Peço a paciência do leitor para o longo texto, mas é urgente discutir a pauta da homofobia e o que representa eleger um presidente autodeclarado homofóbico no país que mais mata LGBTs do mundo. Mais do que um relato, quero aqui fazer um exercício de análise e reflexão. Quero falar sobre empatia, sobre viver em sociedade, sobre autoritarismo e política. Quero falar sobre homofobia.
Durante as eleições, muito antes de ver qualquer agenda (ou ausência dela) na plataforma de Bolsonaro, eu fui amplamente contra a apreciação de seu nome para o executivo. Me posicionei de forma veemente e crítica, mas não restrita, ao comportamento homofóbico dele, porque diretamente me atingia. E “esperancei”, do verbo esperançar mesmo, que pessoas próximas a mim entendessem o quão grave era “me amar” e votar nesse homem. Faço deste espaço e desta data (28 de junho, dia do Orgulho LGBT) uma oportunidade de destrinchar melhor o que queria dizer.
No conceito de “viver em sociedade” não cabe o egoísmo. Uma sociedade divide o território como espaço de convívio e, neste território, vive de acordo com um código de leis que deve, num Estado Democrático de Direito, tutelar cidadãos, resguardar direitos e deveres, garantir o direito à igualdade e o direito de ser diferente enquanto indivíduo. Numa sociedade, seres diferentes devem conviver em harmonia. O oposto disso, ou o menor sinal de oposição a este modus, é a transgressão e a agressão.
O conservadorismo não pode ter espaço numa sociedade que quer ser plural, progressista e zelosa dos seus. A sociedade é mutável, portanto. Não é, e não deve ser, a mesma em que meus antepassados mais remotos nasceram, nem mesmo a de meus avós ou de meus pais. A sociedade se transforma a medida em que os sujeitos tomam consciência daquilo que são e mudam (ou lutam para) mudar o seu entorno. Hanna Arendt nos lembrava disso já em seus primeiros trabalhos: são as condições que tendem a suprir a existência do homem. As condições variam de acordo com o lugar e o momento histórico do qual o homem faz parte.
Valores Morais: licença para odiar
É claro que a transformação da sociedade nem sempre se dá no campo progressista, da evolução. Meu pai costumava dizer que a humanidade “involuía”, criando uma ideia de contrário da evolução social. Em diversos pontos, eu compreendo o que ele queria dizer. Grosso modo, para meu pai, o conceito de “involução” se relacionava diretamente com a transformação social que se afastava da ideia de sociedade a qual ele estava acostumado. Isso é perigoso, percebi com o tempo. É muito fácil confundirmos o status social datado com o conceito de “valores”. Por isso, o exercício do pensamento crítico deve ser estimulado: para que possamos compreender melhor nossos tempos e suas mutações.
A ideia de “valor moral” tem sido usada de forma perversa para endossar o preconceito numa ideia de sociedade parada no tempo, que não se encontra em estado pleno de evolução. O apego aos valores morais de outros tempos (os “bons tempos”), o “valor dos valores” que nada são senão o ranço de uma sociedade já modificada pelo curso da História, não pode ser usado como validação do discurso preconceituoso e imperativo sobre a vida do outro. O discurso de ódio.
Voltemos a Jair.
Jair Bolsonaro, como bem lembra Eliane Brum em um de seus artigos, é como aquele nosso tio apegado a tais valores morais. Por isso, milhões se viram em sua figura e votaram nele. O tio que faz piada com “bichinha”, mas está tudo bem. O tio que faz piada racista, mas não tem nada de mais. O tio que fala que “na Ditadura era tudo maravilhoso” e que defende tortura, mas que é que tem? Este tio, que se senta no café da manhã de regata, come seu pão e conta umas piadas que, às vezes, deixa todo mundo desconfortável, pode ser mortal caso tenha a oportunidade do Poder.
