Sentimentos ambíguos me invadem na análise do tsunami que varreu o Brasil ontem em protesto contra os cortes da Educação realizados pelo governo Bolsonaro. E isto não porque o alerta vermelho da desconfiança sempre deve acender quando a grande mídia de repente encampa pautas populares, orientada pelos seus interesses inconfessáveis e em geral contrários aos interesses do povo.
A leitura diferente e ambígua é que por mais que esteja cristalino que a fragilidade de Bolsonaro – antes etérea para seus aliados – tenha se decantado e solidificado em uma reação política e institucional robusta, a pauta econômica e social que ele representa na verdade continua pétrea dentro do golpe.
À sombra do Presidente cada vez mais perdido em explicações a dar sobre aumentos de patrimônio, milícias, acordos escusos, etc., emerge a figura de um governo puramente militar, sob o respaldo retórico da chancela eleitoral.
Embora as eleições de 2018 sejam um caso muito provável de golpe midiático-judicial – com a prisão espetacular de Lula, o principal oponente e plausível vitorioso, orquestrada pelo beneficiário do cargo de Ministro da Justiça do governo a se instalar; embora haja a forte suspeita da manipulação de informação com financiamentos escusos a ser estudada no futuro; o fato é que dentro da quadra histórica do golpe as eleições ocorreram na propagandeada “normalidade”.
O resultado de 2018 não é somente a legitimação “democrática” desse Bolsonaro que derrete em praça pública. É claro que o Presidente acossa sem sutileza o futuro do país atacando a Educação e também não entrega o ouro prometido à sanha ansiosa da banca – isto é, a reforma da previdência e as privatizações de tudo que valha privatizar. Mas também somos cada vez mais obrigados a lembrar que 2018 legitima o seu vice, o General Hamilton Mourão.
Mourão sofreu nos últimos meses uma espécie de repaginação estética. Antes e logo depois das eleições, declarações radicais, alinhadas com a agenda mais dura do neoliberalismo, envolvendo eliminação de direitos trabalhistas constitucionalizados, privatizações, etc..
Mas, passado pouco tempo, e já clara a impossibilidade de Bolsonaro montar e guiar um governo consistente, Mourão desenvolveu duas estratégias: moderou o discurso – em especial na pauta dos costumes, desenvolvendo falas não alinhadas com o núcleo “ideológico” do governo –, e passou, pontualmente, porém de maneira sensível, a se posicionar contra determinadas ações desastradas do Presidente e de sua trupe.
Para cada declaração que expõe e explora a crise do governo, outras dez declarações de fidelidade. Procede, assim, como um agente privilegiado da fritura de Bolsonaro.
O primeiro e mais claro movimento nesse sentido – o do afastamento estratégico de Mourão do governo em franca decadência – foi revelar que Sergio Moro, ainda juiz, fora convidado pela campanha de Bolsonaro, durante as eleições, para o Ministério da Justiça.
Diante desses elementos conjunturais, a ambiguidade do sentimento sobre a maravilhosa sublevação das ruas ontem pode ser assim descrita: apesar do enorme alívio e da alegria em ver a pauta da educação ser tomada pela população como de primeira necessidade, a ponto das ruas serem coalhadas inequivocamente pelos seus defensores em massa, os ataques aos nossos direitos sociais talvez subam a um novo patamar de radicalidade e consistência.
Pelo dito acima, já transparece que o meu entendimento da conjuntura aponta para o fortalecimento político de um dos núcleos militares do governo, o composto pelo vice-Presidente.
Fortalecimento, por antinomínia, no ataque orquestrado da grande mídia contra Bolsonaro, sua família e seu núcleo “ideológico”. O ataque tem sido até mesmo contra o “Super Ministro” Sérgio Moro, cuja única entrega foi a confissão de seu patrão de que o sagrou ministro num acordo no mínimo escuso: em troca de uma vaga no STF.
