Uma das partes mais interessantes da entrevista de Lula ao Intercept é o momento em que o ex-presidente responde perguntas de Glenn Greenwald sobre as estratégias políticas do PT em 2018.
Nas entrevistas concedidas à Monica Bergamo e Florestan Fernandes, do El País, o tema já tinha sido abordado, mas Glenn foi incisivo, cobrando do ex-presidente explicações mais objetivas.
Aliás, há muito tempo, e refiro-me a um longo período, não via o Lula encontrar um jornalista capaz de lhe tirar da zona de conforto.
Isso confirma uma tese minha de que as melhores entrevistas são aquelas que tem uma química particular, uma tensão latente, entre entrevistador e entrevistado. Isso é raro acontecer entre entrevistado e entrevistador com afinidades políticas ou ideológicas, por isso as melhores entrevistas são aquelas em que jornalistas de direita entrevistam políticos de esquerda, ou jornalistas de esquerda entrevistam políticos de direita. Não falo nem do conteúdo da entrevista, mas da forma, do nível de energia – que se reverbera em audiência – que ela produz.
Lembro-me, por exemplo, que houve uma grita enorme nas redes esquerdistas contra o Roda Viva, por ocasião da entrevista de Manuela d´Ávila, porque a bancada era conservadora e havia sido muito dura com a deputada. Eu tinha achado justamente essa a sua qualidade mais estimulante, o que permitiu à Manuela emergir de maneira espetacular; se um ou outro entrevistador passou do ponto, isso fazia parte do jogo. Eu ainda tentei opinar, mas o olho do dragão logo se voltou para mim, com o ódio das redes ameaçando me tragar também: “o que está acontecendo com você, Miguel?” Esse clima de turba das redes sociais, sempre procurando alguém a quem linchar, é muito cansativo, e oprime a liberdade de expressão à esquerda e à direita.
Glenn é explicitamente um homem de esquerda, mas é estrangeiro, apesar de hoje ser mais brasileiro e mais preocupado com o país do que muitos brasileiros. Seu marido, o deputado David Miranda, é do PSOL, e segue uma linha bastante independente. Talvez por isso, houve essa química da qual eu falo. Essa tensão. E pela primeira vez, em muito tempo, vimos o Lula rindo amarelo.
O ex-presidente encontrou dificuldades para se explicar ao menos duas vezes.
Na primeira, Glenn lhe perguntou se ele não via contradição em acusar o neoliberalismo como a causa da eleição de Bolsonaro e o fato de que tanto ele como sua sucessora, Dilma Rousseff, haviam recebido grandes somas de dinheiro de empreiteiras e bancos, e, por fim, implementado um programa neoliberal no país.
“Eu nunca disse que meu governo era socialista”, respondeu Lula.
Na entrevista para Kennedy Alencar, Lula já admitira que tentara empurrar o presidente do Bradesco, Luiz Trabuco, para o ministério da Fazenda. Ao final, Trabuco se recusou, num repúdio público que resultou humilhante para o governo (e para todo o campo progressista), e Dilma chamou, para comandar a economia brasileira, um funcionário de terceiro escalão do mesmo banco.
Não satisfeito em ter transferido poder econômico ao sistema financeiro nacional, a um nível inédito na história, Lula estava obcecado em entregar-lhe também o centro do poder político…
A intenção dele certamente era boa: nomeando Trabuco para Fazenda, o ex-presidente planejava blindar o governo de mais ataques da mídia. Provavelmente ele pensava que a Globo não teria coragem de liderar um processo de golpe contra um governo liderado por um banqueiro poderoso. Mas ele esquecia o principal, que era materializar um projeto nacional de desenvolvimento, do qual este sistema financeiro é o principal inimigo!
Voltemos à entrevista ao Intercept.
Mais adiante, Glenn confronta Lula sobre a estratégia do PT, nas eleições de 2018, de isolar a candidatura de Ciro Gomes. A pergunta é muito direta:
“(…) você preferia perder para o Bolsonaro, mas manter o controle da esquerda com o PT, do que ter uma melhor chance de derrotar o Bolsonaro, se isso significasse deixar um outro partido, do Ciro, representar a esquerda?”
A resposta de Lula é curiosa. Para falar de Ciro Gomes e da estratégia eleitoral do PT em 2018, Lula lembra de 1989 e conta uma história supostamente inédita.
Lula diz que tinha “muito boa recordação de Brizola”, e em seguida revela, com uma leve ponta de sarcasmo, que o ex-governador do Rio tentou articular para que ambos renunciassem em favor de Mario Covas, então candidato do PSDB.
Ora, Lula! Não quero nem entrar no mérito da viabilidade política da proposta, mas, à luz da vitória de Collor em 1989, talvez a proposta de Brizola tivesse sido a melhor opção!
Lula e Brizola encerram o primeiro turno com diferença mínima, ambos com 11 milhões de votos, mas Covas obtivera expressivos 8 milhões de votos. Não era nem uma questão de pesquisa, visto que ambos, Lula e Collor, tinham chance de ganhar, mas sobretudo de governabilidade. É muito provável que Lula, caso tivesse sido eleito em 1989, sofresse um impeachment em seguida, assim como sofreu Collor.
O próprio Lula não admitiu, tantas vezes, que era melhor não ter vencido em 1989, pois não estava preparado?
