Igor Wefer: tomar partido é pra quem tem coragem

DO ELOGIO AOS QUE TOMAM PARTIDO

Por Igor Wefer

Tomar partido é para quem tem coragem. E que haja clareza: tomar partido não significa aqui levantar a uma bandeira sozinho, individualmente. Não é o bastante. É insuficiente. Porque sozinhos não somos partes do povo, somos fragmentos.

O ser humano é um animal social e político. Quer dizer, um animal social porque associe-se, seja por quais motivações sejam: a associação ocorre sempre em virtude da existência de um interesse comum entre os indivíduos. Por outro lado, é também um animal político porque sente a necessidade de participar das discussões, diálogos, movimentos e assembleias que definem os rumos de sua vida, da vida de sua comunidade ou sociedade.

Coexistem, portanto, entre os seres humanos, dois sentimentos: o primeiro diz respeito a uma preocupação com a sua vida privada, com os seus interesses egoísticos; o segundo, mediado pela racionalidade, revela a necessidade de lidar com os interesses de outrem e a sua afeição em assistir aos seus concidadãos. O primeiro, portanto, diz respeito à vontade se definir o seu futuro, todavia, não o podendo fazer em sua integralidade em função da configuração político-econômico a que ele está sujeito, vem à tona o segundo sentimento que o leva a se unir a outros indivíduos que possuem os mesmos interesses ou mais interesses em comum que antagônicos a fim de somarem forças e submeterem os demais grupos às suas concepções que julgam serem mais apropriadas.

Entretanto, é forçoso dizer que a relação política é mais complexa que esta descrição. Na história é possível encontrar inúmeros exemplos em que, a racionalidade posta de lado, a maioria do povo passa a ser submetida a governos despóticos imbuídos mais em sentimentos egoísticos, apáticos, prepotentes e egocentricos representados por governantes que ignoravam a vontade popular, que se utilizando da razão para compreender e empreender governos que viabilizassem o florescimento dessa política realizada por pessoas comuns.1

Atualmente, ainda em regimes democráticos, subsistem sujeitos que assim pensam e agem. São muitas vezes “políticos” que negam a importância dos agrupamentos políticos, organizados e constituídos pelo próprio povo, e se colocam enquanto sábios no que toca ao futuro de uma nação. São muitas vezes “políticos” que criticam o sistema de organização partidária e atuam individualmente como seres iluminados pelos céus e divinamente prontos para definir o destino de milhões de pessoas. São muitas vezes “políticos” e “políticas” que se utilizam dos partidos políticos para acessarem o Congresso Nacional e emplacarem projetos de lei para desestruturação desses mesmos partidos e, não obstante, para também encaminharem projetos que assegurem legislaturas “independentes”.

Sobretudo com o acirramento e crescimento da mentalidade neoliberal, valoriza-se paulatinamente mais o indivídual que o coletivo, mais o egoísmo que a cooperação, mais o egocentrismo que a solidariedade. E é possível vislumbrar com facilidade esse movimento na sociedade brasileira contemporânea: cresce gradualmente a pressão de grupos que desejam substituir o espaço público pelo privado, reduzindo assim o próprio horizonte de atuação política dos grupos políticos e do povo por meio deles.

Conforme dirá o professor Nuno Coelho, a “forma política de vida – República – é aquela em que todos têm igual direito aos cargos públicos (bens políticos por excelência)”, ou seja, seria, nessa perspectiva, a atuação neoliberal – reivindicadora do “Estado mínimo” –, a luta pela redução dos cargos públicos e dos espaços políticos, anti-republicana, posto que visa a substituir o espaço público pelo privado, ou melhor, a destruir o espaço político e o espírito republicano em benefício da supremacia do capital. Nesse sentido, observa-se a tentativa de inverter o processo político, a saber, que os fragmentos (indivíduos egoísticos e ensimesmados) do povo passem a ser mais representativos que as partes que são legítimas Vontades Gerais organizadas em uma luta pelo bem de grupos maiores de indivíduos unidos em torno de um bem comum.

Existe, portanto, uma tentativa de remodelar a forma pela qual interpreta-se o que se é a política consolidada há séculos. Busca-se confundir o imaginário popular, primeiramente, por meio da demonização dos partidos políticos e os demais órgãos partidários e, em seguida, apresentam a iniciativa privada enquanto uma maneira eficiente de se organizar a soeciedade. Confundem o imaginário popular invertendo a ordem de funcionamento da política no campos das ideias: de repente os interesses privados passam a representar mais a sociedade que os agrupamentos políticos que se preocupam com o bem coletivo, o bem comum, a res publica.

