MAIS UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA?
A LEI GERAL DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL
Por Jorge Eremites de Oliveira (1)
O licenciamento ambiental é um procedimento administrativo que faz parte da Política Nacional de Meio Ambiente, introduzida no Brasil em 1981, por meio do qual órgãos públicos autorizam e acompanham a construção, o funcionamento e a ampliação de diversos tipos de empreendimentos e atividades que possam causar prejuízos ao meio ambiente e aos seres humanos: gasodutos, ferrovias, hidrelétricas, indústrias de papel e celulose, rodovias, termoelétricas, usinas de álcool e açúcar etc. Trata-se de um processo oficial baseado em estudos científicos e orientado pelo paradigma da sustentabilidade.
Equipes multidisciplinares, constituídas por arqueólogos, biólogos, engenheiros de diversas áreas, geógrafos, geólogos, sociólogos e profissionais de outros campos do conhecimento científico, costumam participar dos estudos voltados para o licenciamento ambiental. O princípio básico que orienta esses trabalhos é a precaução, isto é, a antecipação à prevenção de eventuais problemas que os empreendimentos possam vir a causar aos recursos naturais e às pessoas. Isso ocorre por conta da insuficiência de informações científicas pré-existentes sobre determinado assunto, como, por exemplo, a construção de parques eólicos e linhas de transmissão de energia. Significa dizer que o licenciamento ambiental é uma importante ferramenta para o planejamento estratégico, seja para o controle prévio, seja para o acompanhamento das atividades humanas. Embora esses estudos tenham tomado envergadura e relevância nas últimas décadas, por vezes incomodam governos de diversas matrizes político-partidárias, os quais costumam atribuir ao processo de licenciamento ambiental um empecilho a suas ações pragmáticas.
A bem da verdade, o licenciamento ambiental está longe de ser um entrave ao desenvolvimento do país, pelo contrário. Ocorre que eventuais conflitos de interesse não estão, necessariamente, relacionados às leis sobre o assunto, mas, fundamentalmente, às instituições e aos agentes públicos e privados responsáveis pelo seu cumprimento. Por isso tenho dito que a legislação ambiental pode e deve ser aperfeiçoada, mas jamais suplantada ou vilipendiada.
Neste sentido, em complementação ao artigo recentemente publicado no blog O Cafezinho e em outros espaços virtuais, intitulado “A proposta de Lei Geral do Licenciamento Ambiental e o patrimônio arqueológico” (2), venho a público apresentar algumas críticas pontuais à terceira versão da Lei Geral de Licenciamento Ambiental, decorrente do PL – Projeto de Lei 3.729/2004 que tramita na Câmara dos Deputados. A iniciativa originalmente foi proposta durante o primeiro mandato do Governo Lula, assinada pelos então deputados federais Luciano Zica, Walter Pinheiro, João Grandão e outros doze parlamentares do PT (3).
Em linhas gerais, a terceira versão da proposta em tela, recentemente apresentada pelo GT – Grupo de Trabalho sob a coordenação do deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), segue a intenção de simplificar, ou afrouxar de maneira pouco consequente, o processo licenciamento ambiental. Rompe com o paradigma da sustentabilidade, assim o fazendo de modo a estimular e promover insegurança jurídica, incompreensões, incongruências, judicializações, violação de direitos e conflitos sobre o papel de órgãos públicos municipais, estaduais e federais no procedimento administrativo. O texto continua mal escrito e repleto de “pegadinhas”, o que tornará moroso, litigioso, oneroso e danoso o licenciamento ambiental à sociedade nacional e às partes envolvidas na autorização, instalação, operação e acompanhamento de empreendimentos e atividades das mais diversas. Isso tudo também é resultado da não inclusão, durante a discussão sobre a propositura, de amplos setores da sociedade organizada, incluindo especialistas, órgãos públicos e associações científicas com vasta expertise sobre o tema.
Seguem alguns exemplos pontuais dessas “pegadinhas” no que diz respeito, sobretudo, ao patrimônio cultural do país, do qual fazem parte os bens de natureza arqueológica (4).
Primeiro, nota-se no texto certo “desconhecimento” de que a totalidade do patrimônio arqueológico nacional, formada por locais com vestígios materiais sobre a presença humana pretérita, está constituída por bens da União (Lei 3.924/1961 e Art. 20 da CF/1988). Portanto, todo este patrimônio está acautelado ou protegido judicialmente. Este é o caso, apenas para exemplificar, do sítio arqueológico Caís do Valongo, localizado no centro do Rio de Janeiro, na área da Praça do Jornal do Comércio, reconhecido como Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, órgão ligado à ONU – Organização das Nações Unidas (5). Sítios arqueológicos em geral têm a ver com legados culturais não renováveis de gerações pretéritas às gerações atuais e futuras. Dizem respeito ao passado da humanidade e, portanto, sua preservação e valorização fazem parte de um conjunto de direitos à memória e à nossa própria identidade enquanto nação plural e multiétnica. A crítica apresentada reside no fato do texto não fazer qualquer menção explícita ao IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão federal que possui o papel de exclusividade na autorização e avaliação da pesquisa arqueológica no país, incluindo a feita para os estudos de impacto ambiental.
