No FGV/Ibre
10/06/19
Entrevista | Mansueto Almeida – secretário do Tesouro Nacional
Por Solange Monteiro, de Brasília
Qual o limite para contingenciamento de gastos sem provocar um shut down da máquina pública?
Se tiver mais frustração de receita, dado que se tem uma meta para cumprir, e a posição dura do Tribunal de Contas da União (TCU) de cinco anos para cá, de fato será preciso cortar, pois é uma imposição legal. O espaço que a gente tem para corte parece grande, mas não é: 94% da despesa hoje é obrigatória. Então, se está fazendo corte sobre 6%, de uma despesa programada de R$ 1,412 trilhão (no relatório de avaliação de maio, o governo evitou novo congelamento usando R$ 3,8 bilhões de uma reserva orçamentária, dos quais R$ 2,16 bi para cobrir limitações do segundo bimestre, e R$ 1,6 bi para recomposição orçamentária nos ministérios de Educação e Meio Ambiente). A despesa nos quatro primeiros meses não foi cortada em relação ao ano passado, está até um pouco maior. O contingenciamento afetará daqui para frente. É um baita desafio. Ainda mais porque está sendo feito um bloqueio orçamentário para se entregar um resultado quase R$ 20 bilhões pior do que no ano passado. Em 2018, entregamos R$ 120 bilhões de déficit, e para este ano a meta é de R$ 139 bilhões. A gente não tem muito grau de liberdade.
E a atividade fraca ainda torna mais difícil o cumprimento da regra de ouro…
Uma coisa interessante deste ano é que se pensava que o grande limitador do ponto de vista fiscal seria o teto dos gastos, mas estamos muito abaixo do teto, cerca de R$ 30 bilhões. O grande problema realmente tem sido a frustração de receita, por três fatores. O primeiro é o petróleo. O orçamento de 2019 foi elaborado com o preço médio do barril a US$ 74. Na revisão que fizemos em março, o preço estimado estava em US$ 64, então perdemos receita de royalties e de participação especial. O segundo fator é o leilão da Eletrobras, que estava previsto para este ano, mas possivelmente não ocorrerá, o que implica menos R$ 12 bilhões. Além disso, o orçamento foi elaborado com um crescimento do PIB estimado em 2,5%, e o resultado está vindo muito abaixo que o esperado, transformando-se em uma expectativa de arrecadação menor, que nos levou ao contingenciamento de março.
A regra de ouro é um problema adicional, porque tivemos uma sequência de déficits primários que nunca tinha acontecido no pós-Constituição de 1988. Começou em 2014 e deverá se estender, eventualmente, até 2022, o que faz com que o governo tenha que se endividar para pagar despesa corrente. Isso vai frontalmente contra a regra de ouro, e daí a necessidade de crédito suplementar. Ao se elaborar o orçamento deste ano, em agosto de 2018, colocou-se R$ 248 bilhões na despesa dependentes da abertura desse crédito. E a gente agora está negociando no Congresso. Hoje nossa necessidade de fato, por descumprimento da regra de ouro, se reduziu bastante, porque teve o resultado positivo do Banco Central que não se esperava e que reduziu esse gap. Então o que vai acontecer é que, pegando autorização do Congresso, a gente vai ter funding para pagar os R$ 248 bilhões, mas possivelmente não vamos usar tudo isso com emissão porque temos dinheiro em caixa.
A partir de quando passa a valer a vedação do uso do lucro operacional do Banco Central pelo Tesouro para pagar dívida, sancionada pelo presidente Bolsonaro em março?
Ainda estamos em dúvida se o resultado deste semestre ficaria pela regra antiga, se passaria a valer a partir do segundo semestre, ou se haveria uma média ao longo do ano. Estamos fazendo uma consulta jurídica sobre isso.
Quanto à nova regra de cancelamento de restos a pagar não-processados, qual impacto poderia trazer para as contas em 2019?
A regra em vigor desde o decreto presidencial do ano passado coloca prazo para a liquidação desses valores. Antes, quando chegava em junho, as despesas empenhadas que não tinham sido liquidadas eram bloqueadas, e se fossem desbloqueadas pelos ministérios, não havia regra de cancelamento. Agora, os restos a pagar inscritos têm um ano e meio para serem liquidados, senão são bloqueados. E, ao serem desbloqueados, têm mais um ano e meio para liquidar. Ou seja, se depois de três anos não forem liquidados, esses restos a pagar são automaticamente cancelados. Não é uma medida que vai gerar uma fonte grande de economia, mas irá ajudar na execução orçamentária. Normalmente, a maior parte da execução de restos a pagar são de três ou quatro anos anteriores. Mas no ano passado, por exemplo, pagamos despesas empenhadas há oito atrás, ou seja, que foram empenhadas muito antes.
