Por Rogerio Dultra dos Santos
Assisti Democracia em Vertigem, filme de Petra Costa que estreou ontem no Netflix. Seguem abaixo algumas observações críticas:
Em termos estéticos, o filme me remete diretamente para o realismo documental de alguns diretores brasileiros, especialmente Leon Hirszman, não por acaso usado nas cenas das greves do ABC paulista entre 1978-1980.
Essa estratégia fílmica, aplicada aos fatos políticos recentes, nos devolve uma dimensão de luta política e de historicidade que nos foi roubada pela estética kitsch e pasteurizada a que estamos submetidos em geral. O país tem uma história com começo, meio, fins, motivos e origem.
O enquadramento de Brasília e do Palácio do Alvorada é um presente. Ele meio que nos devolve a dimensão do projeto de país idealizado na sua modernização, com os paradoxos e as violências inerentes. Mas, na origem, claramente um projeto a ser disputado.
Somos lembrados dos arranjos entre a política e o capitalismo através da construção daquela cidade, seus políticos e suas empreiteiras, seus artesãos e a exploração do trabalho. Todos os temas entrelaçados por uma narrativa pessoal, sensível e em certa medida naïve que não somente dá um tom confessional, como permite que se produza identidade e, ao mesmo tempo, afastamento crítico. Afinal, é a história recente que vivemos, nas não é a da minha família. É uma perspectiva semelhante, um ponto de vista compartilhável, mas não é o mesmo, embora todos tenhamos os nossos parentes bolsominions no armário.
Uma das mensagens (o filme é positivamente complexo nesse sentido) é a da ampliação de nossa impotência à medida que avançamos no recuo da luta histórica, nos permitindo conduzir pela política institucionalizada. Abdicamos como povo ao protagonismo e isso nos custou caro.
Existe, dessa forma, uma critica ao encastelamento do PT no poder, crítica produzida pelos próprios protagonistas do partido. Mas há, é claro, uma crítica muito mais radical aos representantes dos sucessivos golpes à democracia. Todos amparados pelos interesses do capital.
Há, assim, e ao mesmo tempo, uma personalização das responsabilidades – Lula, Dilma, Aécio, Cunha, Moro – mas persiste o grande quadro histórico da disputa de interesses em conflito.
Anoto o que talvez seja um ponto fraco do filme, que é a tentativa de compreensão desse cenário complexo através da ótica proto-moralista da corrupção. Mas esse ponto não é tão simples como colocado na filmografia de um cineasta de direita como o Padilha, por exemplo. Existe também aqui complexidade.
A cineasta não recorre à demonização da política e dos políticos, apesar da lembrança demorada das cenas bizzarras do impeachment. A fala do ex ministro Gilberto Carvalho dá o tom: “Nos não fizemos a reforma política”. Fica expressa a colonização da política pelo capital.
Assim, ao invés da construção de uma explicação simplista segundo a qual os políticos são corruptos e esse é o mal, somos apresentados a um cenário mais complexo, que envolve mídia, corporações, empreiteiras, interesse geopolítico internacional no petróleo.
Apesar dessa complexidade, é até possível encaixar essa narrativa na perspectiva oficial da Lava-Jato, a justificar a criminalização da política. Mas também aqui a diretora não perde a mão. A caçada política ao Lula é explicitada no que tem de parcial e corrupta, de um projeto político disfarçado.
A relação entre Moro, mídia e política se completa quando surge o último personagem, o personagem incidental da trama: Jair Bolsonaro. Aqui, o sentido histórico dos últimos trinta anos se completa. E a narradora, da mesma idade dos fatos, compreende o país e o que ele enfrenta.
Este é um filme importante. Em especial pelo que consegue resgatar de nossa imagem, pelo que repõe de lembrança sobre a nossa força, pelo que recupera da história de nossa luta e pelo que conclama, apesar do cenário de desespero. É um chamado para que voltemos às raízes, para recomeçar.