Um acordo das forças progressistas naquele momento, reunindo Lula, Brizola e Mario Covas (que era de um PSDB ainda não corrompido pelo neoliberalismo), poderia criar um bloco de poder com potencial para nos fazer evitar tantas tragédias que se abateram desde aqueles tempos até hoje!
É pueril remoer o passado neste momento, mas foi Lula quem trouxe o tema à baila, e causa espanto constatar a dificuldade dele em cogitar que uma liderança política tome uma decisão que ponha o interesse nacional antes do interesse partidário.
Abaixo, o trecho da entrevista mencionado acima:
Glenn – (…) Mas quero perguntar uma coisa que é bem importante, que você disse agora, que o PT é o demônio, ódio contra o PT, porque tem uma crítica que estou ouvindo frequentemente sobre a sua estratégia durante a eleição de 2018. Especificamente, que você fez todo o possível para enfraquecer a candidatura presidencial do Ciro Gomes, de centro-esquerda, que muitos acreditavam que tinha uma chance muito maior de ganhar do Bolsonaro, do que o candidato que você escolheu do seu partido, Fernando Haddad.
Por causa da raiva e do ódio que existem no Brasil em relação ao PT, porque Haddad era desconhecido fora de São Paulo, e no primeiro turno, para a audiência internacional, Haddad fica no segundo lugar, e no segundo turno Bolsonaro derrotou seu candidato do PT por uma grande margem. E essas críticas falam que você preferia perder para o Bolsonaro, mas manter o controle da esquerda com o PT, do que ter uma melhor chance de derrotar o Bolsonaro, se isso significasse deixar um outro partido, do Ciro, representar a esquerda. Essa crítica não é válida?
Lula – Você acredita nisso?
Glenn – Eu estou perguntando se você acha.
Lula – Eu estou perguntando se você acredita, sabe por quê?
Glenn – Eu vou falar o que eu sei. Eu sei que seu candidato, que você transferiu muitos votos para deixar ele chegar no segundo turno, perdeu por uma grande margem para Bolsonaro, e eu estou perguntando se isso foi a estratégia certa.
Lula – Eu vou tentar falar, veja, a minha estratégia, a primeira estratégia minha, o que você está falando, eu vivi em 1989. Em 1989, o Brizola, de quem eu tenho muita boa recordação, achava que ia ser presidente. O Brizola voltou do exílio presidente da República e, quando teve as eleições, fui eu que fui para o segundo turno. Você sabe que o Brizola chegou a pedir para que eu e ele desistíssemos para apoiar o Mário Covas? Eu falei: “Brizola, mas se o povo quisesse votar no Mario Covas, teria votado, por que que não votou? Como é que eu vou ficar agora com os eleitores que votaram em mim? Eu vou desistir para apoiar o Mário Covas, que perdeu?” Olha, se o povo queria votar no Ciro no segundo turno, por que que não votaram no primeiro?
Glenn – Porque você transferiu seu apoio para o Haddad e não para Ciro, e porque seu partido impediu ele também de ser parceiro do PSB, abriu mão da possibilidade do partido de ser governador de Pernambuco por causa desse candidato muito popular do PT, você sabe, todas essas críticas.
Lula – Gente, vejam, o Ciro reclama porque o PT fez articulação política para trazer o PCdoB e PSB. O que ele queria que o PT fizesse? Que o PT não fizesse nada? Ele queria que o PT não conversasse com o PSB, porque…
Glenn – Mas foi você que disse que o PT era demoníaco, que era muito atacado…
Lula – Ora, mas veja, deixa eu te falar uma coisa, o Ciro tem que aprender uma coisa, isso em política é importante, se você for entrar na política um dia, aprenda isso: se você quiser que alguém goste de você, você precisa aprender a gostar da pessoa. Se você quiser que alguém te respeite, você precisa respeitar as pessoas. Olha, se o Ciro queria de verdade o apoio do PT, ele poderia ter conversado com o PT. Eu vou lhe contar uma história que você não sabe e que ninguém nunca contou para ninguém, porque o Ciro nunca contou. Uma vez o Mangabeira Unger vai no escritório e fala assim para mim: “Olha, nós fizemos uma reunião com o Haddad e o Ciro, e nós conversamos do Haddad ser vice do Ciro.” E eu falei para o Mangabeira: “Você não acha que antes você deveria ter conversado com o PT?” Ora, eu perdi quatro vezes até chegar lá, o Ciro já perdeu três, quem sabe ele perde mais uma. Se o Ciro quiser aliados ele tem que saber conversar, ele tem que saber convencer as pessoas, ele tem que assumir compromissos programáticos.
Glenn – Tudo bem, com certeza Ciro vai ouvir isso e…
Lula – E eu acho, veja, o Ciro sabe da relação que eu tenho com ele. Eu sempre tive uma relação de muito respeito com o Ciro e sou agradecido ao Ciro de ter participado do meu governo, e vou lhe dizer mais, eu era contra o Ciro ser candidato a deputado, eu convidei ele para ser presidente do BNDES.
Glenn – Mas é exatamente por causa disso que ele sentiu que tinha uma chance muito maior do que o candidato que você botou no segundo lugar no segundo turno.
Esse trecho da entrevista pode ser visto entre os minutos 40:44 a 45:35 do vídeo disponibilizado pelo Intercept no Youtube.