Por Rogerio Dultra dos Santos
A obra máxima de Maquiavel não é O Príncipe, de 1513 – o seu livro mais famoso –, mas os Comentários sobre a Primeira década de Tito Lívio, escrito em 1527 ainda em exílio forçado pela queda da República florentina e pela ascensão dos Médici ao poder.
Ao contrário do que pode parecer numa leitura desatenta d’O Príncipe, Maquiavel era republicano de raiz e a sua classificação como um autor moderno se deve às teses desenvolvidas nos Comentários, onde advoga que a saúde das repúblicas se alcança através da moderação institucional dos conflitos entre os interesses do povo e os dos governantes.
A magistratura acessível, o Tribunato da Plebe, seria o canal de deságue das insatisfações públicas. O direito de acusar os que atentam contra a liberdade é uma espécie de válvula de escape das tensões sociais, uma instituição que favorece “a explosão regular dos ressentimentos”.
Estas tensões, quando bem encaminhadas, são compreendidas pelo florentino como altamente positivas para as finalidades republicanas da liberdade, felicidade e grandeza. “A desunião entre o povo e o Senado”, argumenta, “foi a causa da grandeza e da felicidade da república romana”.
Muito antes de Marx, portanto, Maquiavel desenvolve uma espécie de “sociologia do conflito” como uma dinâmica funcional à vida política da cidade, dando protagonismo ao povo, sujeito de virtudes tão admiráveis como as dos príncipes de seu primeiro e mais incensado texto político.
Alarga ali também a tese de uma espécie de “burocracia de Estado”, instituições duradouras capazes de permitir estabilidade para além dos mandatos dos governantes, que para ele deveriam ser periodicamente eleitos.
Sintomaticamente entende que a ausência ou o mau funcionamento do Tribunato da Plebe como canal de denúncias sobre malversações da coisa pública estimula as calúnias.
Macchia, como o chamavam os mais íntimos, é severo com seu primeiro empregador, Pedro Soderini, para ele o principal responsável pela queda da república florentina. Um Tribunal de apenas oito juízes – organizado por Soderini – não era capaz de conter a ambição dos influentes. Esse “pequeno número se curva facilmente à vontade dos poderosos” e passa a transacionar decisões pelo vil metal.
Como evitar a corrupção? Para o autor, é fundamental diferenciar calúnias de denúncias. A calúnia “dispensa testemunhos e provas: qualquer um pode ser caluniado por qualquer um”. Já as acusações “exigem provas exatas, com a indicação de circunstâncias precisas, que demonstram fatos”. As calúnias estimulam o facciosismo e levam à ruína do Estado.
No século XVI temos às claras os alicerces modernos do princípio da legalidade e do devido processo. Maquiavel é, assim, menos maquiavélico do que nos levam a crer seus críticos de orelha.
“Os fins justificam os meios”. Esta é uma frase que nunca saiu da pena de Maquiavel. Autonomia e liberdade eram os fins republicanos de toda a sua engenharia política. Se rompeu com a moralidade cristã não foi em nome de uma amoralidade cínica como o acusam. Foi para garantir a república de seus sonhos. Livre da corrupção dos velhacos e digna a ponto de permitir a vontade do povo ter voz.
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Nesse sentido, o heroísmo não tem vez na composição conceitual maquiaveliana. Os heróis das tragédias gregas são fadados ao fracasso. Violam em geral as leis da cidade e servem como pedagogia, como reforço à obediência dos que pensam em romper o direito.
Antígona, Medéia, Hécuba, Édipo, são variados e extensos os exemplos dos que acreditam ser deuses a pairar impunes pela realização de seus desejos sem limites. Heróis, diferentemente dos quadrinhos contemporâneos, são modelos de sofrimento e penúria, de soçobro e derrota perante a ordem da cidade. A cidade os utiliza como exemplos do que não fazer.
Os heróis refletem o desejo de poder sem limites característico dos tiranos, outro arquétipo dos antigos, bem conhecido pelo Macchia.
Sempre que aparecem, os heróis antecipam a catarse trágica que ameaça de submersão a cidade. Têm, todos, pés de barro. A cidade triunfa, sempre, ao final. Mas qual cidade sobra? O principado autoritário ou a república livre? O desfecho permanece em aberto.
As denúncias produzidas em cascata pelo The Intercept contra a “Operação” Lava-Jato têm o condão de destruir os alicerces do golpe que atingiu de morte a nossa república.
Os acusados e a Rede Globo tentam transformar os vazamentos em calúnias, mas o resto da imprensa já está dimensionando o tamanho do estrago e adere sem reservas ao maior escândalo da história do judiciário brasileiro sob a república de 1988.
A desculpa de hackers invadindo celulares para adulterar mensagens é estapafúrdia e fere a lógica.
