“A balbúrdia de Joana”: relato de professor escancara o drama da educação

Protesto de Estudantes/ Foto: Nayara Stephanie

Faustino da Rocha, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), relata o dia a dia de Joana, uma das alunas que luta diariamente para concluir aquilo que o atual governo chama de “Balbúrdia”.

Por Faustino da Rocha Rodrigues*

Após sentir o primeiro pingo nos óculos, Joana percebeu que teria de disputar espaço sob as marquises. Se a chuva engrossasse, chegaria atrasada à faculdade. Era dia de avaliação. Acordou às 5h disputando com o sono. Preparou sua filha Manuela, disputando com a intransigência infantil dos 7 anos de idade que reluta em sair da cama.Preparou-a para a escola. Após deixa-la entre professores e coleguinhas, com o bom humor contumaz de uma saudável criança desperta, disputou espaço no transporte público. No caixa do supermercado, onde fica sentada por 8 horas diárias, disputou com a falta de atenção evocada pelo cansaço. À tarde, a mensagem de whatsapp indicou que sua mãe, dona Deolinda, já estava com Manuela. Às 18h, terminado o trampo, disputou centímetros nas ruas em meio à balbúrdia da multidão de Joanas, de Joãos. Até que a chuva se anuncia. Lá na faculdade, não disputa nada. Pelo menos até as 23h30, quando retorna à casa e acaricia o sono da filha com os olhos.

O parágrafo anterior descreve a balbúrdia rotineira de meus alunos e alunas no ensino superior. Ao mirar Joana, à minha frente, vejo o seu cansaço. Cobro-lhe o texto da semana. Acanhada, diz não ter lido. Todavia, justiça seja feita, em meio a tudo, antes, leu vários outros de minha disciplina – não sei como. Ela sempre senta no canto, rente à parede, para encostar, como se o corpo precisasse de apoio. É uma espécie de carícia da alvenaria do edifício, revestida com tinta óleo, já descascando, cujas manchas inúmeras reivindicam a pintura que teima em não vir.

Conversando informalmente durante o intervalo, Joana reclama de ter engordado 12 quilos desde o começo da faculdade. Isso porque os salgados fritos são a companhia noturna de seu estômago, em seu resmungo cotidiano das 20h30. Paralelamente, interrompeu qualquer tipo de atividade física. Agora, espera a liberação do SUS para fazer exames que detectem uma possível hipertensão aos 29 anos. Mas, crê em uma grande mudança após a formatura. Restam 3 anos.

Sem cota, Joana não estaria em minha sala, no curso de Ciências Sociais, diante de autores da disciplina Pensamento Social Brasileiro. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, revela que para cada R$ 1 investido em educação, temos um retorno de R$ 1,85 no Produto Interno Bruto[1]. Atualmente, este mesmo PIB decai progressivamente em suas projeções em um momento a coincidir com a brusca redução de investimentos sociais[2]. A título de comparação, ao se destinar proporcionalmente o mesmo valor para agropecuária ou minério tem-se um acréscimo correspondente de R$ 0,40 no PIB – isto é, retorno de R$ 1,40. O contraste é visível.

Diante de uma absurda desigualdade, desenvolvimento econômico é desenvolvimento social. Investir na sociedade por meio de políticas públicas sociais não é gasto, é investimento. Uma prova está no mesmo estudo do IPEA demonstrar que ao se investir 1% do PIB em políticas sociais tem-se como resultado um incremento de 2% da renda da população[3]. Isso pode ser transposto para saúde, segurança, enfim, tudo. Eu falarei de minha área: a educação superior.

É bastante claro para mim que a redução da desigualdade social no Brasil se faz ao promover a inclusão de um agrupamento social economicamente inferior. Porém, não se trata de algo bom somente para a nossa Joana. Eu, como classe média, estou consciente de que isso é bom para mim. Uma sociedade menos desigual, por exemplo, é menos violenta. A ampliação do acesso ao ensino superior público e de qualidade, permite, entre inúmeras coisas, a diversificação do mercado de trabalho, bem como a ampliação de ofertas, serviços e oportunidades. Desafio alguém a encontrar um único país que realmente tenha se desenvolvido sem investir no ensino superior.