A relação de pessoas como Jair Bolsonaro e diversos “tios do Brasil” com o poder é clássica, antiga e deveria estar fadada ao esquecimento. Bolsonaro é a figura autocrática ridícula, partindo da análise estética: se embebeda de poder, acha que todos são subalternos a ele, ignora protocolos e acordos, procura beneficiar e proteger toda a família numa política patrimonialista e, com base nos valores morais, destila ódio por aí.
Um ódio clássico de Jair, típico da classe média apegada ao conservadorismo, é a homofobia. Odeia gays, menospreza, fazia e faz piadas abjetas, transformando-nos em aberrações ou atração de programa de auditório. Meme a meme, nascia ali o próprio escárnio do absurdo que deixaria vir à tona tudo aquilo que muita gente guardava no armário.
Por isso, seu discurso de violência, intolerância religiosa, teocrático e racista também me afastaram diametralmente de qualquer campo que o considerasse um nome possível para assumir a presidência da república. Não havia espaço na minha vida, na minha história, no meu sujeito e cidadão, na minha participação na vida em sociedade, que me permitisse apoiar Bolsonaro, quando ele, ancorado no fundamentalismo e no autoritarismo, tentava ditar o que era certo e o que era errado e ensinava que odiar era correto, questão de opinião.
Não vou chafurdar na lama de Bolsonaro, pois seu histórico de absurdos já atingiu o panteão da posteridade: ninguém tira dele este ônus. Voltando à abertura do texto, à época das eleições meu discurso se endureceu contra seus eleitores, principalmente aqueles que me conhecem, justamente por ele incitar, promover e relativizar a homofobia e a transfobia.
Passa pelo princípio de viver em sociedade resguardar o direito de existir do outro, independentemente de o amarmos ou não. Faz parte da vida social prezarmos pela vida do outro, pela liberdade, pelas escolhas livres. No meu conceito de vida conjunta, quando se habita o mesmo território, faz parte lutar no mesmo fronte: aquele que não fere a existência de ninguém. Caso contrário, não há possibilidade de receber meu apoio ou de qualquer pessoa que preze pelo próximo.
Lembro-me de um texto que circulava em resposta às denúncias de homofobia de Jair: dizia que opinião se respeitava e que “tratar gays com respeito” não era pauta de presidente, mas sim “empregos, economia, saúde e segurança”. Bom, homofobia não é questão de opinião. É quase uma chicana linguística para camuflar e autorizar o ódio. Não vou descrever como se trata também de empregos, economia, saúde e segurança quando se fala em respeitar e garantir direitos de cerca de 10% da população (segundo IBGE/2018), pois a estatística fala por si. Mas posso falar sobre o que se diz de uma pessoa que destila ódio prosaico e corriqueiro a frente de um país. No que se transformaria este ódio quando no Planalto?
Pois este ódio ganhou força, presença e as ruas. Abraçados pelo neopentecostalismo, esse fenômeno acachapante, alinhado a parlamentares no poder e, agora, ao Planalto, os homofóbicos estão cada vez mais fortes, mais atuantes e ocupam mais espaços, acanhando e encurralando os LGBT brasileiros. E ninguém faz nada de concreto para que essa realidade mude, porque é a realidade de apenas 10% da população. Esse medo, portanto, se torna relativizável.
Homofobia e medo
Medo talvez seja uma coisa complexa demais para explicar em poucas palavras. Medo só sabe quem sente. O medo de um presidente que discursava com ódio homofóbico era o medo correlato ao de experiências já vividas, de história de vida. Quem não vive na pele o medo de existir, não sabe o que é sair na rua com medo de não voltar do jeito que saiu, com a integridade física violada. O medo de Jair Bolsonaro homofóbico na presidência era o medo da chancela militar e “republicana” ao ódio que sairia do armário.
