Nildo Ouriques e os novos desafios do PSOL

Divulgação

Reproduzo abaixo texto publicado por Nildo Ouriques em seu blog, um importante quadro do PSOL, apesar de hoje representar uma corrente dissidente, que traz reflexões que considerei interessantes não apenas para o seu partido, mas para todos os partidos de esquerda.

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O PSOL navega sem bussola

Eu sou diretor da escola do Estácio de Sá
E felicidade maior neste mundo não há
Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é o X do problema
Noel Rosa

Um dia de inverno e as moscas morrem
Sartre

A cada nova reunião do Diretório Nacional do PSOL, a cena se repete: a resolução aprovada com convicção e entusiasmo burocrático na reunião anterior é revogada pelos fatos pouco tempo depois. No entanto, a aliança majoritária não perde a linha e, em consequência, renova a convicção com desenvoltura sem, contudo, prestar contas do passado recente. Enfim, joga para frente e, tal como reza o ditado popular, seja lá o que deus quiser.

Em 8 outubro do ano passado – por exemplo – a resolução destinada a ocultar a enorme derrota política e eleitoral que sofremos na disputa presidencial indicava que a tarefa central do Partido no segundo turno era “a luta contra o fascismo e o golpe”. Naquele mês, sob os escombros de um resultado eleitoral pífio na eleição presidencial (0,58% dos votos válidos!), com modestíssimo crescimento eleitoral, o partido oferecia como justificativa para tal revés a realização de uma “eleição atípica” e ignorava todos os recados da realidade. A maioria do DN apontava a ameaça fascista como um dado inequívoco da vida nacional, uma novidade que teria surpreendido “a todos”.

Na condição de minoria, jamais defendi a tese petista do “golpe” e, menos ainda, alimentei o temor que levou a maioria a afirmar que marchávamos a passos largos para o fascismo. Enfim, nem golpe, nem fascismo!! É claro que, dada a natureza específica da crise do capitalismo dependente rentístico e do sistema político brasileiro, alertei sobre a guerra de classes movida pela burguesia contra nosso povo, mas neguei a iminência do fascismo. É preciso reconhecer que o PSOL não tematiza a crise em curso e, em consequência, é incapaz de fazer previsões realistas e duradouras. Na verdade, o PSOL atua respondendo aos fatos, especialmente aqueles que revelam, aos poucos, a natureza do governo presidido pelo protofascista Bolsonaro.

A resolução aprovada na última reunião do DN (25/26 maio), portanto, há poucos meses de distância da anterior, simplesmente não menciona uma palavra sobre a luta “contra o golpe” e, pasmem, silencia completamente sobre a ameaça do “fascismo”!!!

A luta contra o “golpe” era, de fato, ridícula, e cairia por seu próprio peso. Afinal, Bolsonaro venceu numa eleição cuja legalidade não foi contestada pelo Partido, de resto, o único terreno onde a “tese” petista do golpe faria algum sentido. Na realidade, a propaganda petista contra o “golpe” tinha, desde sempre, prazo de validade: as eleições presidenciais que, nos cálculos rosados elaborados pela burocracia petista, seria sem dificuldade vencida por Lula. Hoje sabemos que as eleições de 2018 arquivaram para sempre a narrativa oficial do PT, não sem antes render importantes dividendos eleitorais para o liberalismo de esquerda (56 parlamentares). No PSOL, a linha dominante era igualmente ilusória e, ademais, produziria resultados eleitorais adversos, pois o tal “diálogo” do PSOL com a suposta base petista constituiu um fiasco que hoje ninguém quer revisar posto que, em matéria de máquina eleitoral, o PT é muitas vezes mais eficaz que qualquer outro partido das correntes progressistas. Enfim, os eleitores do PT, cativos da narrativa despolitizante, mantêm fidelidade canina que ninguém pode beliscar. O PC do B que o diga… ficou sem programa gratuito de TV e também sem o valioso fundo partidário que toda burocracia idolatra.

