O Lula Livre e as manifestações pela educação

Candelária, Rio de Janeiro, na noite de quinta-feira, 30/V (Crédito: UNE)

Está em curso um debate, no campo progressista, que esquentou um bocado após uma matéria publicada domingo, no Estadão, com o seguinte título:

‘Lula Livre e Educação são pautas inseparáveis’, afirma Gleisi

Trecho da matéria:

A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, disse neste domingo, 2, não haver uma separação entre a pauta do “Lula Livre” e as demais bandeiras da esquerda, como a da defesa da Educação. “Lula e educação são pautas inseparáveis. Essa moçada está indo às ruas pelo legado que ele deixou nesse País”, disse a petista, uma das poucas lideranças do partido a estar presente no festival Lula Livre, que reuniu artistas no centro de São Paulo, mas não contou com discursos de políticos no palco.

“Para nós do PT, ‘Lula Livre’ é estratégico, nós achamos que não há salvação da democracia com Lula preso. Nós sempre levaremos a pauta do ‘Lula Livre’ junto com a pauta da defesa da educação”, disse Gleisi. Perguntada se os partidos aliados também fazem a mesma associação, a ex-senadora respondeu que “muitos têm levado (uma agenda em conjunto coma outra)”. Citou o PCdoB e o PSOL e afirmou que Calos Lupi, presidente do PDT, visitou Lula na prisão.

Em seguida, a Folha publicaria outra matéria, com Fernando Haddad, que sugeria opinião divergente. O título era:

Sem aval de Haddad, petistas defendem que atos por educação preguem ‘Lula livre’

Trecho:

O ex-prefeito Fernando Haddad, porém, que foi candidato do partido à Presidência em 2018, discordou [de juntar a pauta pela educação com o”Lula Livre”]. Disse que o PT não pode “ter a pretensão de tutelar movimento social”.

“O movimento da educação é um movimento da sociedade, independentemente da posição que a pessoa tenha em relação ao PT e ao Lula.”

Reinaldo Azevedo, colunista do UOL, escreveu uma coluna bastante sensata sobre o assunto.  Azevedo tem sido um dos mais corajosos denunciadores dos erros processuais grotescos presentes na sentença de Sergio Moro que condenou Lula. Neste sentido, é uma voz solitária na grande imprensa. Talvez existam outros jornalistas que tenham a mesma opinião, mas não tem a mesma liberdade, independência ou coragem para expressá-la.

Depois de parabenizar Haddad pelo bom senso, e demonstrar respeito pela campanha Lula Livre, o colunista opina que misturar as pautas não seria boa ideia. Trecho:

Ora, ninguém vai arrancar da mão de manifestantes cartazes pregando “Lula Livre”. Como a maioria dos que se manifestam em defesa da educação já tem um natural sotaque à esquerda, é comum que lá estejam pautas alinhadas com essa visão de mundo, mas anunciar uma tentativa de aparelhar um movimento mais amplo e orgânico do que o “Lula Livre” é, com a devida vênia, de uma supina estupidez.

Entretanto, Fernando Haddad, certamente diante do mal estar provocado nos círculos mais próximos de Gleisi Hoffmann, publicou no twitter uma mensagem em que parece desmentir a matéria da Folha:

O DCM rapidamente republicou o post de Haddad, com um título que produz a narrativa aparentemente almejada pelo petista – ao menos para parte do público:

Haddad desmente matéria da Folha sobre bandeira Lula Livre em protestos da Educação

A coisa ficou meio confusa. Talvez a ambiguidade fosse mesmo o objetivo de Haddad, que tem de fazer uma ginástica admirável para contentar as alas do PT que tentam reestabelecer pontes com setores moderados da sociedade, sem causar, contudo, nenhuma ruptura com as alas mais radicalizadas do PT, muito fortalecidas desde a prisão de Lula. E assim Haddad conseguiu dizer uma coisa para uns, e outra coisa para outros.

Ninguém pediu minha opinião. Mas vou dar do mesmo jeito, supondo que ela talvez ajude alguém a olhar a questão de uma maneira diferente.

Eu acho que temos de separar as coisas. A fusão de tantos temas numa coisa só – Lula Livre – acaba dificultando um debate mais equilibrado.