O dia de hoje, do orgulho gay, gera uma revolta nas redes sociais sem precedentes. Há muito tempo esse discurso do valor moral falso não era relatado com tamanha evidência. Havia, de alguma forma, sido estancado. Também pelo sequestro da pauta pelo capital, que transformou a luta em fonte de renda de grandes redes de varejo, mas sobretudo porque se discutia abertamente a transformação social. A discussão, os questionamentos plantados, os pontos de interrogação estavam funcionando, de certa forma. Ou pensávamos que sim. Hoje, o medo voltou à pauta dos LGBT e a opressão voltou à pauta dos ditos conservadores.
Antes de ter a consciência de que eu era um sujeito que estava a margem, eu enfrentei muita homofobia na vida. Piadinhas, segregações, bullying, algumas agressões e abusos psicológicos de quem faz jogos com a mente de quem já se sente oprimido, mesmo sem saber o porquê. A história única de cada um é marcada por seus próprios traumas e ressentimentos. A história única de um LGBT é marcada pelo medo, pela vergonha plantada de existir e pelo corpo marcado pelo estigma de ser algo (sim, algo) descartável, abjeto.
A homofobia já me deixou em depressão, afastado de minhas funções. O medo do medo já me deixou paralisado, sem estudar. Já tive medo de estudar em determinado local porque disseram que lá “viado não tinha vez”. Já tive medo de ser parado na imigração por ser gay (é paranoia, mas não é delirante). Já tive medo de andar na rua em determinados horários. Já tive medo de me dizer quem eu sou e apanhar.
Dos mais absurdos casos pessoais de homofobia, posso citar um exemplar. Quando criança, aos 12 anos, uma diretora de escola me chamou a sua sala, talvez por ter percebido algo de diferente em mim, algo que nem eu mesmo compreendia ainda. Em um ato de tirania, ela me trancou em sua sala, junto a professoras que se calaram, e me perguntou se eu tinha vontade de ser mulher, por eu ser diferente. Este ato de agressão psicológica, eu sei, passa longe das agressões físicas que outros menos privilegiados que eu enfrentaram. Sei que alguns pagaram, inclusive com a própria vida, este preço. Mas também passa muito perto se condicionarmos a ideia de sociedade ideal que as pessoas cultuam, onde eu não teria espaço e muito menos voz.
Diante desse medo da transformação social, quantos alunos foram silenciados por suas diretoras tiranas? Quantos pastores e beatas encurralaram jovens com o papo de reorientação sexual? Quantas formas de preconceitos foram validadas? Quantos outros foram mortos para que se limpasse as ruas? Quantos perderam seus entes em nome da ignorância e do ódio incontrolado de outros tantos?
Por isso era arriscado levar o processo eleitoral em que o misógino, racista e homofóbico Jair Bolsonaro era protagonista, como uma disputa genuína de projetos. O argumento ad hominem era totalmente cabível, porque tratava-se de um homem, sujeito, que não respeitava o rito em que se inseria, não respeita o Estado, não suporta conviver com diferenças e quer resolver tudo com arma e violência e discursos populistas e vazios. Não há projetos de país.
Por mais que se repita literalmente, palavra por palavra, todo o ódio e o desprezo que ele tem pelas pessoas, pelas instituições e pela coisa pública, as pessoas simplesmente ignoram, fingem não ver e repetem como zumbis “#B17”. Não importa mais se ele relativiza a totura, pois não suportam mais a ideia de um governo petista. Não importa mais se ele diz que ser gay é falta de porrada, pois não se suporta mais a ideia de PT no poder. Não importa mais se ele quer acabar com a cultura e desmontar o Ministério da Educação, pois não se pode mais ter PT.
Não era simplesmente uma “briga de torcida”, como muitos queriam colocar. Era brigar por existir, era brigar por viver. Com o corpo marcado pela homofobia, era inaceitável a ideia de que alguém que me conhecesse o apoiasse, pois era, e é, uma agressão direta a mim. Não existe relativização de homofobia. Homofobia mata. O discurso mata. A piada mata. A piada, aliás, não tem graça, e portanto perde sua função de fazer rir, apenas ofende o diferente.
