Racha na esquerda, parte 2

Abaixo segue o contraponto de Lucas Gondim ao artigo de Victor Moreto, um e outro publicados no Viomundo – e igualmente reproduzido aqui no Cafezinho, sobre o “racha na esquerda”.

Gostaríamos muito de saber a opinião dos internautas sobre cada um dos textos, e estamos abertos à participação de todos para que enviem também artigos com sua opinião sobre o tema (ou outros temas): redacaocafezinho@gmail.com.

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Com o erro, não há compromisso: resposta ao artigo de Victor Moreto

por Lucas Gondim

Escrevo em apreço à verdade dos fatos. Escrevo em justiça aos milhões de companheiros ciristas, que, sozinhos e sem grandes estruturas, depois de 16 anos sem seu candidato disputar uma eleição, desbancaram Marina, Alckmin e o PMDB.

Victor Moreto escreveu para o Viomundo com um objetivo claro: diante da derrota moral do petismo no debate político entre os blogs não-catequizados, lança mão de comparações indevidas, insinuações covardes e injustas, com o tom próprio de quem acredita que Lula é o início, o fim e o meio.

A relação PT x PSOL

Insinua Moreto que o comportamento exemplar, a ser seguido por siglas como PDT, PSB e REDE, é o do PSOL ou o do constrangido PCdoB.

Afirma que o PSOL procedeu, de modo desinteressado, à ruptura com sua origem crítica ao modelo petista, sendo, assim, o exemplo infalível das benesses da unidade progressista.

Ignora Moreto elementos cristalinos: a) o PSOL não virou “puxadinho do PT” por solidariedade, mas por interesse eleitoral, principalmente no Rio de Janeiro; b) há rotunda cisão interna no PSOL, com uma ala minoritária, representada, entre outros, por Nildo Ouriques, que denuncia a submissão cega de seu partido aos anseios lulopetistas. É só procurar no YouTube.

A identidade entre PT e PDT

“Nos verbetes “aliança política”, “política econômica”, PT e PDT aparecem como sinônimos. Não seria diferente. E nisso precisamos ser honestos com a história. Ambos os partidos percorreram suas trajetórias no pós-ditadura e precisaram se coligar com uma miríade de siglas para que pudessem jogar o jogo da democracia que surgia em meados da década de 1980.”.

Seu objetivo é colocar no mesmo patamar moral e ideológico PT e PDT, para, logo em seguida, diminuir qualquer crítica às opções de governo lulopetistas. Temos aqui duas falácias.

Em primeiro lugar, PT e PDT têm bases ideológicas substancialmente díspares. O PT não tem uma identidade programática clara.

Tomando emprestadas as palavras do Presidente Lula em sua entrevista ao El País, “não precisa de programa”.

E é exatamente isso: basta colocar em seu guia eleitoral apelos genéricos a “fazer a economia girar”, “congelar o preço do gás em R$ 49,00”, enquanto, nos bastidores, promete ao mercado a independência do Banco Central.

O PT é uma moldura para a figura do Lula. O sustentáculo do PT é a doença do mundo subdesenvolvido e da democracia ocidental tardia: o populismo carismático rasteiro.

Aproveita-se da fraca cultura política das massas desorganizadas para conquistar seu voto através do carisma, enquanto aparelha as minorias organizadas, ostentando bandeiras de uma esquerda pré-1989.

Obriga jovens militantes a defender o interesse de corporações que não os representam, ou a relativizar a corrupção sistêmica.

O PT não tem compromisso com o desenvolvimento de um modelo sustentável e alternativo ao neoliberalismo.

Não tem compromisso em educar sua base política da urgência de temas como a reforma da previdência (prefere defender o interesse das corporações de funcionários públicos que o rodeiam, negando a necessidade de qualquer reforma), o déficit fiscal, a reforma tributária, a divida pública.

Ciro Gomes, por outro lado, luta pela reconstrução de um Estado de Bem-estar social estável desde a década de 1990.

Bate de frente com os barões da mídia no combate aos dogmas da ortodoxia liberal. E não faz isto com a respeitável ingenuidade emotiva de Guilherme Boulos, mas com a honestidade técnica que o tema exige.

Seu plano de governo foi o mais detalhado, franco e ousado de toda a campanha eleitoral.