Em seu artigo, Reinaldo fala que tem “dúvidas se um Lula Livre agora, nas ruas, não atrapalha mais do que ajuda o petista. Mas isso é lá com os companheiros”.

A dúvida de Reinaldo tem sentido, e ela deriva da seguinte constatação: uma coisa é o debate jurídico e político sobre a sentença condenatória (ou sentenças, no plural, já que agora são duas) de Lula; outra coisa é a campanha Lula Livre; uma terceira coisa é a função do Lula Livre dentro das manifestações contra os cortes de verbas para a educação pública; e, por fim, uma quarta coisa é a estratégia política a ser usada nos protestos contra os cortes na educação.

Todos esses temas conversam entre si, mas é preciso analisá-los separadamente. Hoje em dia, não adianta jogar nada para debaixo do tapete. Tudo tem que ser debatido exaustivamente.

A opinião jurídica sobre a sentença que condenou o ex-presidente Lula, assinada por Sergio Moro, e confirmada depois em segunda instância pelo TRF4, é um assunto complicado. Eu a considero – a sentença – infinitamente injusta. Centenas de juristas, do Brasil e do exterior, idem.

Entretanto, quem importa neste caso, os juízes responsáveis, de alguma maneira, pelo processo de Lula, seja na primeira, segunda, terceira e quarta instância, não pensam assim. Na segunda instância, os desembargadores chegaram a elevar a pena imposta por Sergio  Moro, o que, a meu ver, deveria nos fazer pensar seriamente se a batucada promovida pelo PT diante do TRF4, na véspera do julgamento, não teria mais atrapalhado do que ajudado o ex-presidente.

Este debate sempre foi, a meu ver, o mais importante, e o único capaz, efetivamente, de libertar Lula. Por isso defendi, desde o início, que o  PT, e todos aqueles que apoiavam Lula, investissem suas energias e recursos em ações de inteligência, ao invés de dispersá-las em acampamentos onde as pessoas dão bom dia, boa tarde e boa noite para o ex-presidente. Mas o caminho seguido, dos bom dias, foi o escolhido por Lula.

Como ações de inteligência, entendo publicação profissional de livros e revistas jurídicas, organização de seminários jurídicos nacionais e internacionais de alto nível, criação de think tanks especializados em direito e política. Tem sido esse, aliás, o meu caminho nos últimos anos, para combater a corrupção do Direito: estudar. Comprei e li diversos clássicos que denunciam o avanço do judiciário sobre as democracias. Até hoje, sempre que me deparo, num livro importante, com trechos que mencionam o autoritarismo do judiciário, sublinho e faço anotações. Minha intenção era política. Antes do golpe, meu objetivo era denunciar a tentativa de cercear o poder popular através de manipulação da justiça, em processos que sempre contavam  com grandes doses de manipulação midiática, do qual a Lava Jato é o exemplo mais acabado;  por isso eu os denominava de “conspirações midiático-judiciais”; depois do golpe, o objetivo passou a ser denunciar que tinha havido, efetivamente, um golpe; e, por fim, o objetivo era conter o seu aprofundamento, incluindo aí a prisão de Lula.

Ao longo das minhas leituras, encontrei trechos interessantes com denúncias e críticas à politização do judiciário em clássicos como A história da Revolução Francesa, de Michelet; a Democracia na América, do Tocqueville; o Federalist Papers; A Democracia e seus Críticos, de Robert Dahl; e mesmo a Teoria Pura do Direito, de Kelsen.

Tenho tudo isso anotado, para uso em artigos e livros.

Por fim, comprei – e os li! –  livros realmente especializados nesta relação entre justiça e política, como o Political Justice, de Otto Kirchheimer;  Los juristas del horror, de Ingo Müller;  o Estado Pós-Democrático, de Rubens Casara; Towards Juristocracy, de Ran Hirschl; e The Global Expansion of Judicial Power, de James Westheider (esse ainda estou começando a ler).

Isso sem contar os livros com coletâneas de artigos sobre a condenação de Lula, como o Comentários a uma Sentença Anunciada, editado pela Carol Proner, que não apenas li como ajudei a divulgar e distribuir pelo Cafezinho.