Mas, se a “tese do golpe” era insustentável, a tematização do fascismo é, sem dúvida, assunto mais grave e merece consideração superior. A julgar pela comparação entre a resolução aprovada no ano passado em clima de extrema preocupação com nossas próprias vidas e o animado ambiente produzido por otimismo desmedido com um suposto “crescimento da resistência popular”, o fascismo é fenômeno que nasce na segunda-feira para desparecer candidamente no sábado! Na última reunião, nenhuma palavra sobre o tema! Nada! Há breve menção que vivemos um tempo… “instável”. Na prática, a resolução assemelha-se à previsão do tempo e, de fato, possui a mesma credibilidade científica da meteorologista da TV quanto seus autores! Um vago “cenário instável” no lugar da luta “contra o golpe e o fascismo”! Você pode acreditar?

Um militante socialista pode navegar na atual conjuntura orientado por essa “diretriz”? Como o Partido poderá ser protagonista e cumprir papel de destaque nas eleições de 2020 sem prestar contas de suas crenças anteriores? É verdadeiramente inacreditável que a crença de outubro do ano passado na ascensão do fascismo tenha sido substituída agora pelo enfrentamento à “ofensiva neoliberal e conservadora” do governo Bolsonaro! Quanta diferença!!!!

Qual a razão de tamanho giro político? A resposta é clara: o insaciável apetite eleitoral, produto de uma concepção parlamentar de política incapaz na origem de responder aos desafios inerentes à grave e profunda crise brasileira. A concepção parlamentar de política é erro tão comum na política quanto nocivo para o futuro da Revolução Brasileira. No atual rumo, levará o PSOL a grandes derrotas políticas…. e eleitorais!

A maioria do DN erra ao confundir o desgaste inicial do governo Bolsonaro com o desgaste do projeto de classe que ele expressa de maneira acidentada. Ora, a coesão burguesa somado ao enorme descontentamento popular com o petucanismo elegeu Bolsonaro e deu vitória estratégica para as classes dominantes na direção do ultraliberalismo conduzido por Paulo Guedes. O desgaste do governo não beneficia nosso partido. Ao contrário, beneficia o PT e, parcialmente, ao liberalismo de esquerda!

Na prática, a resolução aprovada na última reunião esboça sem dizer a política de “frente ampla” contra o “governo conservador” de Bolsonaro. A oscilação na caracterização do governo – ora como fascista (outubro/2018) ora como conservador e neoliberal (maio/2019) – não impede que a linha política autorize toda e qualquer aliança nas eleições de 2020. No entanto, esse otimismo ingênuo esquece que a crise é brasileira e, portanto, as alianças estarão orientadas pelo projeto nacional cujas figuras mais conhecidas não contemplam o PSOL. Nesse sentido, é absolutamente claro que a última disputa presidencial nada acumulou para o Partido, pois até mesmo a volta das entrevistas de Lula indica que a orientação de “dialogar com a base petista” constitui imenso fracasso político. Enfim, a insistência do PSOL em assumir o “Lula Livre” conspira contra nosso crescimento eleitoral e compromete fatalmente nossa identidade política! Lula livre, concedendo entrevistas ou em prisão domiciliar, permitirá ao PT capitalizar a oposição a Bolsonaro e reduzirá brutalmente o espaço político do PSOL.

Qual o cálculo da maioria do DN? Bueno, apostar em vitórias naqueles municípios onde o PSOL possui lideranças mais ou menos consolidadas ou mesmo garantir alguma presença na disputa do segundo turno das eleições de 2020. Nesse contexto, a resolução antecipada de tática eleitoral – batizada como “pontapé inicial” de um debate que somente deverá ocorrer no próximo ano – é uma maneira de legalizar um caminho já em curso e que o militante socialista autêntico toma conhecimento pela manchete de jornal.

No Rio, para dar apenas um exemplo, o jornal anunciava que “Freixo pode ter Benedita da Silva como vice na chapa 2020”, (Extra, 13/05). Onde passa o boi, passa a boiada, diz a sabedoria popular: e o que dizer do encontro entre Boulos e a neoliberal evangélica Marina Silva considerado “importante para a unidade pela democracia” conforme ele próprio definiu? Ora, de onde saiu essa linha política? Que tal a foto entre Boulos e Bresser Pereira, aquele economista que representa como nenhum outro a dupla moral da profissão, sempre pronto a servir ao melhor pastor? O que o PSOL ganha com encontros tão nocivos para a imagem do partido e para a prática militante? Os exemplos se multiplicam pelo país. No Rio Grande do Sul, a deputada Luciana Genro anuncia que a escolha para a prefeitura de Porto Alegre poderia resultar de uma prévia entre ela e Manoela D’avila do PC do B. Afinal, tá liberado a aliança com o PC do B?

