Há algo de bagunçado em nós quando entendemos o mundo. Há uma desordem latente no olhar que vem à tona quando descobrimos a vida, o olhar do medo e da realidade que aniquila. É uma bagunça que desorganiza tudo, inquietante, que vê, a solavancos, tudo desmoronar. Nada mais parece real e nós, nós parecemos sonsos. Tontos.
Marielle Franco bagunçava a ordem regimentada. Marielle se tornava, aos poucos, a desordem regimentada. Sentava no lugar de homens brancos e questionava o que estes faziam. Questionava porque é que teve que se bagunçar tanto, desordenar-se tanto a ponto de se transformar em estandarte de uma luta. E então, o silêncio. A ordem se impõe.
A bagunça pode até ter voz, mas nunca vez. O salutar é que fiquemos em casa, seguros com a justiça que nos deixa, em verdade, humilhados por precisarmos dela. Em casa, abrigados, fazemos da ordem o estabelecimento que nos deixa viver, enquanto morrem dentro dessa desordem que, às vezes, e só às vezes, nos permitimos fazer parte.
Enquanto vivemos esta vida de sonsos úteis, que somos, e aqui roubo as reflexões acerca do abuso e dos valores sobre a vida e sobre a morte de Clarice Lispector, digo que há muita morte lá fora. Há bagunça e desordem desdobradas de nossos entendimentos. Enquanto nos aquecemos com um chá, um livro ou nosso iPhone, há sangue escorrendo em becos de lama. Da lama que somos nós.
Quando morre Marielle, morro eu. Dentro do direito sagrado de viver, o direito justo, quando morre alguém, este alguém sou eu. Quando a um ser humano lhe é arrancado a vontade de viver em face da vontade de matar, me tiram um pouco a vontade de viver.
No fortuito destino Marielles nascem nas favelas e lhe são tirados todos os direitos a que temos por inocentemente acreditar que existe um mundo melhor, que há paz, que há justiça — sem ser a do teto que me protege. Porque este teto que me protege não protegeria aos que a vida lhes tirou no destino.
Quem és tu, Marielle Franco?
Que me rasga o peito em cada tiro que levou. Que me atira na lama em cada palavra que ouço, agora após sua morte, quando meu peito se enche de desgraça em pensar: que justiça, que teto, que ordem me acolhia que não lhe dei as mãos e fui lutar junto a ti? Talvez fosse meu o primeiro tiro. E não posso mais dizer que seus tiros são meus, porque não sei quais foram seus caminhos, Marielle. Eu estava dentro de casa, nunca cresci na favela e nas minhas redes sociais vejo pelejas sutis que te mataram antes mesmo de você morrer. De todos os tiros, talvez nenhum fosse meu. Mas talvez eu fosse um deles.
Uma das balas pode ter sido a minha inércia, a minha ordem ao enxergar a desordem, Marielle. O primeiro tiro em sua direção era um grito uníssono lhe exigindo o silêncio. Era um pisão forte em sua cabeça para que aprendesse a lição. O primeiro tiro lhe invadia o corpo carregando o peso de todos que apontam, diariamente, os dedos, Marielle. O segundo tiro foi para machucar, foi para lhe lembrar que a força dói, que a desordem tem um preço. O terceiro tiro lhe matava. No terceiro tiro você morria para lhe lembrar que a vontade de viver era uma força menor que a vontade de matar. E o quarto tiro era a própria vontade de matar, com sangue, com brutalidade, com a força de quem tem a leveza da justiça como teto. Como nós. E por fim, éramos todos um pouco de cada bala em seu corpo, Marielle. Quem mandou?
Da desordem à ordem, nos caberia agora entender e lamentar a morte de Marielle. Pois cabe ao clamor humano chorar sua perda, revoltar-nos pela brutalidade com a qual foi assassinada. E a desordem nos chama ao pavor de descobrir que vivemos em uma realidade paralela, controladora, onde a boa política nunca terá a força necessária sobre a ganância do dinheiro. Porque debaixo dos nossos tetos, estamos por ele, estamos pelo dinheiro. Quem mandou te matar, Marielle?
Ao olharmos para o lado, a ordem se faz sentir em cada olhar. Um olhar limitado, que envolve sua realidade minúscula, que não entende porque Marielle deve ser lembrada pela mulher preta que lutava. Que não entende que o silêncio de Marielle nos leva ao nosso próprio e inerte silêncio. Que trata-se de um crime político. Que trata-se de uma atentado às nossas casas, aos nossos tetos e ate mesmo a nossa ordem. Quem mandou te matar, Marielle?
Quem és tu, Marielle Franco?
Mas somente sendo doido, maluco, condenado socialmente para defender as ideias e os ideais que dentro de um corpo pode haver uma pobre alma que padece, que não teve cuidados, que não acessou o seu mais íntimo amor porque as quatro balas de Marielle lhes roubam isso desde que a vida se fez no morro. Somente sendo desordenado por dentro de nossas cabeças, e assim nos chamarão, para descobrirmos que as balas que aniquilaram Marielle voam sobre nossas casas há décadas, rasgaram sua pele e procuram pela próxima voz.
E em mim, ainda que morto, alguma coisa acende quando morre Marielle. Quando sinto o silêncio obscuro pela morte de Marielle. Quando pergunto: quem mandou matar Marielle? Quando vejo o escárnio e o desleixo no modo como conduzem os seus discursos aqueles que matam marielles. Essa coisa é uma coisa que faz de fato se entender. É a mesma coisa que fez Lispector se estarrecer com a morte de Mineirinho a treze tiros pela polícia, porque a primeira bala pode até acender uma segurança, mas as outras doze eram a brutal fome de desmentir nossa mais pura verdade, aquilo que vemos de nós no outro, era a mais pura e bruta vontade de matar. E que somos incapazes de nos sensibilizarmos. Afinal, quem mandou matar?
Quem eras tu, Marielle Franco?
Era por isso que Marielle existia. Marielle interpelava as 13 balas de Mineirinho. Marielle tinha este algo dentro dela que bagunçava tudo, que colocava em desordem toda essa ordem. E Mineirinho, o bandido de Lispector que por certo seria defendido por ela, lhe emprestou quatro balas. Quatro balas cheias de vontade de matar, da monstruosidade, de desesperança, de entrega, de desistência.
Marielle é a que se deu conta que há que se levantar e gritar contra a justiça, contra o teto, contra a casa que nos aprisiona. Marielle não queria esta casa. Marielle não queria viver ali, padecida. Marielle não ficava muda diante da morte. Marielle viu que éramos todos escuros, tristes, apodrecidos.
Marielle via vida na morte dessas pessoas abandonadas. E Marielle foi morta. Na tentativa de nos salvarmos de nossos crimes particulares, quatro tiros a levaram. E na certeza de que Marielle significou e significa tanto e tantos nesta vida, hoje eu morro um pouco também, mas planto a desordem em mim.
Mesmo atordoado, permanecerei atento.
500 dias sem Marielle e ainda não sabemos quem mandou matar e por qual razão a mataram.
A morte de Marielle representa um divisor de águas na política recente: só recuperaremos nosso futuro se esclarecermos nosso passado.
É fundamental saber quem mandou matar Marielle Franco