As comparações das manifestações de ontem com as de 2013, e a louvação da educação e dos jovens estudantes mobilizados pela nobre causa, se por um lado são naturais, por outro são de desconfiar. E não somente por terem sido feitas em uníssono pela grande mídia – expressando de forma rara e com certa fidedignidade o que ocorreu –, mas exatamente por ser este o estratagema utilizado anteriormente para desestabilizar o governo Dilma Rousseff.
Foi o que produziu entre 2013 e 2016 a narrativa do impeachment: o “vem pra rua” genérico e cooptável – “contra tudo e contra todos” – é agora substituído pela férrea e clara defesa da Educação, com uma crítica hoje endereçada diretamente ao governo que começa a agonizar. Dois movimentos históricos diversos, uma resultante desejada pelo capital: a queda de um governo que não atende às suas expectativas.
Nesse sentido, a impressão é que se anuncia um golpe de Estado dentro do golpe de Estado perpetrado em 2016. Com as personagens de sempre. Desta vez diante de um Presidente com um passivo de malfeitos provável e, quase que certamente, muito, mas muito mais consistente do que as burocráticas “pedaladas” que condenaram Rousseff no passado recente.
A palavra “impeachment” surge mais uma vez. Agora com o ar de plena justificação diante de um governo bizarro, com personagens grotescos, e com uma inconsistência que flerta diuturnamente com o desatino. E isto, convenhamos, é muito distante do que ocorreu e do que significou o governo Dilma em 2016.
Portanto, ao lado da alegria com as ruas desse 15 de maio histórico, surge a preocupação de que o aprofundamento das pautas antissociais ganhe novo fôlego com um eventualmente mais estável e racional governo Mourão. Essa é a nova barbárie que se avizinha.
E, assim, as ruas precisam ter a dimensão de que talvez o verdadeiro combate ainda sequer tenha começado.
Mas há, nesse cenário sombrio de mais instabilidade e de claríssima deteriorização da democracia, um fiat de esperança. Leiamos as ruas de ontem sob perspectiva diversa:
Enquanto as ignorâncias do Ministro da Educação eram massacradas no Congresso, o Brasil se levantava em manifestações multitudinárias. Diferentemente de 2013, as pautas não eram difusas e desencontradas. O povo gritava majoritariamente contra os cortes na Educação propostos pelo governo e, em menor escala, contra a reforma da previdência e contra o desemprego.
Foram manifestações das mesmas classes médias que se levantaram em 2013. Ou não?
O governo não tem a exata dimensão de muita coisa. Mas certamente não percebe a revolução produzida pelo processo de capilarização do ensino público Federal levado a cabo na última década e meia. Ao mexer com Institutos Federais e Universidades, agitou diretamente famílias de todos os estratos das classes médias, e com uma parte ainda minoritária de famílias pobres que veem os estudos de seus filhos ameaçados. É bom lembrar que os IF’s, como o Colégio Pedro II no Rio, respondem também pelo ensino médio.
Há, portanto, uma diferença qualitativa nas manifestações de ontem, se comparadas às de 2013. Há uma clara pauta e uma clara direção. Há unidade. Não há um movimento difuso a ser capturado por aventureiros de plantão. E, por cima de tudo, surge finalmente um substrato importante do povão a entender que mexer com o ensino público é mexer com o futuro de ascensão social de seus filhos.
A geração das ruas de 2019 sabe exatamente do que se trata. E o governo Fakenews de Bolsonaro e sua trupe, por ser tão caricato – exatamente pela transparência bizarra de sua absoluta inconsistência –, desnudou para o povo o que realmente importa, o que está em jogo de verdade.
Se a luta que se avizinha pode ser mais longa do que se possa imaginar, a resistência pode ser também mais qualificada, mais sólida, consciente, a contaminar setores inéditos do tecido social. E, nesse contexto de desesperança, de desemprego e de crise, isto é revolucionário. E é, sim, a revolução possibilitada pela Educação.