A primeira data de cancelamento automático será novembro deste ano, referente aos restos a pagar de 2016. No ano passado, esse estoque era de cerca de R$ 30 bilhões.
Potencialmente, então, o governo poderia contar com R$ 30 bilhões – valor que se equipara ao contingenciamento anunciado em abril?
No máximo, porque parte será liquidada. Outra coisa importante de destacar é que só há dois tipos de gasto que ficam foram dessa regra de cancelamento: o de restos a pagar de emendas impositivas, e o de saúde. Este último porque gasto mínimo constitucional é apurado em relação ao gasto empenhado, e em geral empenha-se mais do que se paga ao longo do ano. Se for cancelado, implicará descumprimento do mínimo constitucional.
O cumprimento da regra de ouro colocará o governo refém da aprovação de crédito suplementar não só este ano, mas nos próximos. Há planos de mudança na regra?
Acho que em algum momento teremos que mudá-la. Ela é uma regra de tudo ou nada, e isso é muito ruim. No caso das metas de primário, por exemplo, você tem relatórios bimestrais de avaliação de receita e despesa. Se a receita está vindo abaixo do esperado ou a despesa acima, está previsto um mecanismo de contingenciamento. O mesmo acontece com o teto dos gastos. Se há risco de descumprimento, tem os gatilhos: não se pode dar aumento real de salário mínimo, contratar pessoal. Mas a regra de ouro não traz esses instrumentos para corrigir o curso, tampouco uma avaliação periódica. Começamos a tratar dela no relatório de avaliação bimestral, mas não por exigência. Além disso, no caso de descumprimento da regra de ouro, o que nunca aconteceu até agora, também não fica clara como é toda a cadeia de crime de responsabilidade. Se quisermos mantê-la, será preciso melhorá-la bastante.
Há outros países que têm essa regra, mas em muitos, como nos Estados Unidos, as despesas de pessoal não são obrigatórias. Se o governo não tiver orçamento, pode mandar o funcionário público para casa, ou reduzir salários dos que trabalham em órgãos essenciais. Mas isso não é permitido no Brasil. Outra diferença é que em outros países que adotaram a regra de ouro a fatia das despesas livres, passíveis de contingenciamento, é maior. Quando juntamos esses dois fatores com o enorme desafio que o governo terá de cumprir o teto dos gastos – o que significa cortar a despesa primária em mais de 2 pontos do governo central em quatro anos de mandato –, fica uma coisa quase impossível. Até porque a regra de ouro tem uma forma diferente de calcular a conta de juros. Pelo cálculo feito pelo Banco Central, por competência (não leva em conta o pagamento ou não dos juros), a conta do setor público vem caindo; em 2016 era muito maior do que agora. Mas pela regra de ouro, que usa o regime de caixa, a conta de juros está aumentando. Isso é resultado do problema que tivemos em 2015/16, quando o Tesouro começou a lançar títulos de prazo mais curto, e em maior quantidade, com medo de que as condições piorassem ainda mais. Em 2015, o Tesouro foi emissor líquido de títulos, vendeu mais título do que precisava no mercado, para construir um colchão. Só que grande parte era LTN, com vencimento em quatro anos, e com pagamento de juros na data do vencimento. Por isso, aquele desequilíbrio de 2015/16 está aparecendo na conta de juros da regra de ouro só agora. Então, além da gente não ter instrumento para correção do rumo, tem a questão de caixa que está refletindo, por defasagem, um desequilíbrio de quatro anos atrás. É uma baita confusão, que torna o cenário muito desafiador. Se quisermos manter a regra de ouro, teremos que em algum momento pensar em uma legislação que garanta um arcabouço jurídico melhor, e ter instrumentos que nos dê a possibilidade de, em caso de risco de descumprimento, acessá-los para fazer os devidos ajustes.
O senhor mencionou como exemplo o teto de gastos. Considera que os gatilhos presentes nessa lei estão bem construídos?
Há uma dúvida porque, como foi elaborado na lei, quando você não a cumpre, acionaria os gatilhos. O problema é que, do ponto de vista teórico, enquanto você tem despesa discricionária passível de corte, pode cumprir o teto dos gastos. No orçamento, toda a despesa não-financeira tem que estar sujeita ao teto. Se tiver extrapolando, corta discricionária, corta investimento. Mas chega um ponto em que é impossível. Este ano, a despesa discricionária já está no mesmo valor real de 2009, ou seja, de dez anos atrás. Então temos que discutir, junto ao TCU, para definir a partir de qual nível podemos disparar os gatilhos do teto.
Leia a íntegra da entrevista na Conjuntura Econômica de junho.