Segundo, na propositura há o estabelecimento de uma hierarquia arbitrária entre a ADA – Área Diretamente Afetada por empreendimentos e atividades na Amazônia Legal em relação à ADA em outras regiões e biomas sensíveis, como o Pantanal. A primeira região merece toda a atenção e respeito, mas fica aqui uma pergunta: quais seriam os parâmetros científicos recorridos para não ampliar a ADA na Amazônia Legal e diminuir a ADA em outras regiões brasileiras, as quais são afetadas negativamente por atividades que geram grandes impactos negativos sobre o meio ambiente e os seres humanos?
Terceiro, no texto há a atribuição das competências de decisão à autoridade licenciadora, o que é feito de modo a extrapolar a de outros órgãos oficiais, como no caso da competência exclusiva do IPHAN relativa ao patrimônio arqueológico. Esta iniciativa ocorre justamente no momento em que o atual governo federal paralisa e esvazia vários conselhos e comissões nacionais, diminuindo drasticamente a participação da sociedade civil no monitoramento e deliberação a respeito de políticas públicas implementadas pelo Executivo. Este é o caso da reestruturação do próprio CONAMA – Conselho Nacional de Meio Ambiente, que passou de quase 100 para uns 22 membros (6).
Quarto, verifica-se novamente a intenção da proposta em descumprir a Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, ratificada no Brasil pelo Decreto 5.051/2004. A contradição está em restringir o direito à consulta livre, prévia e informada apenas a povos e comunidades tradicionais estabelecidos em áreas regularizadas ou em processo de regularização por parte do Estado, e não a todos os coletivos que venham a ser afetados pelos empreendimentos. Neste aspecto em particular, a julgar pela atual política indigenista oficial e por declarações do próprio mandatário eleito em 2018, tudo leva a crer que esta interpretação distorcida da lei aumentará, ainda mais, a existência de crimes ligados a tentativas de genocídio, tipificados por leis internacionais e pela própria legislação brasileira.
Quinto, observa-se na proposta a intenção de autorizar serviços e obras, incluindo a pavimentação asfáltica, para estradas e outros empreendimentos nunca licenciados na Amazônia Legal e em outras regiões. Em obras desse tipo, normalmente ocorrem a circulação de máquinas e pessoas e a constituição de caixas de empréstimo, de onde serão retirados sedimentos para as obras, causando impactos negativos de variada magnitude.
Sexto, está explícito no texto o favorecimento da proposta a grandes empreendimentos ligados ao agronegócio, resultado da pressão assimétrica da bancada ruralista e seus apoiadores no Congresso Nacional. Exemplo disso é a ausência de qualquer menção à AIA – Área Indiretamente Afetada no processo de licenciamento ambiental, além de outras facilitações que poderão comprometer o desenvolvimento sustentável do Brasil. Sabe-se que a exportação de commodities (grãos, carnes, minérios etc.) tem peso substancial na economia do país, cada vez menos industrializado e com alto índice de desemprego e subemprego, o que significa dizer que esta questão não pode ficar de fora das discussões. Todavia, atividades ligadas a estes setores, especialmente em grandes propriedades, devem preceder do licenciamento ambiental como ferramenta para o planejamento estratégico. Um exemplo pontual desta preocupação diz respeito a áreas atingidas por plantações de eucaliptos, cujas raízes são mais profundas que outros cultivos, como soja, milho e pastagens.
Enfim, a terceira versão da Lei Geral de Licenciamento Ambiental segue ruim e nociva sob muitos aspectos ao meio ambiente e aos seres humanos. Apresenta-se de modo contrário aos avanços registrados em outros países onde o assunto é tratado de modo menos imediatista. Caso aprovada da maneira como consta apresentada, equivalerá a oficializar a instalação de um Estado de exceção no país.
(1) Doutor em História/Arqueologia pela PUCRS – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professor e pesquisador da UFPel – Universidade Federal de Pelotas e presidente da SAB – Sociedade de Arqueologia Brasileira.
(2) https://www.ocafezinho.com/2019/07/17/o-debate-sobre-a-nova-lei-de-licenciamento-ambiental-por-jorge-eremites/.
(3) https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=257161.
(4) https://www.sabnet.com.br/informativo/view?TIPO=1&ID_INFORMATIVO=781.
(5) http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/list-of-world-heritage-in-brazil/valongo-wharf-archaeological-site/.
(6) https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2019/05/29/bolsonaro-esvazia-conselho-ambiental-e-diminui-participacao-da-sociedade.htm.