O problema central é que a “orientação” toma o processo eleitoral como disputa que se realizará em condições normais da vida nacional. Eis o erro estratégico! A inexistência do fascismo como perigo eminente não permite ilusões sobre o período excepcional que vivemos sob condução do protofascista Bolsonaro e a coesão burguesa que aprofunda a dependência e perpetua o subdesenvolvimento. Nesse contexto, clamar por “todos contra Bolsonaro” é apenas um meio de permitir alianças com todo e qualquer partido, especialmente o PT, onde este quiser e julgar conveniente. Na reunião do DN, os pronunciamentos segundo o qual “o antipetismo é uma arma da direita” incapaz de ser disputado pela esquerda foi quase uma norma. Ou seja, estamos condenados ao miserável e infrutífero “diálogo com as bases petistas” como se ela de fato existisse e pudesse, no limite, ser disputada pelo PSOL!!! A ingenuidade é tal que a “base petista” é considerada objeto cuja existência é perpétua, apenas esperando um discurso sedutor para captá-la e jamais sujeito a violenta flutuação num período cujo fundamento é a guerra de classes contra nosso povo.

Enquanto Ciro Gomes não perde oportunidade para descolar sua imagem do petismo e da podridão do falecido sistema petucano, no PSOL, ao contrário, há quem acuse qualquer crítica ao PT como expressão do “antipetismo”, como se a crítica à podridão ética, política e moral do PT fosse sempre e em qualquer momento uma arma da direita! A recusa em indicar claramente a podridão moral e ética do PT e seus principais dirigentes segue levando água para o moinho da direita na medida em que esta opera com a arma da redução da política à moral e segue capitalizando a podridão moral da república como se não estivesse implicado nela. É assim que a maioria debilita o PSOL como via de superação radical do fracasso histórico do petismo; da mesma forma, neste caminho, ainda de maneira involuntária, oferecemos argumentos para todo aquele que com má fé julga o PSOL um mero “puxadinho do PT”.

Finalmente, a resolução aprovada pela maioria cria um GT encabeçado por Boulos destinado a discutir um programa para as disputas eleitorais em 2020 nas principais capitais do país e será “monitorada” pela executiva do Partido. Eu recordo a entrada de Boulos no PSOL, no dia anterior ao prazo legal permitido pelos tribunais para ele concorrer às eleições pelo PSOL. O discurso de Boulos era basicamente orientado por dois propósitos. O primeiro indicava que a esquerda não deveria “falar para os convertidos” e o segundo – especie de imperativo de ordem moral -, deveria ter “os pés sujos de barro”. Pois bem, Boulos, há poucos meses agarrou o caminho das universidades para “falar aos convertidos”, bem longe dos terrenos onde poderia sujar os pés de barro do tempo em que visitava ocupações. Não há surpresa na virada, obviamente. O fracasso eleitoral da operação que considerava o candidato presidencial do PSOL uma liderança do “maior movimento social” existente no país foi anunciado por mim no Rio quando pudemos, finalmente, debater algo sobre o destino do país e do PSOL. Agora, o mesmo Boulos cria um Instituto – tal como Lula!! – repetindo a catástrofe de um procedimento destinado a sabotar as instancias do Partido.

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A impotência em ação

Não era necessário ser vidente para anunciar o fracasso do PSOL na disputa presidencial, agora uma obviedade para muitos desavisados. A tese que sustentou a candidatura presidencial em nosso partido é antiga, embora não reconhecida pela juventude de nossas filas. A ingênua e nociva ideia segundo a qual uma liderança de movimento social poderia atrair a atenção eleitoral e marcar uma diferença política apareceu num livro recebido como maná pelo autonomismo antipartido no final da década de oitenta (1988) pelas mãos de Eder Sader. (Quando os novos personagens entram em cena). A simpática tese, obviamente uspiana, tinha como propósito a negação da função dirigente do partido, como se a luta política se resumisse ao esforço para unir movimentos sociais e “avançar socialmente” sem jamais tematizar a conquista do poder político. Nesse contexto, o partido político aparece como mera soma de movimentos sociais sem o influxo da luta de classes, das crises econômicas graves como a que sofremos agora e sem densidade e passado histórico nacional.

