A entrevista de Carlos Siqueira, presidente do PSB, à Carta Capital

Foto: Humberto Pradera / PSB

Na Carta Capital

“Faltam aos progressistas contato físico com os pobres e luta ideológica”

Por André Barrocal
7 de julho de 2019

Presidente do PSB, Carlos Siqueira quer autorreforma dos partidos à esquerda contra o antissistema Jair Bolsonaro

O senador goiano Jorge Kajuru acaba de deixar o PSB, o segundo maior partido de oposição pelo lado progressista do tabuleiro político. Votou a favor dos decretos armamentistas de Jair Bolsonaro, e a direção do PSB era contra. Foi um divórcio amigável porém simbólico da determinação do presidente do partido, Carlos Siqueira, de seguir com uma repurificação ideológica interna.

Siqueira havia convidado Kajuru a se retirar. Atitude parecida com a que levou à saída, em 2017, de 13 deputados nada progressistas, como a atual ministra da Agricultura, a ruralista Tereza Cristina, reeleita em 2018 pelo DEM. Tereza havia entrado no PSB graças ao falecido Eduardo Campos, quando da construção da candidatura presidencial dele em 2014.

Essa tinha sido a razão também da filiação dos direitistas da família Bornhausen, controladores do diretório do PSB em Santa Catarina até há pouco. Na campanha de 2018, Siqueira expulsou do partido um prefeito catarinense, Luciano Builigon, de Chapecó, por apoiar Bolsonaro. Em maio passado, dissolveu o diretório estadual. Os Bornhausen deixaram o partido em junho.

Na tentativa de caracterizar o PSB claramente como de centro-esquerda, Siqueira busca aproximar a sigla de certas forças internacionais. O secretário da área exterior do PSB, Alessandro Molon, esteve em maio nos Estados Unidos com a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, declarada socialista como Bernie Sanders. Trazer Sanders a uma conferência que fará em novembro é o sonho do PSB.

No front interno, Siqueira propõe que o PSB se autorreforme. Apresentará algumas ideias em uma reunião do Diretório Nacional em 8 de julho, de olho em um congresso nacional que a legenda realizará também em novembro. Sem luta ideológica e aproximação, até física, dos mais pobres, diz Siqueira, o campo progressista estará perdido no Brasil. Inclusive o PSB.

A seguir, sua entrevista a CartaCapital.

CartaCapital: O Bolsonaro ocupou o espaço antissistema e isso empurrou o campo progressista para uma identificação com o sistema. Que fazer?

Carlos Siqueira: Ou o campo progressista assume os seus erros, e acho que o PT tem responsabilidade maior, porque esteve 13 anos no poder, ou não teremos renovação. A principal autocrítica que todos têm de fazer é assumir que todos fazemos parte desse sistema e ajudamos a que se chegasse aonde chegou. Penso que todos os partidos, não só os progressistas, devem fazer a sua autorreforma. Uma atualização programática também. Não é se preparar apenas para ganhar as eleições, é também para o que se pretende fazer com os problemas graves do ponto de vista econômico, social e ambiental que o País enfrenta e que não serão resolvidos com facilidade. Dificilmente as forças conservadoras conseguirão enfrentá-los de maneira adequada.

CC: Para além da autocrítica, que é discursiva, o que pode ser feito de diferente na atuação prática?

CS: Sua modernização. Os partidos se tornaram, sem exceção, excessivamente convencionais e precisam mudar tanto na forma quanto no conteúdo. Na forma, para uma maior participação de seus integrantes, seus filiados. E no conteúdo oferecendo uma plataforma mais atualizada, mais conectada sobretudo com a juventude, mas também com o conjunto da população, indicando as teses que defende, explicando e chegando às pessoas. Acho que a esquerda se distanciou até fisicamente dos pobres. Se você olhar, a votação de parlamentares da melhor qualidade da esquerda se dá muita mais na classe média, nos bairros ricos. Nós precisamos chegar nas favelas assim como chegaram nas favelas e no interior do País as igrejas protestantes.

CC: Como se faz isso?

CS: É você ter pessoas do partido que morem nessas regiões, que sejam politizadas, entendam por que estão naquela situação e que atuem politicamente em suas respectivas áreas. Nós precisamos estar onde o povo se encontra. E o povo não se encontra nos bairros de luxo, da classe média alta das grandes cidades. O povo mais carente, de que a esquerda se sente representante, se encontra exatamente nesses locais (mais pobres) e é para ele que devemos falar. Temos de estar perto fisicamente e levar uma mensagem que seja compreensível, conectada com as reais necessidades das pessoas.