A conclusão de uma faculdade chega a triplicar a renda de um cidadão comum[4]. A partir disso, não é necessário ser gênio para fazer uma associação evidente a tal afirmativa: triplicar a renda é algo bom; o aumento da renda é gerado pela conclusão do ensino superior; logo, quanto mais pessoas com ensino superior completo, maior a renda geral da população. Simples – embora seja sabido queisso não é o bastante. Não obstante, está aqui a pedra de toque do tema investimento em educação. E isso é compromisso público, do poder público.

Imagine um governo realmente preocupado com o acréscimo da renda da população. Após estudos acessíveis até mesmo por mim, ele se comprometerá com potenciais artifícios para garantir que isso aconteça. Logo, investirá em universidades. Entretanto, quando relegamos a educação superior à economia de mercado e sistema de capitais, temos um problema. Isso porque o horizonte “aumento da renda” não fará parte da equação das empresas e grandes conglomerados a abocanharem o ensino superior no Brasil[5]. Eles terão a sua atuação pautada quase que exclusivamente pela lógica do lucro. Portanto, imaginem, e apenas imaginem, que se para eles fosse lucrativo reduzir a renda geral da população para a produção do lucro, assim o fariam. Isso é fato.

Investir no ensino superior não é preciosismo. A universidade tem de ser para todos e todas, diferentemente do que diz um recente ex-ministro da educação do atual governo federal[6] – e, há poucos dias ainda, a impactante atitude do atual ministro[7]. Permitir que ela seja universalizada é garantir de modo que os investimentos nas IES (Instituições de Ensino Superior) reflitam diretamente na sociedade.

Fechar as universidades, limitando as possibilidades de seu acesso – seja pelos vestibulares concorridos (e a concorrência é inversamente proporcional à quantidade de vagas), seja por sua concentração em grandes centros urbanos – é criar ilhas de conhecimento no Brasil a repercutirem socialmente uma concentração de renda.Isto é, gera-se aumento da desigualdade ou pelo menos a sua manutenção e perpetuação. A isso, uma casta de privilegiados, aqueles que podem aceder à universidade. Somente alguns teriam possibilidade de acréscimo de renda, tal como mencionamos rapidamente acima, neste mesmo texto.

E existem mil formas de minar o acesso das camadas populares, mais vulneráveis, à universidade. Acabar com programas de bolsas; fechar campi;abreviar vagas (pela redução de investimento); não expandir para o interior, mantendo a sua concentração nos grandes centros urbanos; não fornecer estrutura para a realização das aulas desestimulando professores e alunos, entre muitos outros artifícios. Não é necessário privatizar em um enorme leilão para a inviabilização do trabalho.

Adiante, em outro momento, falarei sobre a redução dos recursos para pesquisa e extensão, especialmente em Minas Gerais, onde trabalho. Aqui, por enquanto, gostaria apenas que este breve texto tenha jogado luz sobre todos nós quanto ao papel da universidade, para além de seus muros. Pelo menos ali, no banco da faculdade, as Joanas não encontram disputas, fugindo da balbúrdia da vida que é lá fora.

Faustino da Rocha Rodrigues
Professor de sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais, UEMG



[1]https://oglobo.globo.com/economia/cada-1-gasto-em-educacao-publica-gera-185-para-pib-diz-ipea-2828607

[2]https://www.valor.com.br/brasil/6240333/mercado-faz-corte-expressivo-em-projecao-do-crescimento-do-pib-em-2019

[3]http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=7121

[4]https://oglobo.globo.com/economia/concluir-ensino-superior-triplica-renda-mostra-ibge-22579344

[5]https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/06/conglomerados-do-ensino-superior-avancam-sobre-a-educacao-basica.shtml

[6]https://congressoemfoco.uol.com.br/educacao/universidade-nao-e-para-todos-mas-somente-para-algumas-pessoas-diz-ministro-da-educacao/

[7]https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/ministro-da-educacao-vai-cortar-30-das-verbas-de-todas-as-universidades-federais-23634159

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