Alguma das duas estratégias é ilegítima? Não. Mas não tem direito o Sr. Victor Moreto de equiparar PT e PDT.

Ao cabo, ainda se contradiz. Começa o artigo afirmando que os conchavos e alianças incoerentes fazem parte da política.

Ao rabo, critica o apoio de PDT e PCdoB a Rodrigo Maia e a busca de apoio do Centrão (como se o PT não tivesse feito nada disso nos últimos anos). É escárnio.

A falácia do carteiro

“Hoje, Ciro se autoproclama – está na moda o termo – uma vestal da moral brasileira.

Bate literalmente no peito para dizer que não existe uma única ação contra ele, mesmo para absolvê-lo. Como se “ação judicial”, ou “assassinato” – moral ou de fato – na América Latina nunca tivessem sido sinônimos de “perseguição política quando incomoda os donos do poder” no dicionário do século XX.”

Perceba a estratégia de Moreto: matar o carteiro para não ler a carta.

O PDT é um partido repleto de incoerências e infidelidades. Trabalha, contudo, para combatê-las. Expulsa membros quando pode.

Ciro Gomes, por outro lado, tem 38 anos de vida pública e nenhum processo criminal sobre corrupção aberto contra ele.

O que qualquer destes fatos muda nas críticas feitas ao hegemonismo cego e raso do PT? Substancialmente nada. Nem é preciso gastar muita letra com isso. Desviar do mérito é a especialidade desta turma.

A falácia do Coronel

“Como político “local”, Ciro comanda o clã dos Gomes no Ceará. A família manda e desmanda e não deixa qualquer outro sem o sobrenome ocupar o seu espaço.”.

Ciro Gomes foi governador do Ceará entre 1991 e 1994. Cid Gomes foi governador entre 2007 e 2014. O atual governador, reeleito, é Camilo SANTANA (note o sobrenome), do Partido dos Trabalhadores, apoiado pelo PDT.

Ciro Gomes foi prefeito de Fortaleza até 1990; desde lá, nenhum outro parente seu assumiu o comando da capital.

O comentário de Moreto, além de desrespeitoso com a Terra da Luz, representa uma omissão voluntária da verdade dos fatos. Deseja passar a imagem (estereotipada) de um curral eleitoral nordestino, miserável, comandado por um arrogante líder autocrático.

Desconsidera toda a revolução pela qual passou o Ceará nas últimas décadas, na mão de gestores exemplares como Tasso, Ciro, Cid e Camilo, a qual tantas vezes deve ter aplaudido.

O vitimismo lulista

“Como se “ação judicial”, ou “assassinato” – moral ou de fato – na América Latina nunca tivessem sido sinônimos de “perseguição política quando incomoda os donos do poder” no dicionário do século XX. Estão aí Getúlio, Juscelino, Perón, Dilma, Mujica, Lula e Cristina Kirchner que não nos deixam mentir. Isso para ficar em pouquíssimos exemplos.”

O próximo truque é amenizar a culpa de Lula. Lula não é penalmente condenável pelo que lhe imputa.

Mas é, sem dúvidas, moralmente condenável pela relação promíscua que manteve com a alta burguesia nacional, mesmo proclamando um líder das massas.

É blasfêmia compará-lo a Getúlio, Juscelino, Mujica ou mesmo Dilma.

A “pecha” de tucano

Sempre que alguém lhe incomoda na centro-esquerda, o PT empurra para a direita. Faz-se menção à desastrosa vida partidária de Ciro Gomes como se sua linha ideológica tivesse mudado radicalmente.

Victor, leia o que Ciro produziu na década de 1990 e o que diz hoje: a linha é praticamente a mesma. Agora compare o Lula de 1989 ao Lula de 2002.

Não foi preciso mudar de partido para que Lula vendesse sua alma. Ciro, por outro lado, precisou mudar de partido para que não a vendesse.

Fundou o PSDB como social-democrata. Apoiou parte das privatizações. (Claro! Privatizar não é necessariamente ruim. Um Estado Social eficiente não precisa deter o monopólio de todos os serviços públicos! Pergunte ao Rui Costa, Victor, certeza que ele lhe pode bem responder.).

Saiu do PSDB quando FHC se rendeu ao PFL.

Saiu do PPS quando este resolveu se aliar ao tucanato e fazer oposição rasteira o Lulismo. Esteve na dianteira para blindar o Presidente Lula da Crise do Mensalão.