Ora, foram “teses” como essa que ajudaram no fracasso histórico do petismo, iludido com as possibilidades sempre passageiras de avanços sociais no interior da ordem burguesa e agravados pela podridão ético-moral de algumas dezenas de parlamentares ávidos por buscar um lugar ao sol nos marcos de um sistema que julgavam eterno e sob “hegemonia petista”. Nós, do PSOL, não podemos esquecer tão rapidamente essa amarga experiência que, ao fim e ao cabo, amplos setores sociais debitam na conta da “esquerda” mesmo quando podemos exibir atestados de muitos anos na oposição ao sistema petucano. No entanto, o inesquecível “boa noite presidente Lula” num debate presidencial, as sucessivas visitas a presídio em Curitiba, a criação de um instituto nos moldes da pior prática lulista, representam adesão tardia e catastrófica de uma linha que compromete o futuro de nossa luta e de nosso partido. A política de aliança agora esboçada é igualmente um grave erro que nos coloca na vala comum do petismo em nome de pequenas vitórias eleitorais ainda incertas e, no limite, pouco prováveis.

No momento em que votávamos essa catastrófica linha eleitoral, a convocatória da direita fracassava no Brasil inteiro; tal como indicamos, o projeto do proto fascista terá imensas dificuldades para constituir uma base de massa no contexto do projeto ultraliberal conduzido por Paulo Guedes e a camarilha de banqueiros que nos governa numa inédita e excepcional coesão burguesa. (https://nildouriques.blogspot.com/2018/09/o-segredo-de-bolsonaro-reflexao-sobre.html). A concepção parlamentar de política acredita que nada será fácil para Bolsonaro tomando como medida o humor dos deputados e senadores como se eles pudessem ditar o ritmo da luta de classes. Ora, é precisamente a luta de classes que dita o humor do deputados e senadores. Sem vacilação: tudo o que a coesão burguesa pretende será aprovado no covil de ladrões chamado Congresso Nacional. Tudo! Alegar que a proposta original não passa, que não sera como a avenida paulista deseja, não passa de conversa mole. O ideal ideológico do ultraliberalismo não pertence a este planeta e um regime de capitalização – para dar apenas um exemplo – não sera instituído de golpe. A burguesia já fala de “colapso fiscal” por meio de um batalhão de economistas e da imprensa monolítica destinada a manufaturar a opinião pública em favor da austeridade permanente. Depois de mim o caos!!!! Enfim, indicar o covil de ladrões como um obstáculo de resistência contra o ultraliberalismo não é senão um meio de afirmar o cretinismo parlamentar envergonhado dominante no liberalismo de esquerda.

A resolução do PSOL aprovada contra meu voto (a única abstenção), é de um otimismo ingênuo sem medida e, tal como a anterior, será vencida pela vida. A maioria seguirá afirmando que “não há alternativa” e qualquer outra opção é irrealizável. Essa ingenuidade custará caro ao país e ao partido. A dinâmica da crise atropelará impiedosamente a linha dominante.

O PSOL perde nova oportunidade, cativo de ilusões próprias e alheias. Ora, no essencial, as classes subalternas estão carentes de referencias críticas. Nesse terreno, Bolsonaro continua operando como se, de fato, fosse uma força antissistêmica, aparecendo como um presidente obrigado a ceder diante do covil de ladrões (Congresso Nacional), exalando críticas ao STF, denunciando a mídia monopólica, atacando os comunistas… Enquanto isso, o batalhão de economistas alerta cada dia com maior insistência para o “colapso fiscal” do país e, assim, sedimenta o terreno para o ultra liberalismo assaltar o estado na mesma medida em que multiplicam o sofrimento de milhões empurrados sem remissão para o abismo social de uma vida afundada no desespero e na humilhação permanentes.

Na mesma medida, o protofascista Bolsonaro segue indicando quem é a oposição: para a coesão burguesa o petismo é a oposição! O “velho sistema corrupto” é a oposição! O grau de liberdade que Lula já ganhou e tende a explorar ainda mais com entrevistas ou, quem sabe, com prisão domiciliar, não fará mais do que aumentar a polarização tão conveniente para o protofascista quanto para o liberalismo de esquerda encabeçado pelo PT. O que restará ao PSOL senão a marginalidade político-eleitoral e, no pior dos casos, o triste papel de “consciência crítica” do decadente petismo? Esse é o futuro sombrio que a maioria do DN reserva ao PSOL!

Redação:
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