Os vazamentos demonstram fartamente, e se imagina a fartura que ainda está por vir, o verdadeiro e fraudulento esquema que se armou em Curitiba, sob os auspícios da lei, para perseguição política do Ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A torcida insana pelos heróis de Curitiba sempre antecipou o fato de que se sabia que estes deveriam justificar os meios pelos fins, ou seja, violar a ordem para entregar o prêmio, desejado em frêmito de ignorância e mediocridade.
Calunia-se a torto e a direito. O país afunda-se em fakenews. Como disse Maquiavel, sob o controle das calúnias, os caluniadores são premiados em reinados execráveis, onde predominam os medíocres.
Medíocres os há em todos os lados.
Nesses tempos de calúnias lançadas ao léu, li estarrecido professores de processo afirmarem ser um juiz parcial controlando procuradores o equivalente a provas de origem duvidosa utilizadas para inocentar réus condenados. São alcances óbvia e inteiramente diversos num caso penal. Um juiz parcial anula inteiramente o processo, enquanto provas que inocentam o réu – mesmo se obtidas ilicitamente – preservam o princípio da presunção de inocência, uma garantia cidadã contra o arbítrio.
São tempos de incerteza, instabilidade e angústia. São tempos de mediocridade e mentira. Tempos em que vale mais a torcida pela parte que a verdade dos fatos.
Nesses tempos, a Ministra Damares é uma caricatura perfeita. Sexista, ignorante, delirante, exala seus preconceitos em rede nacional de forma a funcionar como uma blindagem difusa para os malfeitos realizados pela área dura do governo. Enquanto se dissipam os ativos da Petrobrás, discute-se beijo gay e a cor das roupas de meninos e meninas.
Sergio Moro, depois das reportagens do The Intercept, está se transformando numa espécie de Damares do mal para Bolsonaro.
Moro começa a rivalizar com o próprio Bolsonaro, em seu desejo infantil – porque inconseqüente – de ser presidente. Sua inconsistência rivaliza com a dos terraplanistas e com os defensores da existência das mamadeiras eróticas.
Mas a incapacidade atroz do Ministro da Justiça e Segurança Pública traz uma instabilidade para a sustentação política do governo. A justiça não é a perfumaria que Damares fez do Ministério das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos.
Enquanto Damares deveria estar defendendo a vida de inocentes, Moro deveria estar evitando a morte produzida pelos supostos agentes da justiça. Nenhum dos ministérios está operando funcionalmente.
Tanto mais grave para quem se sustenta pela fama de herói contra a corrupção. Moro se revela, dia a dia, vazamento a vazamento, como o maior caluniador da república de Curitiba. Caluniador incapaz de trazer paz e segurança para o país, se esses vazamentos se confirmarem.
Sabe-se hoje, segundo o que se vazou ontem, que provavelmente mentiu no Senado, ao afirmar que não houve consequência de seu “conselho” para substituir Procuradora supostamente inábil para arguição.
Não somente o conselho foi ouvido por Dallagnol, como foi executado pelos procuradores a ponto de que a escala dos que participariam da arguição da audiência de Lula foi alterada, com a exclusão da Procuradora incompetente – incompetente segundo o juiz da causa.
Moro aparentemente mentiu de forma descarada ao Parlamento brasileiro. Mas a prevaricação (interesse pessoal em atos de ofício) e a advocacia administrativa (patrocínio de interesse privado valendo-se da condição de funcionário público) supostamente comprovadas pelos vazamentos não são o pior em andamento para o ministro em vertigem.
Desconfia-se – vide a reportagem do GGN – que sua esposa, Rosângela Moro, pode ter sido beneficiada por Marlus Arns, seu sócio, em delações negociadas com réus da Lava-Jato que pagaram caro para permanecerem livres, como Tacla Durán. Se se prova esta grave acusação, trata-se de corrupção da grossa. E o herói não vai ter Jesus na goiabeira que salve.
Aparentemente de forma distinta do que sugere o Maquiavel n’O Príncipe, The Intercept resolve fazer o mal aos poucos. Ou será que fez o mal de uma vez ao denunciar as mentiras da Lava-Jato e, agora, derrama a conta-gotas o bem da verdade que pode salvar o país da desgraça de uma débâcle institucional nunca dantes experienciada?
Certamente modernos como o velho Macchia, ansiamos pela cura dos males de nossa república. Desejamos a liberdade de todos aqueles submetidos aos desvarios da tirania de toga. Mesmo os maus e corruptos. Porque uma falsa condenação vale menos que uma nota de três reais. Há de se preferir dez Eduardo Cunha soltos que um Lula preso.
Afinal, uma conduta humanitária vale mais que a força de todas as armas de Roma e demonstra, ao mesmo tempo, a grandeza de qualquer república. Porque os fins não justificam os meios. Já pregava o florentino, mais moderno do que nunca.