Permitam-me sair do oba-oba, do “já ganhamos”, dos números sensacionalistas, dos exageros, que é uma característica da esquerda que, após tantas derrotas, e com Bolsonaro na presidência, me parece hoje apenas melancólica.
Ontem eu fui à manifestação no centro do Rio, em prol da educação e gostaria de partilhar algumas considerações.
Os sucessivos golpes que sofremos nos últimos anos me tornaram cético. Participei de inúmeros protestos nesse período, especialmente no início de 2016, por ocasião das lutas contra o impeachment, e aprendi a calibrar os vãos entusiasmos.
A sociedade brasileira é grande demais para caber em manifestações de rua, e por isso o verdadeiro sentimento popular – e quando eu falo popular, refiro-me ao conjunto da sociedade, periferia, miseráveis, classe média – corre por águas muito mais profundas.
Não sou contra manifestações de rua. Muito pelo contrário! Elas compõem parte fundamental do processo social, sobretudo por constituírem poderosa linguagem política. O povo apenas conseguiu derrubar tiranos e maus governos quando foi às ruas lutar por seus direitos.
Entretanto, um país como o Brasil, com 210 milhões de habitantes, a semântica da manifestação de rua tem um significado muito diferente do que, por exemplo, na Argentina, com seus 44 milhões de habitantes, 30% dos quais moram em Buenos Aires e arredores.
Sobretudo, há a questão da mobilidade. Uma coisa é protestar em Nova York, Washington, Berlim, Londres ou Paris, onde existe uma vasta e ágil rede de transporte público, metrôs, vlts, ônibus, em geral integrados. Outra coisa é protestar em cidades como São Paulo ou Rio, onde parte importante da massa trabalhadora demora duas, três, até mesmo quatro horas na viagem do centro – onde ocorre a manifestação – até sua casa.
Tenho meditado sobre isso pelo menos desde 2013, quando passei a olhar com um pouco mais de ceticismo para esse tipo de ferramenta de luta.
Minha tese é simples: geograficamente, onde acontecem as manifestações? No Brasil, como em quase todo mundo (mas aqui, por nosso gigantismo populacional e territorial, numa escala muito maior), a ocupação urbana obedece a uma lógica terrivelmente cruel e desigual, do ponto-de-vista econômico e sociológico. Nos últimos vinte anos, essa distribuição geográfica da política tem ficado sempre muito evidente nas urnas.
As manifestações ocorrem, portanto, em áreas centrais ou nobres das cidades, às quais as classes sociais mais abastadas conseguem acessar com facilidade, ao passo que são, para a maioria da classe trabalhadora, regiões de acesso dispendioso e longínquo.
O campo conservador parece já ter entendido isso: é cristalino como a água. Se a população que habita as áreas onde ocorrem as manifestações vota majoritariamente na direita, então a logística conservadora para encher uma manifestação é infinitamente menos custosa do que a progressista.
A essa dificuldade, deveríamos somar ainda uma outra, que é a antiga tradição sindical que hegemoniza a lógica das manifestações progressistas: elas ocorrem, sempre, em dias de semana, em horário de trabalho. E na hora do rush, ou seja, produzindo um enorme transtorno do tráfego, numa conjuntura em que o tempo e o custo de transporte constituem, para os trabalhadores urbanos, um dos fatores de maior sofrimento em suas vidas. Estrategistas progressistas, ao que parece, não gostam de pensar em questões mesquinhas como essa. Mas elas precisam ser pensadas.
Ontem mesmo na Candelária, pouco depois das seis, quando eu estava indeciso se ia embora ou ficava mais um pouco, dirigi-me para trás da catedral, onde não havia multidão, e testemunhei uma cena: um homem, de uns quarenta cinco ou cinquenta anos, vinha caminhando na direção da catedral, vindo dos lados do porto; ao se deparar com a manifestação, de onde saía o som ritmado das músicas de protesto, ele resmungou furiosamente em voz alta: “Carnaval hoje?”. Falou uns palavrões, e seguiu andando, na direção da presidente vargas, à procura provavelmente de um transporte coletivo. Sabe-se lá onde ele iria encontrar um, porque a manifestação de ontem obrigou a prefeitura a fechar a primeiro de março e a presidente vargas, artérias centrais de uma megalópole com 13 milhões de habitantes, e que tem, notoriamente, um sistema de mobilidade urbana dramaticamente caótico.