É claro que não podemos ignorar toda a problemática relação da sociedade brasileira com a classe política, o descrédito, a desesperança e o desânimo com as figuras políticas “gente grande” do Brasil. Um trabalho muito bem feito pela grande mídia corporativa brasileira deu conta de suplantar a demonização de toda a classe política, dando espaço, vácuo e nicho para figuras como Bolsonaro. Por isso, não caio no fácil engano de que todo o eleitorado de Jair seja homofóbico, racista e misógino. Mas é possível também problematizar o que leva pessoas que não compactuam com algumas de suas principais ideias a votar nele.
O que mais me chama atenção neste processo de escolha de Bolsonaro como candidato por essas pessoas que se dizem não homofóbicas, no entanto, é justamente o posicionamento de isenção quando a pauta não lhes diz respeito. Eu nunca entendi por qual razão as professoras que viram a diretora tirana me ensinar que ser gay era errado ficaram caladas. Hoje as vejo no eleitorado: eram todos “professoras silenciadas” apoiando a diretora tirana.
Ou seja, “ele pode ser homofóbico, porque eu não sou gay”. Recorrendo ao meu pai, a esse fenômeno sim, eu chamaria de “involução”. É uma retração social que ignora o espaço do outro, o direito de existência do outro.
Afinal de contas, é viver em sociedade ignorar o risco de morte que o sujeito que você ama corre com a eleição de um cara que tem como bandeira a homofobia? É sobre essa luta que diz o Orgulho LGBT. Alguns oligofrênicos usam e abusam dos recursos estéticos e de linguagem para desacreditar o movimento, quase sempre caindo na fácil vala do que seria o oposto, o “orgulho hétero”.
É burrice, com o perdão dos ofendidos. O Orgulho LGBT diz de uma luta muito grande, diária, minuto a minuto, para constituir uma vida minimamente aceitável dentro de um contexto mais amplo e outros restritos: foi preciso muita luta para conseguirmos dizer abertamente quem somos. Foi preciso muita luta para dizer a quem amamos que a amamos. Foi preciso luta para simplesmente andar de mãos dadas. Para sermos representados. Para não sermos agredidos.
Para que eu chegasse aos meus 27 anos lúcido de minha condição e de meu papel político sendo quem sou, estando onde estou, foi preciso muita luta e superação. O fantasma da diretora tirana e seus lacaios sempre se fez presente em minha vida, e hoje o expurgo em linhas tortas. Foram muitas as diretoras pela vida. Inclusive hoje, no dia de hoje, ouvi um “vai tomar no cu, viado”. Simbólico, não? É o Brasil de Bolsonaro.
O Brasil é o país que mais mata LGBT do mundo. Matamos um LGBT por homofobia a cada 23 horas. Qual o recado que o eleitorado dá à população quando elege um militar autoritário e homofóbico? O de “tá liberado matar”. Se o presidente pode, por que não eu? A naturalização da homofobia cresce na forma de violência porque tem o comportamento legitimado pela figura máxima do poder do país.
Enquanto ainda considerarmos Bolsonaro apenas uma piada, continuaremos a morrer. Enquanto ainda considerarmos a disputa política como uma guerra de narrativas, estraremos fadados ao escárnio e à violência. Enquanto não voltarmos às bases, investir em educação, em aproximação com a classe trabalhadora, perderemos feio este jogo – mais do que temos perdido.
Portanto, tenho orgulho. Orgulho de ser quem eu sou. Orgulho de lutar pelo que luto. De lutar por mim, mas também pelo próximo. Orgulho de não ter me corrompido diante da fácil narrativa. De aderir ao pensamento crítico. De tentar desmontar o sistema para fazer um Brasil melhor. Eu tenho orgulho de poder dizer “eu te amo” a quem eu amo, sem medo de ter que responder à diretora tirana, porque seu poder já não exerce força sobre mim.
Essa é a luta contra a homofobia, nunca se esqueçam: é sobre espíritos marcados, é sobre destinos selados, é sobre o controle de corpos.