CC: O campo progressista parece preso no seu umbigo de classe média…

CS: Muito, e faz tempo. Veja o fenômeno do protestantismo brasileiro, e diria até latino-americano, mas no Brasil teve uma expansão extraordinária. Os protestantes, sobretudo os pentecostais, foram capazes de falar com as necessidades subjetivas da população pobre. Não estou elogiando a forma deles, ainda menos o conteúdo, embora eu tenha respeito por todas as religiões, mas eles passaram a falar inclusive das necessidades subjetivas, não só objetivas, dos mais pobres. O mundo urbano brasileiro não é urbano, ele é rural. A pessoa veio do interior do País, chega numa cidade como São Paulo, Rio, Recife, Salvador, Belo Horizonte ou mesmo Brasília, e olha para um mundo que não lhe pertence. Olha lá do alto do morro do Rio para Copacabana e diz: “O que é isso? Nunca vi”. Se ela desce (o morro), ninguém fala com ela. As igrejas protestantes foram capazes de ouvir essas pessoas, de alfabetizá-las, porque é uma religião em que a pessoa se salva pela leitura da Bíblia.

CC: O senhor diz que as igrejas dialogam até com a subjetividade… Os progressistas também fazem parte da elite da sociedade e querem impor a sua subjetividade ao outro, que é a maioria, em vez de ouvirem a subjetividade dessa maioria, não?

CS: Claro. Isso no fundo é uma prática autoritária, que nem é percebida, mas ocorre. Uma pessoa de classe média tem seus hábitos culturais, religiosos e sociais, tem uma subjetividade que não tem nada a ver com a da população interiorana, que hoje é maioria nas grandes cidades brasileiras. É um outro mundo, uma outra forma de ver o mundo, a vida, o País. A classe média progressista tem muita dificuldade de compreender quais são as aspirações daquela classe lá embaixo. (Os mais pobres) São pessoas que nem entendem o tamanho do País, a importância do País. E naturalmente têm outras perspectivas de vida.

CC: E isso dificulta a resistência política que o senhor defende ao governo Bolsonaro, porque o presidente, goste-se ou não, dialoga com essa subjetividade.

CS: Se você olhar o que acontece no mundo, a extrema-direita aqui, na Europa e nos Estados Unidos tem tido a capacidade de dialogar com esse mundo, que é chamado preconceituosamente de mundo do atraso, né? Claro, a extrema-direita não vai resolver esse atraso, mas tem sido capaz de verbalizar, mais do que o lado esquerdo, uma linguagem que tem sido mais compreendida por essa população (mais pobre).

CC: E não é para superar o atraso, mas para preservá-lo…

CS: O nível de desenvolvimento capitalista a que chegamos, de desenvolvimento tecnológico, o próprio Marx dizia que corresponde também a uma maior concentração de renda e de empobrecimento dos mais pobres, incluindo vários setores da classe média. Isso é apresentado como progresso. A esquerda no Brasil não foi incapaz de ter um discurso para quem ficou para trás, para quem não interessa ao sistema. Nós tivemos um governo, nem vou dizer de esquerda, mas com partidos de esquerda, do qual o PSB participou também, e o que se fez foi aumentar o consumo. Bolsonaro e a extrema-direita têm sido um sucesso em várias partes do mundo porque fazem política ideológica. A esquerda abandonou a sua ideologia, esse que é o fato. A extrema-direita diz que não é ideológica, mas é a mais ideológica, enquanto a esquerda se acomoda e se distancia do público.

A classe média progressista tem muita dificuldade de compreender quais são as aspirações daquela classe lá embaixo

CC: O PSB tem sido sede aqui em Brasília de reuniões dos partidos de oposição, esse tipo de discussão aparece?

CS: Não. Lamentavelmente, as discussões são muito voltadas à conjuntura e aos fatos do curto prazo lá no Congresso, como a reforma da Previdência, o governo Bolsonaro. Vamos tentar iniciar no PSB essa discussão, já comecei em grupos menores. Precisamos de uma autocrítica profunda. Saída não é ganhar a eleição, saída é encontrar soluções adequadas para os grandes problemas que vive a população. Uma vitória eleitoral pode se transformar até, como lamentavelmente se transformou, num retrocesso (a reeleição de Dilma Rousseff seguida do impeachment, de Michel Temer e de Bolsonaro).

CC: O que o senhor imagina hoje para a eleição municipal de 2020? Para aonde vai o barco?

CS: Ainda é uma interrogação muito grande. Por duas razões. A primeira é que será uma eleição atípica. Pela primeira vez na história, e isso é bom, não teremos coligações proporcionais (alianças eleitorais partidárias na disputa por cargos de vereador, senador, deputados estadual e federal). Isso também vai acontecer na eleição de 2022 para o Congresso, irá ensejar uma reordenação partidária. E segunda razão é o cenário nos grandes centros, cidades com mais de 200 mil habitantes, e aí vai depender muito do cenário nacional. O País está muito polarizado. Eu acho que os progressistas devem se unir na medida do possível, embora eu seja defensor de que o PSB tenha candidato em todos os grandes centros. Acho que conjuntura nacional vai ser determinante sobretudo para os centros, as grandes capitais, São Paulo, Rio…

CC: E como estará a conjuntura nacional até lá?

CS: É muito difícil de prever com mais de um ano de antecedência. Nenhum cientista político apostou meses antes no que aconteceria na eleição de 2018. E a própria análise da eleição é uma análise equivocada que eu vejo nos meios de comunicação. O PT é apresentado como o grande derrotado e é uma mentira. Na verdade, o PT elegeu a maior bancada (na Câmara), o maior número de governadores, levou seu candidato ao segundo turno (na disputa presidencial), teve 47% dos votos. O PSDB foi com 40 e tantos (49), voltou com 29. O PMDB foi 50 e tantos (51), voltou com 34, o PTB foi com 25 (16, na verdade), voltou com 10. Os grandes derrotados na eleição foram os partidos de centro-direita que deram sustentação ao governo Temer.

