante o terceiro painel do seminário, que teve como mediador o procurador da República e integrante do GT de Enfrentamento ao Racismo, Julio Araujo. Entre os especialistas presentes, a mesa contou com o babalawô e professor Ivanir dos Santos, o pesquisador e escritor Haroldo Costa, a superintendente de Igualdade Racial e Diversidade Religiosa do Estado do Rio de Janeiro, Monalyza Alves, o jornalista Aloy Jupiara e o delegado da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), Gilbert Uzêda Stivanello.
O procurador Julio Araujo iniciou o bloco falando da importância da temática do seminário e passou a fala para o babalawô e professor Ivanir dos Santos, que observou a necessidade de se entender como o pensamento racista foi construído, para, a partir desse ponto, buscar uma desconstrução.
Para embasar sua fala, Ivanir usou pensadores europeus como Hegel e Kant, que discutem sobre África e negritude. “Não tem como a gente desconstruir um pensamento sem primeiro compreender como eles foram feitos”, afirmou Ivanir, que ainda pontuou que tudo o que tinha a ver com os negros, com religiões de matrizes africanas, eram tidas como do demônio. Ivanir finalizou ressaltando que “as pessoas só têm medo disso, do desconhecido, porque justamente não o conhecem, não tem a educação necessária para compreendê-lo”.
Haroldo Costa também usou a educação para abordar o assunto perseguição religiosa. Ele diz que as palavras tolerância e intolerância não são válidas para discutir sobre o assunto, pois são termos que possuem uma conotação de aceitação ou não, perante a algo que não se quer ou não se pode impedir. Haroldo frisou que o correto é exigir respeito.
“Para que a mudança se torne eficaz, é preciso de educação. Apenas dessa maneira vai existir mudança e acima de tudo respeito”, disse Haroldo, que também ressalta a importância da arte: “A arte brasileira não existiria se não fosse a presença dos negros.”
Já a superintendente de Igualdade Racial e Diversidade no Rio de Janeiro, Monalyza Alves, apresentou os principais desafios nas questões que envolvem religiões de matrizes africanas. “Temos que lidar com a falta de continuidade da política pública, a municipalização do problema, o descrédito”, pontuou Monalyza. Além disso, a superintendente ressaltou os avanços obtidos nos dois últimos anos: “Conseguimos capacitar alguns agentes de segurança do Rio e também promovemos seminários e rodas de conversas em terreiros”.
“O sol há de brilhar mais uma vez!” O verso, da música “Juízo Final”, de Nelson Cavaquinho, foi declamado pelo jornalista Aloy Jupiara, que voltou ao assunto educação e sinalizou a necessidade de levar informação a todas as pessoas sobre os ataques ocorridos nos terreiros. “Precisamos sair daqui com ideias para trabalhar com ações. Esses ataques não são apenas contra os negros, é contra o todos, contra o Brasil”, destacou.
Aloy também criticou a falta de espaço que esses ataques a terreiros recebem nas redações dos jornais. O jornalista também argumentou que isso é muito devido ao desconhecimento e, no caso do Rio, pelo fato dos crimes acontecerem em bairros e regiões ditos da periferia, distantes do olhar das redações. Aloy foi mais um debatedor a enxergar tais crimes como terrorismo religioso, sustentando que é preciso traçar uma estratégia de comunicação eficiente para levar as denúncias desses crimes a toda a sociedade brasileira.
Finalizando o último painel, o delegado Gilbert Uzêda Stivanello explicou um pouco sobre o trabalho feito pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, no Rio de Janeiro. Gilbert pontuou os casos mais recorrentes na Decradi: homofobia, que responde por 39% da demanda; seguida do racismo, com 30%; depois a intolerância religiosa, com 26% e por último a xenofobia, com 5%.
Na temática da intolerância religiosa, o delegado ressaltou: “A questão mais grave é a invasão aos ilês, o terrorismo que é criado em cima dos praticantes e das lideranças religiosas”, afirma. Ele terminou falando como a Decradi atua nesses casos: “A primeira preocupação é fazer com que essas pessoas se sintam acolhidas e se sintam seguras, depois recolhemos o depoimento delas, para conseguirmos averiguar tais casos”, finalizou.
Desafios – Encerrando o seminário, os procuradores da República Júlio Araújo e Jaime Mitropoulos enfatizaram a importância da ampliação dos debates e de conferir efetividade às políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial e a proteção da diversidade cultural.
Ainda durante sua exposição a respeito da relatoria Estado Laico e Violência Religiosa, Mitropoulos elencou os principais desafios.
O primeiro é retirar o véu da invisibilidade que ainda encobre as atrocidades que vêm sendo praticadas. Outro é acabar com a impunidade. O Estado precisa agir de forma proporcional, punindo quem executa e quem orquestra e estimula essa perseguição. O maior desafio, porém, é reforçar o respeito pela diversidade, com valorização do diálogo intercultural, desafio que só será cumprido com investimento na educação e na promoção do multiculturalismo.
“A história da humanidade está repleta de grandes atrocidades e graves violações aos direitos humanos. É relembrando a história que vamos impedir tragédias futuras. Nesse sentido, devemos ter consciência de que uma democracia substancial e um estado laico fortalecido não condizem com projetos que pretendam estabelecer entre nós qualquer espécie de ditadura teocrática”.
Rememorando mais um trecho da Declaração de Durban (III Conferência Mundial contra o Racismo e Intolerância Correlata, 2001), o procurador advertiu que “autoridades públicas e toda sociedade têm o dever de combater o racismo religioso e a discriminação odiosa, flagelos da humanidade que ressurgem com força quando movimentos extremistas e ações fundamentalistas estão a colocar em risco a diversidade cultural e a própria democracia”.
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Paulo
02/09/2019 - 19h50
Não imaginava que a coisa tinha chegado a esse ponto. Não entendo como alguém quer converter outra pessoa à força, ou impedi-la de exercer sua crença livremente. Vi o documentário na Globo News e fiquei estarrecido…