Em 2016, durante a Comissão Especial de Impeachment de Dilma Roussef, José Eduardo Cardozo, então Advogado Geral da União e protagonista na defesa jurídica da Presidente, denunciava um sistema acusatório viciado, que travestia um golpe com a aparência de uma ação constitucional. Cardozo respondia às provocações que lhe dirigiam parlamentares após ter chamado o processo de “golpe de abril”. Discutia-se, portanto, o cinismo.
Quando se acusa o processo aberto contra Dilma de golpe não se questiona a validade do instrumento, mas seu uso político para afastar uma presidente democraticamente eleita que já não agradava tanto assim. Por isso, é possível avaliar que o Impeachment de Dilma Roussef se deu na forma de um escandaloso (e escancarado) exemplo de cinismo criminoso com fins políticos.
Durante todo o processo, a Comissão Especial de Impeachment, relatada por Antonio Anastasia (lacaio de Aécio Neves e opositor de Dilma) mostrou-se um jogo de cartas marcadas. É possível assistir à angústia da defesa da petista nos documentários “O Processo”, de Maria Augusta Ramos e “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa.
O termo “golpe” se popularizou como alcunha do Impeachment de Dilma e até hoje é utilizado para ilustrar, na linguagem, que se tratava de um processo ilegal que se valia de um instrumento constitucional. Era necessário tirar Dilma, porém não havia, ainda, o sangue frio necessário para um golpe à queima roupa. Recorreram a um teatro.
Tanto membros da defesa jurídica quanto da defesa política (os senadores e senadoras que brigavam para derrubar o relatório de Anastasia na Comissão) sabiam que lutavam em vão e que deveriam, portanto, aproveitar o espaço para fazer política, pois se tratava disso todo o teatro armado desde a votação na Câmara, liderada por Eduardo Cunha (hoje preso), que autorizou a abertura do processo. Na política se luta com política.
Àquela altura, já deveríamos ter acendido as luzes de atenção para essa nova, porém velhíssima, forma de fazer política. O cinismo cumpre seu papel quando mantém a imagem de um ideal na luta política anticorrupção, anti-sistêmica e quando manipula a população indignada, mas que não presta muita atenção nos jogos do poder. Naquele momento, era crucial tirar Dilma, como ficou provado depois, e colocar Michel Temer, o presidente mais impopular da história do Brasil, para estancar a sangria das investigações da Lava Jato – a operação que se revelou outro grande cinismo.
O cinismo como modus operandi manipula a verdade e, pior, se traveste de verdade. Manipula a opinião pública para levar adiante projetos perversos de poder, atendendo aos interesses de poderosos da direita que, jogando limpo, jamais conseguiriam o apoio da população. O Movimento Brasil Livre (MBL) foi o protagonista desta guinada ao cinismo nos jogos políticos brasileiros. Movimentaram, por meio de um noticiário fantasioso, uma massa indignada, perdida, que buscava mudanças e a alimentaram com ódio, gerando a demonização da classe política e destruição da reputação daqueles que não convergiam com suas ideias de Estado (leia-se projeto de poder). Promoviam a perseguição, formaram uma milícia digital.
Herança Maldita: de MBL a Bolsonaro
É herança do MBL o fantasma do comunismo, aquele mesmo que assombrou o Brasil em 1964, ter voltado à pauta. Os governos petistas nunca chegaram nem perto de serem governos comunistas ou socialistas. Questiono se tenham sido, inclusive, de esquerda. Mas o MBL ressuscitou, com restos mortais dos tempos da Ditadura Militar, o espírito cívico que queria ver o comunismo bem longe do poder – muito embora ele nunca tenha existido com força para tal. Quando conquistaram a opinião pública para a queda de Dilma Roussef ao movimentar o país com manifestações “democráticas”, apartidárias e elitistas, arrastaram no lastro uma legião de seguidores que, a partir de então, abaixaria a cabeça para toda sorte de desinformação e doutrinação que fosse publicada por eles.
As figuras centrais do MBL, Kim Kataguiri e Fernando Holiday, para a surpresa de ninguém, se elegeram parlamentares com o capital eleitoral construído por sua “militância”. Kim é Deputado Federal pelo DEM, uma super velha política de direita e Holiday é vereador em São Paulo pelo mesmo partido. Ambos se calaram diante dos casos de corrupção do presidente Michel Temer e tampouco se engajaram nas tentativas de impedi-lo. Trata-se de cinismo político e criminoso agravado pelo fato de Dilma Roussef nunca ter sido presa ou investigada após ser afastada do cargo. Michel Temer foi preso duas vezes e segue investigado. O fato concreto de Dilma ter sido absolvida das acusações que lhe imputavam após todo o teatro nunca foi discutido senão na bolha esquerdista.