Diante disso, dada a situação em que os partidos e movimentos políticos estão demonizados, carregando e pecha de obsoletos, corruptos, gananciosos e “ineficientes” ante aos olhos da sociedade em geral, nunca foi um ato tão corajoso (e imprescindível!) o de se tomar partido. Razão pela qual se justifica e se torna ainda mais urgente a elaboração de um elogio aos que tomam partido, porque a esses todos devem a admiração, posto que neles se concentram as mais elevadas virtudes das quais pode orgulhar o ser humano.

É preciso coragem para tomar partido. Porque tomar partido sucede em inimizades, em difamações, em calúnias, em ameaças, em traições e em até risco de vida. Coragem de defender uma ideia, uma história, um estrato social, uma classe social. Porque o processo de escolha é um processo de exclusão. Se escolhe-se um lado, não se escolhe o outro. Abrir-se para as oportunidades de um lado é fechar-se à todas as outras infinitas possibilidades que possam existir. E quando se escolhe, age-se com coragem. Age-se com coragem tendo em vista que amigos, familiares e conhecidos podem lhe abandonar, apenas por não concordarem com a sua escolha. Age-se com coragem uma vez que a covardia não permite a ninguém enfrentar as contradições que há em todos os partidos políticos, porque a covardia afasta os indivíduos da verdadeira construção coletiva, da verdadeira vontade de representar o povo.

É preciso ter anseio por justiça para se tomar partido. Quando se escolhe um lado, escolhe-se a justiça. Porque na base da justiça encontra-se os princípios republicanos de periodicidade nas eleições, alternância de poder, participação do povo, seja diretamente, seja por representação na gestão de sua propriedade.2 Em suma, a justiça na política é defender e bem gerir o bem comum, respeitando a supremacia do poder popular; é defender os interesses dos iguais, é incluir e incluir-se na luta pela comunidade, pela coletividade, visando a alcançar a supremacia do bem comum – da res publica –, a alcançar o bem de todos.

Por outro lado, o oposto disso seria a supremacia do interesse privado, do interesse particular, do indivíduo em detrimento do bem comum. Injusto seria engajar-se sem tomar partido, posto que seria engajar-se com base na individualidade, com base nos próprios interesses. Porquanto, de que maneira se lutará pelo bem comum se nega-se a associação que é a própria natureza da res publica? Apenas há bem comum porque há antes uma associação que configura a comunidade – (comum)nidade – e que se divide em suas partes interessadas. O egoísmo é puro desejo privado e injusto para com a comunidade. A solidariedade reside no fato de se colocar à disposição do outro, na própria associação.

É preciso se ter alteridade para se tomar partido, pois “me reconheço somente na presença do Outro.” Sem o Outro, sem o diferente, sem o distinto, não me reconheço. De que maneira, portanto, sabe-se que se está no caminho correto (como com frequência se acredita) se não dialoga-se e se não ouve-se o Outro, a saber, aquele que sente na pele? Ver o Outro é reconhecer aquilo que não sou, aquilo que não passo, aquilo que não vivo, aquilo que não sinto. Se mesmo diante do Outro é dificultoso saber o que de fato ele é, posto que a sua identidade é produto das suas condições materais e culturais, por que seria mais fácil reconhecê-lo e suas dificuldades sendo apático à sua identidade?

De que modo identificar soluções para as necessidades do Outro sem antes o conhecer?

Na última votação que houve na Câmara para aprovação do projeto da Reforma da Previdência, ouviu-se muito as justificativas das quais transcrevo: “eu estudei, eu pesquiei, eu acredito, eu estou realmente convicta(o), eu conversei com muitos especialistas”. E com base nessa série de eus votaram a favor da aprovação da reforma, desrespeitando as longas horas de debate coletivo que houve na presença de centenas de pessoas e a deliberação ali aprovada, impactando nocivamente a vida de milhões de trabalhadores, a vida do povo. Ou seja, a alteridade não é uma virtude isolada; é ela que nos ensina a ter humildade.

Razão pela qual é preciso se ter humildade para se tomar partido. Porquanto quando um grupo delibera a ação que será tomada não é unicamente porque se deve respeitar a participação igual de todos e todas na tomada de decisão. Isso ocorre também porque cada integrante desse grupo se coloca em uma posição de humildade em reconhecer a sua ignorância. Pode-se ter estudado e se formado em Harvard, é um grande feito e certamente se saiu especialista e bem formado em algum ramo do conhecimento, mas não formado em toda a experiência humana. Conforme dirá o saudoso Rubem Alves, a formação acadêmica nada mais é do que uma hipertrofia de um ramo do conhecimento e uma consequente hipotrofia dos demais.

