A edição de hoje da tradicional entrevista da segunda-feira da Folha, com Steven Neil Kaplan, professor da Universidade de Chicago, me deu oportunidade de usar uma surrada citação de Nelson Rodrigues.
Tão surrada que me esforcei, ao menos, em buscar exatamente de onde ela veio. Descobri que faz parte de uma crônica intitulada “Os idiotas sem modéstia”, cuja íntegra você pode ler aqui. O texto foi reunido no livro O óbvio ululante, primeiras confissões”, editado pela Companhia das Letras.
A citação é: “os idiotas perderam a modéstia”.
O professor Kaplan, tentando ser espirituoso e “polêmico”, soltou uma frase que foi parar no título da entrevista: “Os mais afetados por uma recessão são os mais ricos”.
Para escrever esse post, e evitar cometer uma dessas injustiças tão comuns em tempo de informação fast food, que é julgar textos a partir de títulos ou subtítulos, muitas vezes deturpados ou descontextualizados, eu me forcei a ler a entrevista, com alguma dificuldade, confesso, em função da ausência completa de conteúdo útil (para mim, ao menos).
A resposta completa de Kaplan é a seguinte:
“É a verdade. Quando ocorre uma recessão, o mercado de ações colapsa e as pessoas perdem seus empregos. Se as ações recuarem 30%, o patrimônio dos mais ricos cai 30%, enquanto os mais pobres recebem o apoio das redes de proteção do Estado. Os mais afetados, portanto, são os ricos”.
Podemos dizer, portanto, que não há descontextualização. É uma frase positivamente idiota, de um desses idiotas que perderam a modéstia.
Se ele mesmo diz que, numa recessão econômica, “as pessoas perdem seus empregos”, então os mais afetados jamais serão os mais ricos. No Brasil, onde os ricos detêm carteiras de investimentos ultraconservadoras, as quais, em alguns casos, lucram com a própria crise, a sua frase soa como escárnio. Nas recessões brasileiras, os ricos ficam mais ricos; e os pobres, bem, os pobres definham ou morrem.
A problema de imbecilidades como a proferida por Kaplan é que elas servem ao propósito mesquinho – por vezes maligno – de ofuscar o verdadeiro debate, em especial no Brasil, onde a entrevista foi publicada, que são os problemas acumulados do subdesenvolvimento: desigualdade monstruosa, infraestrutura deficitária, falta de crédito, impossibilidade de concorrência saudável entre agentes econômicos (em função do desequilíbrio brutal entre pessoas, regiões, empresas).
Entretanto, há uma parte da entrevista que eu destacaria, onde Kaplan lembra que “precisamos de uma rede de proteção eficiente que não desperdice dinheiro, mas ajude essas pessoas [os mais pobres]”.
Os neoliberais com um pingo de honestidade nunca deixam de mencionar, um pouco avergonhadamente, é verdade, a necessidade de sistemas eficientes de proteção social, para manter a coesão do próprio regime de livre mercado.
O neoliberalismo puro, de Hayek e Friedman, nunca esqueceu a necessidade dessa “rede de proteção”.
Hayek, por exemplo, em seu clássico “O Caminho da Servidão”, um dos livros de cabeceira da maioria dos liberais (o ministro Paulo Guedes o cita frequentemente), observa que o “uso correto da concorrência não se contradiz com alguns tipos de interferência governamental. Por exemplo, o limite de horas trabalhadas, a exigência de condições sanitárias decentes, e a oferta de um amplo sistema de serviços sociais, são totalmente compatíveis com a preservação da concorrência”.
Friedman, por sua vez, em seu clássico “Capitalismo e Liberdade”, preconiza que a necessidade de proteção aos direitos das crianças justificaria o “paternalismo” do Estado, porque, as “crianças são o embrião da individualidade responsável, e um adepto da liberdade defende a proteção a seus [das crianças] direitos mais importantes”.
Friedman, o “príncipe do neoliberalismo”, figura máxima da escola de Chicago onde nosso ministro da Fazenda estudou, admite, em outro trecho do mesmo livro, que “não há como evitar a necessidade de algumas medidas de paternalismo”, referindo-se as ações do Estado onde se fazem necessárias, inclusive em setores de infra-estrutura.
“Em cada caso particular de proposta de intervenção governamental, devemos fazer um balanço, listando separadamente as vantagens e desvantagens”, observa o economista, ainda em Capitalismo e Liberdade, após lembrar que um famoso liberal americano, Henry Simons, havia observado que, em alguns setores, o “monopólio estatal” seria o “mal menor”.
Para ser justo com Nelson Rodrigues, e não usá-lo em contextos ideológicos que não são os dele, na mesma crônica que citamos aqui, ele chama de idiotas aqueles que continuam “maravilhados com a Grande Revolução” da Rússia, onde “prende-se, condena-se, encarcera-se um poeta por ser poeta”.
Entretanto, não creio que o nosso saudoso tricolor deixaria de concordar que a imbecilidade é, assim como Descartes acreditava ser o bom senso, uma característica democrática. Se há idiotas na esquerda, também os há, em profusão, na direita.
O nobre professor Kaplan, com todo respeito, não foi feliz em sua entrevista. Se há tantos programas sociais maravilhosos assim nos EUA, onde ele vive, que neutralizam o impacto da recessão entre os mais pobres, então parabéns. Aqui no Brasil, a crise econômica que vivemos tem resultado numa tragédia social de proporções continentais: milhões e milhões de brasileiros estão voltando à miséria e passando necessidade, e não temos, definitivamente, um “amplo sistema de serviços sociais”, como defendia Hayek, nem protegemos devidamente os direitos de nossas crianças, como preconizava Friedman.
Abaixo, a citação de Nelson Rodrigues, num contexto mais generoso:
Claro que os idiotas são de todos os tempos. Sempre existiram. Mas,
no vasto passado humano, o idiota como tal se comportava. Até pouco
tempo, os idiotas não existiam na História e na Lenda, e repito: — os
personagens da História e da Lenda eram os melhores.Aí está dito tudo.
Eram os melhores que falavam alto, que gesticulavam, que atiravam patadas e quebravam caras. O bom juiz de futebol é o que não se sente. Os idiotas eram igualmente imperceptíveis, incorpóreos, espectrais.
Mas não precisamos ir tão longe.Aqui mesmo, em nosso Brasil, o que havia era o “grande ministro”, o “grande deputado”, o “grande jornalista”, o “grande tribuno”. Os idiotas não exalavam um suspiro. No Império e na República não se conhece um único débil mental de babar na gravata. Na hora de morrer, o senador, ou ministro, ou jornalista, ou tribuno, sabia fazer uma última frase. O sujeito, de vela na mão, esculpia a sua derradeira pose. E, de repente, tudo muda.
Os idiotas perderam a modéstia, a humildade de vários milênios. Eles estão por toda parte. São os que mais berram.
O sujeito que passa numa esquina, numa retreta ou num velório é logo cercado de idiotas. As casacas são usadas pelos idiotas; as condecorações pingam dos idiotas. E, de mais a mais, são numericamente esmagadores.
Antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem. O grito, a ênfase, o gesto, o punho cerrado, estão com os idiotas de ambos os sexos.
Na Rússia, prende-se, condena-se, encarcera-se um poeta por ser poeta. E os nossos intelectuais continuam maravilhados com a “Grande Revolução”. Mas pergunto: — que fazer se, por toda a parte, recebemos uma saraivada de idiotas? Não há opção à vista. Cada um tem de se tornar idiota para sobreviver.