Eu e muitos outros estávamos nos preparando para um grande embate intelectual, confiantes de que se tratava de algo maior do que a injusta prisão de Lula, mas sobretudo de uma nova maneira de organizar golpes de Estado, subjugar um país e seu povo, e roubar suas riquezas.

Entretanto, Lula e o PT não botaram  fé no caminho da inteligência, como aliás nunca apostaram na inteligência ao longo de seus governos, e preferiram o caminho puramente político, e, por fim, eleitoral. Foi o mesmo caminho que nos levou a uma série de derrotas, que culminaram na vitória de Bolsonaro.

O caminho puramente político é bem diferente. Aqui temos uma clivagem ideológica aguda e paralisante. A esquerda, mesmo não-lulista, ou não-petista, tende a considerar a sentença contra Lula injusta ou frágil, enquanto a direita, em sua maioria, comemora a condenação do ex-presidente, e já bate o tambor para o julgamento em segunda instância da segunda condenação de Lula, relativa ao processo de Atibaia.

Aqui também entra um problema político muito grave, criado pelo PT e pelo próprio Lula, que foi a maneira como a campanha contra a prisão do ex-presidente começou a ser conduzida, já a partir daquele ato em São Bernardo organizado na véspera de sua entrega à polícia. Lula/PT passaram a associar a onda de solidariedade e indignação, criada por sua prisão, à defesa acrítica de seus governos e, em seguida,  a uma adesão automática à campanha pela volta do partido ao poder.

Boa parte da esquerda foi engolida nessa campanha, e isso se revelou um desastre eleitoral de proporções épicas, que fez com que o PSL montasse uma bancada enorme na Câmara dos Deputados e no Senado, que candidatos de extrema direita conquistassem diversos governos, como Rio e Minas Gerais, e Bolsonaro vencesse em muitos estados com uma votação esmagadora.

O debate jurídico ainda era possível ganhar, porque ele independia da formação de maiorias. Já o político, não era, e ainda não é o momento, porque a maioria da população brasileira, em especial os setores mais instruídos, que controlam as redes sociais, tinham – e tem ainda – muita rejeição ao PT, o que contamina sua opinião sobre a prisão de Lula, de maneira que, ao hiper-politizar o debate jurídico, acabou-se por prejudicar a defesa do ex-presidente.

Não sou contra um certo grau de politização do debate jurídico. Isso é inevitável, e até positivo. Mas essa politização tinha que ser muito equilibrada e estratégica, para não impedir o clima de diálogo, racionalidade e moderação indispensáveis para levar adiante um debate jurídico consequente.

O PSOL, por exemplo, na minha opinião, foi um dos que foram engolidos e prejudicados pela estratégia petista. Sua genuína solidariedade a Lula o associou excessivamente ao PT, o que o fez perder inteiramente sua identidade própria, levando o candidato do partido à presidência, Guilherme Boulos, a registrar a pior votação de sua história, 0,58% do total.

Muito se fala da votação pífia de Marina Silva, mas a verdade é que Boulos obteve pouco mais da metade da votação dela.

Outra parte da esquerda acabou se afastando da campanha Lula Livre quando viu que ela tinha se tornado: primeiro, uma estratégia eleitoral esquisitíssima, com o candidato, mesmo condenado e preso, querendo ser presidente a qualquer custo; e, depois da eleição, uma estratégia para isolar qualquer crítica ou visão alternativa ao  petismo.

Hoje, a campanha Lula Livre se transformou em algo muito diferente do que a simples campanha pela liberdade de Lula. Tornou-se uma coisa meio mórbida, exagerada, que tenta transformar Lula numa espécie de ícone mundial da esquerda. Esquerdistas desfilam com a camisa de Lula como ontem desfilavam com a camisa de Che Guevara. A imagem é poderosa, atrai parte da classe artística, que vive de símbolos e está sempre querendo estar na moda. Mas é uma coisa de nicho, de esquerda cult e universitária, e não traz nenhum resultado efetivo do ponto-de-vista jurídico, para liberdade de Lula (possivelmente atrapalha, porque os juízes se sentirão constrangidos a ajudar Lula com medo de serem vistos como associados a esse esquerdismo radical), e mesmo eleitoral, porque associa os candidatos ligados ao Lula Livre a um radicalismo chic que sempre foi profundamente antipopular, vide o desempenho de partidos da ultraesquerda desde a redemocratização.