Logo, não existe razão para deixar de se ouvir os demais, as suas ideias, experiências, conhecimentos e pensamentos. Na verdade, deixar de realizar este ato de humildade é alimentar a própria vaidade em se colocar enquanto a única luz na escuridão; é também revelar um egocentrismo que possivelmente sustenta um desejo de elevar o interesse privado sobre o público. Afinal, quantos não são os que sonham em ser Presidentes da República somente para sê-los? Quantos o almejam sem nem conhecer a verdadeira face e necessidade de seu povo? Não à toa, a humildade reside naqueles que definitivamente desejam servir ao seu povo mais que ao próprio ego.

Por fim, é preciso se ter solidariedade para se tomar partido. Essa vitude é ao mesmo tempo base e produto do ato de se tomar partido. Porque além da solidariedade ser de tal maneira dependente das outras virtudes: coragem, humildade, alteridade; ser solidário é também possibilitar que os outros indivíduos com os mesmos interesses de seu grupo possam fazer parte de sua construção. E não basta somente abrir as portas da casa aos novos integrantes, é preciso também apresentá-la e ceder um local para se acomodarem. É com base nessa troca que se forjará o sentimento e o laço da cooperação entre todos e todas: querer construir e se permitir construir. É abrindo as portas para o povo e permitindo que ele se aposse igualmente do agrupamento tal qual sua vontade, coragem e determinação é apossada por ele.

É nesse sentido que se consolida a interdependência entre todos os companheiros e companheiras, guerreiros e guerreiras, lutadores e lutadoras, que desejam representar autenticamente o povo do qual faz parte. É imprescindível permitir a absorção do povo pelo partido político para que se sintam integrantes parte de um mesmo grupo.
Deve ser por isso que solidariedade é talvez a virtude mais ambígua: se, por um lado, é bela e necessária; por outro lado, exige coragem, paciência e dedicação. Porque é sabido não ser fácil lidar com uma série de interesses dispersos entre os integrantes um mesmo grupo (posto que afinal a identidade de todos permanece existindo e sendo respeitada), mas, quando efetivada na realidade por meio da paciência e dedicação, revela-se a sua força e importância na medida em que cada integrante está tão intimamente ligado a outro por esse vínculo que daria certamente a sua vida por ele e pelo grupo ou partido que acredita. Foi isso que vimos na campanha da legalidade capitaneada por Brizola na defesa da tomada de posse da presidência por João Goulart, e foi assim que vimos durante as torturas do perído da ditadura civil-militar na medida em que os torturados não revelavam as informações pretendidas pelos torturadores a fim de proteger os seus companheiros e companheiras. É por isso que a solidariedade é base e produto do ato de se tomar partido.

E são por todas essas razões que se faz importante e urgente se tomar partido. Surgem cada vez mais em nosso meio indivíduos ensimesmados e completamente imbuídos no pensamento individualizador e pouco preocupados de fato com o bem comum, com o bem do povo. Fortalecem-se cada vez mais os indivíduos que desejam destruir os partidos e movimentos políticos, difamando-os e os caluniando, a fim de beneficiar a grande burguesia em detrimento do povo. Por esses motivos, lembremos: tomar partido é para quem tem coragem! Tomar partido é para quem ama incondicionalmente o seu povo. Tomar partido é se reconhecer parte do povo.

Notas:

1 Não se fala neste momento de governantes que submeteram oligarquias que agiam em detrimento da maioria do povo para lhe restituir o poder e a dignidade. Fala-se, sim, de golpistas que usurparam o poder popular em nome de sua sanha incassiável de poder e pela sua prepotência em crer que seria ele unicamente o mais preparado para definir o futuro do povo.

2 Ainda que sob um regime democrático burguês esses princípios sofram distorções. Há de se ter clareza da tentativa de se sobrepor o individual sobre o interesse coletivo. Se por meio dos princípios republicanos, que asseguram a participação popular na gestão da coisa pública, a classe burguesa manipula os órgãos de representação desequilibrando a balança do poder e prejudicando a representatividade e os anseios populares, imagine-se na ausência desses princípios (sonho dos neoliberais e suas respectivas derivações radicais)?

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