CC: A economia pesou, não?

CS: Eu estou absolutamente convencido de que as políticas liberais, e neste caso agora (do governo Bolsonaro) ultraliberais, não dão solução para os problemas sociais nem econômicos do País. Isto é uma ilusão imensa. Receita liberal tem sido aplicada com muita frequência na Argentina e cada governo que vem é um desastre que deixa de herança. Pode funcionar por um tempo, se funcionar, mas não solucionará nenhum problema importante. Essas políticas são velhas conhecidas, o que está acontecendo hoje (no Brasil) é o aprofundamento de políticas que nós conhecíamos em grau menor e que mesmo assim não deram certo. Em grau maior, ela aprofunda a crise, em vez de resolver.

Uma vitória eleitoral pode se transformar até, como lamentavelmente se transformou, num retrocesso

CC: O senhor fala com empresários para tomar pulso das coisas e escuta o quê?

CS: Sou procurado por alguns e também por gente do sistema financeiro. Eu não vejo nenhuma segurança, sobretudo no meio da produção, sobre o que vai acontecer. No geral, o empresariado brasileiro se ilude com as políticas liberais. E alguns estão iludidos, mas não vejo ânimo. Hoje é difícil você encontrar um empresário da produção que não tenha uma perna no sistema financeiro. Porque ele se salva na tesouraria. Com o desastre na área industrial, o empresário vai para o sistema financeiro. Não consigo ver, em nenhum deles com quem converso, nenhuma esperança. O que resolve é investimento, público e privado, e para ter investimento é preciso ter segurança jurídica, estabilidade política. E a nossa crise, antes de ser econômica, antes de ser social, é política.

CC: Já ouviu abertamente de empresários que eles seguram investimentos por causa de incertezas políticas?

CS: Sim. Ninguém tem segurança para investir. O que há, aqui e ali, é quem diga: “Olha, com a Previdência, com a reforma trabalhista…” A reforma trabalhista foi apresentada como forma de criar empregos. Quantos empregos foram criados? Essas ilusões que são vendidas, e incrivelmente tem crentes para acreditar nelas, são frágeis demais para quem tem capacidade de analisar a realidade.

CC: Hoje há 400 mil pessoas a mais desempregadas do que antes da vigência da reforma trabalhista.

CS: Eu lembro sempre aos empresários, inclusive os que são do PSB, que o emprego cresceu no Brasil com todos os direitos da CLT. Foi com a CLT que o País se tornou a quinta, sexta economia do mundo (nos governos petistas), hoje é a décima (é a oitava), e tinha pleno emprego. Não vai ser com a precarização do trabalho e a diminuição da massa salarial que vai melhorar, é ilusão. Pode concentrar mais riqueza na mão de poucos, mas melhorar a situação social e trabalhista do País, jamais.

CC: Em um texto para debate interno no PSB, o senhor diz que a população não consegue discernir que a vida não melhora por causa dos segmentos políticos e empresariais que militam contra a Constituição de 1988. Por que acha que é assim?

CS: Há um processo de manipulação da opinião pública, né? Você tem meios de comunicação no Brasil bastante concentrados e bastante manipulados e os novos meios de comunicação se prestam ainda mais à manipulação.

CC: As redes sociais?

CS: Isso. Elas têm inúmeras vantagens e também a capacidade de manipulação da opinião pública, que aumentou imensamente. Veja o que aconteceu nas eleições americanas, nas brasileiras. E não é só na população menos informada, não. Eu converso com pessoas de classe média, amigos de classe média, e vejo que eles se deixam manipular de uma maneira inacreditável. As pessoas estão vivendo no Brasil um grau de manipulação através dos meios de comunicação tradicionais e novos sem precedentes. É tarefa dos partidos progressistas, incluindo o nosso, se modernizar para fazer uma contraofensiva. Se nós não fizermos a disputa desse espaço à altura do grau de manipulação que há, nós estamos perdidos. Observe o que aconteceu no Brasil: o que defende as piores ideias e não ofereceu solução para nenhum dos problemas (Bolsonaro), manipulou e ganhou as eleições.

CC: Até aí houve uma vitória ideológica da direita…

CS: Claro. A esquerda precisa também voltar a ser ideológica, de uma maneira moderna, de uma maneira revolucionária no melhor sentido da palavra.

CC: E o curioso é que a internet, ao surgir, era uma alternativa à mídia tradicional.

CS: Ela é uma alternativa, mas que você tem de estar preparado para utilizar. E quem tem utilizado é quem tem grandes interesses financeiros e políticos e sobretudo radicais de extrema-direita aqui e em várias partes do mundo. O campo progressista, transformador tem que ter ideias ideológicas, se não ele não disputa também. Esse é que é o fato, essa que é a nossa deficiência que tem de ser reconhecida tem que ser alterada.

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