Defendeu, com paixão, unhas e dentes, o projeto mais popular do lulismo para o Nordeste: a Transposição do São Francisco.

Não adiantou. Em 2010, foi trocado por Michel Temer. Mesmo assim, permaneceu no apoio à Dilma, até que: pimba!

Dudu Campos rompe com o PT e resolve seguir carreira solo. Ciro Gomes mantém-se fiel, e sai do PSB para que possa manter seu apoio à honrada Dilma Rousseff.

2015. Cid Gomes vs. Eduardo Cunha. Adivinha quem a Dilma resolveu proteger?

2016. Impeachment. Adivinha de que lado o Ciro ficou?

2017 e 2018. Prisão do Lula. Ciro foi um dos primeiros a levantar a voz. Não é obrigado, contudo, a render uma agenda nacional e eleger como prioridade a liberdade de um homem. Recomendou, sabendo de todo o impacto negativo de seu comentário, que Lula fosse a uma embaixada.

Por que fiz toda essa retrospectiva? Para mostrar o quão simplista e desonesto intelectualmente o artigo o foi. Digo o artigo, não a pessoa, posto que não a conheço.

A falácia do apelo à maioria

Ao final, o trágico artigo nos dá um diagnóstico torto e sedutor do pleito de 2018. Ciro Gomes é um fracassado, o qual nunca conseguirá ser presidente, derrotado facilmente por um poste. Lula sabotou Ciro, admite Victor. Mas Ciro tentou o apoio do Centrão, então não pode reclamar de nada!

Orgulha-se do desempenho eleitoral de seu “poste”. Ciro é tão minúsculo, tão menor que um “poste”, que seu dever moral é render-se.

Pergunto: e quem disse que “poste” ter voto é boa coisa? “Poste” tem voto em país terceiromundista, paciente da doença do populismo, da deseducação política.

“Poste” tem voto quando lideranças políticas abdicam de sua responsabilidade com o progressismo e com a nação para abusar da gratidão dos mais pobres.

Fatos, nobre Victor: o PDT já é maior que o PT entre a classe média. Venceu no Rio de Janeiro, por exemplo. O capital político restante do PT advém dos grotões do Bolsa Família.

É na gratidão legítima das populações mais carentes. É no populismo carismático, desconstruidor, que não dá frutos, que se alimenta da deseducação política.

Me acusarão de preconceituoso, sem perceber a tragédia moral que é um “Haddad é Lula”.

Se somos progressistas, se lutamos pela emancipação material e intelectual do indivíduo, não podemos nos privar de, continuamente, desviar das tentações do populismo personalista, que é coisa que nasceu na direita.

A esquerda precisa ser melhor que isso. A esquerda precisa ser melhor do que trucidar Tabata Amaral injustamente.

A esquerda precisa ser melhor do que malversar termos como “defunto eleitoral”, desconectando-o do contexto em que foi utilizado.

A esquerda precisa ser melhor do que passar a mão na cabeça de uma verdadeira quadrilha, assaltante dos cofres públicos e da própria democracia.

“Cobra autocrítica de um preso político em sua cela, mas é incapaz de fazer a sua quando, solto, largou o país no segundo turno e foi para Paris. Mesmo dizendo – com razão – que estávamos à beira do abismo.”

Diante do desespero, a preocupação com a coerência cai por terra. Começa-se o artigo exaltando Lula e o PT como forças políticas gigantes, e Ciro como um nanico.

Depois exigem a autocrítica do ‘nanico’, do ‘12%’? Grandes poderes trazem consigo grandes responsabilidades.

Vencer não é sempre o primordial. Talvez nisto esteja uma importante distinção entre “nós e eles”.

Ciro poderia ter assumido o papel de Haddad. Poderia ter tornado o PDT outro “puxadinho do PT”.

Isso o deixaria mais próximo da presidência, e a política nacional bem mais perto das trevas.

Não ache que queiramos, contudo, a eterna desunião da Esquerda. Mas nem toda união vale seu preço.

Qual o objetivo deles? Calar Ciro Gomes e o PDT. Pura e simplesmente. Calar é ocultar, é omitir. Omitir é mentir. Mentir pra vencer.

Preferimos perder. Com a mentira, não há acordo; e, evocando JK, com o erro não há compromisso!

Publicado originalmente no Viomundo

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