A afirmação de que a eleição da bancada parlamentar do PT e dos governadores deve ser atribuída ao lulismo é exagerada. Os deputado do PT foram eleitos porque trabalharam duro em suas campanhas, eram políticos muito experientes, tinham uma espetacular máquina partidária (o PT era o partido com maior fundo partidário); os governadores, por sua vez, se elegeram por seus próprios méritos. Ninguém se elegeu por causa de Lula.

Quanto à função do Lula Livre dentro das manifestações pela educação, ou mesmo dentro da estratégia da oposição, eis um assunto sobre o qual temos de conversar com muita franqueza. A presença do Lula Livre nas manifestações pela educação não teria importância em outro contexto, em que o inimigo número 1 não fosse o presidente Jair Bolsonaro, eleito sobretudo por causa do antipetismo.

Bolsonaro e seu entorno perceberam isso. Eles têm pesquisa. Eles sabem que o antipetismo ainda é forte na sociedade, e que a maioria da população, em especial a classe média, que controla o debate nas redes sociais, é contra Lula. Então a sua estratégia para neutralizar as manifestações é simples: associá-las ao Lula Livre.

Os estrategistas do Lula Livre e os petistas, portanto, precisam ter cuidado. Boa parte da esquerda, de fato, apoia a liberdade de Lula, mas ao mesmo tempo tem críticas aos governos do PT, tem críticas ao PT hoje, tem críticas a Lula, e entende que a presença excessiva do Lula Livre em manifestações pela educação teria impacto negativo na opinião pública, invalidando todo o esforço de mobilização. Manifestação de rua tem como único objetivo influenciar a opinião pública; e não é por outra razão que os movimentos sociais, militantes políticos e cidadãos comuns sempre tiveram imenso cuidado com as pautas mostradas publicamente nas ruas.

A mesma pessoa que defende, por exemplo, a legalização das drogas, tomará muito cuidado em não levar essas bandeiras para uma manifestação pela educação. Para essa pessoa, contudo, todas as suas bandeiras estão integradas: uma sociedade civilizada, para ela, é a que respeita a educação e que não combate as drogas pela guerra policial, mas pelo esclarecimento. Mas essa pessoa conhece a dinâmica da política, e sabe que, se levar uma bandeira de legalização das drogas numa manifestação pela educação, acabará por prejudicar ambas as causas.

Sabendo disso, a pessoa usará o bom senso. Por exemplo, ao invés de levar uma enorme bandeira em favor da legalização da maconha, vestirá uma camisa estampada com uma folha de cannabis, e sua bandeira conterá dizeres relacionadas exclusivamente à pauta da educação.

Qualquer luta política, especialmente em tempos de guerra híbrida, requer muita inteligência e estratégia em termos de comunicação.

Esperamos que nossas lideranças políticas tenham bom senso e saibam conciliar todas as bandeiras da melhor maneira possível.

Em relação às manifestações pela educação, elas desenharam um caminho para a oposição a Bolsonaro: ter um foco, um objetivo, que seja muito justo e muito claro, e que dissolva as diferenças naturais entre os diversos campos que se opõem ao governo. Para mim, está claro que esses focos são: educação, saúde e emprego.

O tema da segurança me parece um pouco perigoso nesse primeiro momento, porque envolve a questão do monopólio da violência, o uso de armas de fogo, e ainda temos uma parcela importante da população que vive sob o medo, e o medo não é bom conselheiro. Além disso, a esquerda ainda precisa amadurecer um discurso mais coeso sobre segurança.

Mas os temas emprego, saúde e educação são universais. Unem pobres e classe média, direita, centro e esquerda. É por aí que o campo progressista, que é o líder natural da oposição a Bolsonaro, poderá encontrar o caminho para reconstruir uma nova hegemonia moral, ganhar eleições e emancipar o povo.

Redação:
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