Eu pensei imediatamente que se tratava de um eleitor de Bolsonaro. Fiz até um rápido perfil psicológico do sujeito: truculento, agressivo, intolerante. Era muito fácil imaginá-lo contemplando rancorosamente, talvez até com uma ponta de inveja, as pessoas portando bandeiras e cartazes, bebendo cerveja, conversando alegremente, os jovens dançando e rindo ao ritmo dos tambores.
Não sei porque também pensei, como que para me defender, ou sob o efeito de ótica da manifestação, que esse cidadão fazia parte de uma minoria.
Entretanto, hoje, pensando melhor, vejo que eu estava equivocado: primeiro, mesmo que seja eleitor de Bolsonaro, e sobretudo se o for, não se trata de uma minoria.
Naturalmente, há muitas pesquisas que, para nosso conforto, nos dizem que a maioria da população costuma apoiar manifestações políticas. Mas esse é o tipo de situação em que eu, que venho há bastante tempo analisando pesquisas de opinião pública, me recuso a acreditar muito nelas.
Ora, é óbvio que uma parte importante da população, diante de manifestações que acrescentam problemas à sua já sofrida rotina, tenderá a vê-las com irritação. Já vimos isso em 2013, quando as pesquisas foram mostrando uma virada na opinião pública, com parte da população, especialmente os mais humildes, vendo os protestos com cada vez mais antipatia e irritação. Ironicamente, naquele momento, uma parte do campo progressista, por estar no governo, torcia para que a população perdesse a paciência de uma vez por todas com a proliferação interminável de protestos de rua.
Em função desse diagnóstico, o que fazer? Fazer manifestações nos finais de semana? Isso não prejudicaria o espírito meio de “greve” dos protestos da esquerda? O objetivo não seria justamente o de incomodar? Sim, mas a essa altura da divisão do trabalho, com os trabalhadores mais abastados podendo trabalhar em qualquer lugar, e sem mais nenhuma fábrica ou indústria presentes nos centros urbanos, cuja produção pudesse ser paralisada, a quem realmente esses protestos incomodam?
Me parece óbvio que, se o mundo muda, as estratégias também deveriam mudar.
Eu fui à manifestação de Uber e saltei pouco antes de entrar na primeira de março, porque esta já havia sido fechada. O trânsito estava infernal e decidi seguir a pé, já que faltavam apenas uns 500 metros. Logo ao passar pelo Palácio Tiradentes, sede da Assembleia Legislativa do Estado, vi um grupo enorme de estudantes, que pela faixa identifiquei serem da UERJ, cantando um refrão que me deu calafrios (já disse que me tornei cético): “Não vai ter corte, vai ter luta!”
Deu-me calafrios porque era a mesma melodia do “não vai ter golpe”, e eu havia prometido a mim mesmo não entrar novamente jamais nessa vibe, de entoar refrões negativos, porque não vinham dando nenhuma sorte nos últimos tempos. Tudo que cantávamos que não aconteceria, aconteceu.
Mas isso é superstição barata, e a cena dos jovens lutando pela educação era muito bonita e esperançosa. Meu ponto aqui é outro.
A gramática das manifestações continua sendo muito importante. Mas, em função das características geográficas e sociológicas do Brasil, além da evolução dos tempos, seria interessante que inovássemos.
Algumas coisas tem solução um pouco mais simples. A Candelária, por exemplo, não me parece um bom lugar para manifestação, por ser um eixo central do tráfego urbano. A Praça XV ou a Cinelândia seriam espaços mais adequados.
Entretanto, não seria hora de pensar em organizar eventos na própria periferia, de preferência em finais de semana? Que tal o Parque Madureira?
É uma ideia a se pensar, não?
Talvez na primeira vez não enchesse tanto, ou talvez enchesse muito por ser novidade, mas estaríamos inaugurando uma nova linguagem política, uma nova tradição, e abrindo uma série de portas para oxigenar o debate público nacional.
Isso significaria, naturalmente, algumas mudanças no formato e nas estratégias.
Ao invés desse formato meio “micareta” das manifestações da classe média progressista, com grupos de jovens integrantes de movimentos dançando e tocando tambores, como se estivessem num bloco de carnaval, ao lado de grupos empunhando bandeiras com siglas enigmáticas, seria interessante planejá-las para lhes dar algumas funções mais consequentes, como workshops profissionalizantes, cadastros para participação em ações políticas objetivas e, sobretudo, debates abertos.
