O coletivo Transforma MP, que reúne procuradores progressistas de todo país (sim, eles existem, e são muitos) publicou há pouco um manifesto em que se posiciona sobre as revelações feitas pelo Intercept.
Confiram esse trecho do manifesto:
(…) o conluio entre qualquer uma das partes e o juiz, seja pelo mero aconselhamento de um a outro, seja pelo adiantamento de medidas a tomar e de decisões a proferir, revelam práticas contrárias ao que prevê expressamente o ordenamento jurídico nacional. No convívio profissional do foro é normal haver contatos amistosos entre os profissionais que dividem o mesmo espaço de interlocução jurídica. Advogados ou membros do Ministério Público normalmente pedem celeridade aos julgadores ou reiteram verbalmente as moções que já estão nos autos.
Porém, o caso até agora revelado, ao contrário, violou os fundamentos do Estado Democrático de Direito, no tocante a imparcialidade do juiz natural, consagrada como uma garantia fundamental pelo art. 5º, XXXVII e LIII, da Constituição Federal. O art. 254, IV, do Código de Processo Penal, por exemplo, estabelece que o juiz deve se declarar suspeito, ou seja, incapaz de julgar a causa, “se tiver aconselhado qualquer das partes”.
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NOTA PÚBLICA – Manifesto a favor da democracia e do Estado de Direito
11/06/2019 – Terça-feira, 11 de Junho de 2019
O COLETIVO POR UM MINISTÉRIO PÚBLICO TRANSFORMADOR – TRANSFORMA MP, entidade associativa formada por membros do Ministério Público brasileiro, sem fins lucrativos ou corporativos, na defesa intransigente da CONSTITUIÇÃO e do REGIME DEMOCRÁTICO, e em meio às notícias veiculadas pelo site de notícias The Intercept Brasil1, as quais revelaram conversas privadas de integrantes de importantes instituições de Estado (Poder Judiciário e Ministério Público), sugerindo atuação profissional destinada a prejudicar atores políticos determinados, em meio a tratativas pouco republicanas a respeito de processos judiciais de sua responsabilidade, vem à público se manifestar sobre as implicações jurídicas desse acontecimento.
A Constituição Federal (CF) em vigência foi pródiga ao prever uma série de objetivos fundamentais da República, elencados em seu artigo 3º, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais. A Lei maior também previu um número considerável de direitos e garantias fundamentais, a fim de proteger os cidadãos e cidadãs de práticas arbitrárias do Estado brasileiro, o que foi a regra na última ditadura civil-militar que manchou indelevelmente nossa história.
A fim de garantir o respeito e a implementação de todos esses direitos, a Constituição concedeu ao Poder Judiciário e ao Ministério Público autonomia administrativa e financeira (artigos 99, caput, e 127, § 2º), bem como conferiu aos seus integrantes direitos e prerrogativas importantíssimas (artigos 95, caput, e 128, § 5º), para que não se sujeitassem a qualquer tipo de pressão, interna ou externa, que pudesse influenciar negativamente em seu trabalho diário. Digno de nota ainda são os dispositivos constitucionais que proíbem os membros dessas instituições de exercer atividade político-partidária (artigos 95, § único, III, e 128, § 5º, II, “a”), em consonância com o princípio da impessoalidade (art. 37).
Embora tenham a mesma função (buscar o cumprimento da Constituição e das leis), cada instituição jurídica tem um papel bem definido a cumprir. No campo penal, o Ministério Público tem a função de exercer o controle externo da atividade policial, bem como de empreender diligências investigatórias e oferecer a ação penal pública (art. 129, I e VII, da CF). É uma instituição com poderes de iniciativa. O Poder Judiciário, por sua vez, não tem o poder de iniciativa, nem de investigação, nem de produção de provas. É uma instituição caracterizada pela inércia. Julga os fatos trazidos a seu conhecimento pelas partes.
No sistema chamado “acusatório”, uma instituição investiga e apura os fatos (Polícia Judiciária), outra promove a ação, complementando ou suplementando as provas, e as submetendo ao conhecimento juiz (Ministério Público) e outro analisa os fatos e provas e diz o direito de acordo com o caso concreto (Poder Judiciário). Assim é possível que uma instituição fiscalize e controle a atuação da outra, prevenindo, quando senão, coibindo ações ilegais e possibilitando um sistema jurídico coerente e transparente.
Nessa linha de ideias, o conluio entre qualquer uma das partes e o juiz, seja pelo mero aconselhamento de um a outro, seja pelo adiantamento de medidas a tomar e de decisões a proferir, revelam práticas contrárias ao que prevê expressamente o ordenamento jurídico nacional. No convívio profissional do foro é normal haver contatos amistosos entre os profissionais que dividem o mesmo espaço de interlocução jurídica. Advogados ou membros do Ministério Público normalmente pedem celeridade aos julgadores ou reiteram verbalmente as moções que já estão nos autos.
Porém, o caso até agora revelado, ao contrário, violou os fundamentos do Estado Democrático de Direito, no tocante a imparcialidade do juiz natural, consagrada como uma garantia fundamental pelo art. 5º, XXXVII e LIII, da Constituição Federal. O art. 254, IV, do Código de Processo Penal, por exemplo, estabelece que o juiz deve se declarar suspeito, ou seja, incapaz de julgar a causa, “se tiver aconselhado qualquer das partes”. Nesse mesmo sentido, é o enunciado normativo do art. 145, II, do Código de Processo Civil. E isso porque há uma quebra do dever de imparcialidade e de equidistância das partes com relação do órgão julgador.
Não estamos sequer diante do exemplo da “mulher de César”, mas da lição de Kant em A Paz Perpétua – resumida por Norberto Bobbio no Teoria Geral da Política: “Todas as ações relativas aos direitos de outros homens, cuja máxima não é compatível com a publicidade, são injustas”. Contatos entre agentes estatais, no exercício de seu múnus, ou ocorrem conforme a legalidade estrita ou são espúrios.
Não se desconhece a importância e a validade dos princípios da intimidade, da privacidade e da vida privada dos envolvidos (art. 5º, X, da CF). Entretanto, quando se trata de violação a deveres funcionais e da higidez de processos penais que lidam com a liberdade de pessoas, questionamentos sobre a conduta dos agentes estatais devem ser realizados, seja pelos órgãos judiciais responsáveis pela revisão dos julgamentos, seja pelos órgãos correcionais.
Da mesma forma, revela-se incompatível com o exercício de cargos da mais alta relevância a atuação para favorecer ou prejudicar determinadas pessoas, grupos, agremiações ou partidos. Tanto membros do Ministério Público quanto do Poder Judiciário não podem basear seus atos de acordo com preferências ideológicas ou partidárias, sob pena de contaminar seu trabalho. O único guia do profissional integrante de uma carreira jurídica pública deve ser o ordenamento jurídico, alicerçado nos princípios constitucionais. Quem escolhe seus governantes é o povo, de quem emana todo o poder do Estado (art. 1º, parágrafo único, da CF).
Destarte, o Coletivo Transforma MP confia que as autoridades (judiciais e administrativas) com atribuição para o conhecimento da matéria ofereçam respostas concretas e eficientes, tomando todas as providências necessárias ao seu alcance para o esclarecimento dos graves fatos noticiados, sob pena de enorme retrocesso em nosso processo civilizatório.
Coletivo por um Ministério Público Transformador
COLETIVO TRANSFORMA MP