Diante do fantasma do comunismo, dos escândalos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato, da impopularidade de Michel Temer na presidência, surgia cada vez mais o desejo de que alguém aparecesse para salvar tudo. Nada melhor que um grande cínico. A população não queria mais ninguém moderado, ao centro, mas sim aos extremos, à extrema direita ou, como se autointitula hoje, à direita verdadeira. Começa a nascer o Bolsonarismo, que tem em sua figura central um homem mediano, incapaz, mas cínico o suficiente para abarcar todos os medos fantasiosos e delírios em uma só figura.
Os grandes monstros criados para distrair e atrair a população aos seus discursos passaram, claro, pela moral e pela religião. A homossexualidade, a pedofilia, o aborto, a ideologia de gênero, a doutrinação ideológica esquerdista, a ameaça anticristã no Brasil (risos), a demonização e perseguição de artistas, o comunismo fantasioso, tudo muito bem construído e disseminado. São monstros símbolo do cinismo político que elegeria Bolsonaro.
Ainda hoje é difícil desmentir grandes símbolos deste cinismo, como o Kit Gay, a doutrinação ideológica nas escolas, as aberrações associadas a homossexuais, a mamadeira de piroca (essa sempre me surpreende e me faz pensar que quem acredita é tão cínico e perturbado quanto quem a inventa), e outros exemplos que chamamos de fake news. Não são apenas fake news, são parte de um discurso que atende a um projeto de poder. Diante do questionamento, inventam mais monstros, respondem com alguns gritos e outros tantos memes e, pronto, lacraram. Não dão respostas satisfatórias, não prestam esclarecimentos e seguem impunes.
O cinismo bolsonarista esconde um monstro maior: a Ditadura
O Ministro Sergio Moro talvez seja hoje um dos maiores exemplos do cinismo bolsonarista. Persona central nas discussões que envolvem o governo, Moro começou o ano como o grande nome de Bolsonaro. Era o coringa do presidente em meio a tantas controvérsias. Para quem havia apoiado Bolsonaro de forma acanhada, Moro cumpriu o papel de fiel da balança. Trouxe ao ministério algum respaldo da grande luta “contra tudo isso que ta aí” que representava. Por outro lado, mesmo quem ainda não desconfiava da parcialidade do ex-juiz começou a estranhar, após ter condenado Lula e agido para a manutenção da sentença, que ele tenha aceitado o convite para ser Ministro da Justiça de seu maior opositor nas eleições.
Como os escândalos envolvendo o Governo são comuns e frequentes desde o primeiro dia, Moro provou ser um grande cínico. De laranjas a envolvimento com a milícia, passando pelos desatinos proferidos pelo presidente, Moro sentou-se à cadeira ao lado de Ônyx Lorenzoni, investigado por corrupção, e de Ricardo Salles, o Ministro do Meio Ambiente condenado por crimes ambientais. É também colega de Damares Alves, a Ministra dos Direitos Humanos que persegue aqueles que não compactuam com sua visão fundamentalista de mundo. Moro optou por calar-se diante de tudo isso.
Se antes gostava de dar opinião sobre tudo, seu silêncio se tornou cada vez mais ensurdecedor. A cada investida de jornalistas, o Ministro se esquiva de alguma forma ultrajante: repete frases de efeito sobre a confiança no presidente, se furta a comentar os escândalos do governo e chega a rir, com deboche, diante daqueles que o interpelam. Moro chegou, no entanto, ao limite de seu desgaste desde que o site The Intercept Brasil começou a publicar a série de reportagens Vaza Jato, que explora a troca de mensagens entre Moro, Deltan Dallagnol (procurador da Lava Jato) e outros membros da Força Tarefa e mostra um grande esquema de colaboração entre parte julgadora e acusação no caso de Lula. Hoje, Moro é o maior escândalo do Governo e se transformou num fantasma a arrastar correntes.
É verdade que Bolsonaro não precisa de grande ajuda para escândalos. É da práxis do bolsonarismo estar rodeado de escândalos para concluir a narrativa. O presidente se comunica pelo Twitter e por lives na internet. Quase sempre para atacar alguém ou se defender de polêmicas criadas por ele ou seus filhos. Criam cortinas de fumaça o tempo todo na tentativa de manter a imagem que ostentam: não têm medo de briga nem da verdade, são polêmicos assumidos, não ligam para direitos humanos porque isso é uma bobagem e acham tudo um grande “mimimi esquerdista”.
Com essa narrativa alimentada, temos um homem mediano no poder que não representa, nem de longe, o que deveria representar um presidente. Bolsonaro cumpre muito mais o papel de influenciador digital de extrema-direita do que o de Presidente da República. No entanto, a piada deixa de ser engraçada quando todo esse cinismo esconde passos perigosos rumo a um estado totalitário, que persegue seus opositores, dilacera a vida dos pobres e coloca o aparato do estado para matar a serviço dos interesses de poderosos, inclusive estrangeiros.