A música, o tambor, a alegria, continuariam presentes, mas seriam complementares.
O formato dos “carros de som”, em que políticos e dirigentes sindicais berram palavras de ordem, poderia ser convertido em vários pontos de debate, minimamente organizados (para também não virar bagunça), em que populares poderiam fazer perguntas e dar sugestões aos políticos.
Debates sérios, consequentes, sobre a questão do comércio ambulante, do uso do lixo, nutrição, economia doméstica, segurança pública e, sobretudo, emprego, seriam extremamente úteis na periferia das grandes cidades brasileiras.
A própria educação poderia ser debatida. Me parece um pouco medíocre, num país como o nosso, debater a educação pública apenas de maneira defensiva, contra os cortes do governo Bolsonaro, sem ousar um pouco mais e discutir efetivamente programas pedagógicos mais avançados.
E discutir isso diretamente com o povo, apostando em sua inteligência, para que ele tenha oportunidade também de apresentar soluções!
Todos esses debates seriam filmados, naturalmente, e aí a população inteira do Brasil, e não apenas aquela que pode participar, passaria a enxergar as nossas manifestações como eventos didáticos, politizantes, organizados por pessoas não apenas interessadas em ganhar as próximas eleições, ou derrubar os atuais governos, mas ajudá-las, efetivamente, a melhorar um pouco a sua qualidade de vida.
O conceito de furar a bolha me parece fundamental. E isso vale para ambos os lados: para a “inteligentsia” esquerdista, formada por sindicalistas, intelectuais, profissionais liberais, professores, estudantes, enfim, por todo esse vasto segmento da população que teve a chance de adquirir uma formação política um pouco mais sofisticada, mas que está preso em suas próprias bolhas, frequentemente intoxicado por radicalismos ingênuos e sectários, e precisa ouvir mais a população mais pobre, aproximar-se dela, aprender com ela; e para as próprias periferias, que só se interessam por política em períodos eleitorais, quando toda espécie de oportunistas aparecem para lhes fazer promessas, e que é, mais que ninguém, vulnerável às manipulações dos grandes meios de comunicação, especialmente programas populares de rádio e TV. Esses dois grandes segmentos precisam se encontrar, trocar ideias, conversar.
Os partidos políticos, por sua vez, precisam se mostrar ao povo como ferramentas didáticas, como intérpretes e professores, responsáveis por explicar ao povo, com muita honestidade, qual é a situação econômica da cidade, do estado e do país, e poderiam instrumentalizar as manifestações para isso, e, portanto, estas teriam que ter um formato totalmente distinto, muito menos dionisíaco, ou seja, menos festeiro, e mais apolíneo, mais sério, como sério é o povo trabalhador. Suponho que, ao se mostrarem assim, os partidos melhorarão sua imagem junto ao povo.
Não é possível que os partidos de esquerda, especialmente os de ultraesquerda, não parem para refletir sobre a imagem que o povo tem deles? Não vêem que se tornaram caricaturas? E que não é o povo que está errado? Afinal, há partidos que aparecem ao povo apenas como bandeiras em manifestações, siglas que não significam exatamente nada. E assim, vemos legendas radicais que já se tornaram totalmente inexpressivas eleitoralmente, ou estão em vias se tornarem, terem cada vez menos presença na vida política institucional do país.
Uma outra vantagem de se mudar o formato e a localidade das manifestações progressistas seria de ordem estratégica: a questão infantil de se comparar “tamanho” das manifestações tornar-se-ia ridícula, à medida em que o fator “qualidade” ganharia mais importância. E quando falo em qualidade, refiro-me, sobretudo, ao impacto na opinião pública, tanto na opinião local, das pessoas presentes à manifestação ou residente nas adjacências, como na opinião distante, que a acompanha virtualmente pelas redes sociais e pela mídia.
Por fim, permaneço convicto de que mudanças objetivas, e mudanças para melhor, só poderão vir se conjugarmos ações políticas nas redes sociais, visando furar bolhas e conquistar parcelas maiores da população, iniciando pelas classes mais instruídas e daí chegando à massa, a manifestações de rua pensadas mais estrategicamente, integradas àquelas mesmas ações nas redes, e nas quais também tenhamos como objetivo principal não apenas falar aos convertidos, mas atingir a totalidade da população e reconquistar a hegemonia moral no debate público.