Os primeiros sinais foram os ataques a Cultura e a Educação, com o fim do Ministério da Cultura, ataques orquestrados a artistas e os cortes das universidades e órgãos do MEC – claro, também com ataques a estudantes e professores. Desde a campanha (que parece não ter acabado), os ataques à oposição, os ditos “vermelhos”, são constantes e a perseguição a jornalistas rotineira. O presidente e seus filhos chegaram a perseguir, publicamente, professores da rede pública, divulgando nome e local de trabalho no Twitter. Também incitaram milhões de seguidores a atacar e linchar virtualmente alguns jornalistas. O simples fato de um jornalista discordar do presidente é motivo para ser bloqueado por ele nas redes sociais e ter sua conta invadida por mensagens de ódio. Este mesmo que vos escreve já foi vítima algumas vezes de ataques e comentários ofensivos.
Quando a família se confunde com o Planalto e temos um Presidente que mistura sua casa com a Presidência da República, fazendo do Poder o playground de seus filhos, temos o exemplo de que a política de carreira pode ter um alto custo para os brasileiros se perpetuada.
É preocupante o avanço deste governo e suas cortinas de fumaça ancoradas nas declarações absurdas do presidente que, ainda assim, encontram alguma ressonância. Para distrair das pautas dos vazamentos de Moro, da Reforma da Previdência, dos agrotóxicos liberados, do desmatamento desenfreado, da recessão que se avizinha, dos escândalos com laranjas e milicianos, cada dia um novo jogo no discurso: tem que ter Ministro evangélico no Supremo para barrar pautas progressistas, trabalho infantil é legal, japonês tem pau pequeno, Brasil é uma virgem que todo tarado quer, e por aí seguimos.
A passos largos, enquanto discutimos os grandes absurdos que representa Bolsonaro, o governo avança em pautas delicadas e que nos colocam em uma situação de risco. Acredito que vivemos num Estado de suspeição desde o golpe que derrubou Dilma, que se consolida num Estado exceção com a eleição de Bolsonaro. Uma eleição marcada por fraudes, disseminação de fake news e manipulação midiática dos eleitores não deveria ser levada a sério, ou, pelo menos, deveria ser investigada.
É verdade também que a Vaza Jato, do The Intercept, também se tornou uma cortina de fumaça para o Governo. Enquanto Glenn Greenwald prestava esclarecimentos a uma sessão lotada de deputados na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, a Comissão da reforma da previdência iniciava sessão com plenário esvaziado e audiência baixa. Glenn, a propósito, enfrentou uma dura tarde naquela sessão: teve de lidar com o escárnio e o cinismo dos deputados que apoiam o governo irrestritamente e que já fazem parte deste jogo sujo: basta contar uma mentira, distorcer alguns fatos, falar de homossexualidade e o discurso vencerá.
Quando chegou a vez de Moro falar ao parlamento, um show de mediocridade tomou conta da sessão. Moro se esquivava de todas as perguntas, ria de parlamentares, não respeitou a casa em que estava e se apresentou numa calma impassível de quem sabe que nada será levado adiante. Mas vejamos porque não: a Polícia Federal, subordinada a Moro, se recusa a investigar o conteúdo vazado pelas reportagens da série Vaza Jato, que já apontaram absurdos suficientes para destronar o ministro. De sugestão de conduta a dicas de prova, Moro também escolheu delações, pediu para encerrar investigações e agiu em acordo com a Rede Globo para maximizar a força da operação Lava Jato e, por consequência, sua própria imagem.
O Brasil vive tempos de absoluto obscurantismo e valorização da mediocridade. O projeto de poder que aí está se alimenta de golpes constitucionais, até que se estabeleça um golpe de poder de fato. Os ataques à diversidade, o desmonte da educação, da ciência, cultura, das políticas públicas para as mulheres, a população negra e LGBT, os ataques ambientais, as vendas de nosso patrimônio, a união do poder máximo a milícias, já deveriam ter nos colocado em estado máximo de atenção.
Na semana em que Governo pormenoriza e faz piada com o tráfico internacional de cocaína em avião presidencial, que o exército brasileiro homenageia oficial de alta patente do nazismo em seus meios de comunicação oficiais e em que Moro resolve perseguir um jornalista que lhe faz acusações quando deveria se afastar do cargo e deixar a Polícia Federal agir com lisura, vivemos o estado puro do cinismo que nos aproxima, por fim, da formalização de um estado autocrático, pois nele já vivemos. O salve-se quem puder chegou.