Jornais dos EUA informaram que hackers do governo, o Cyber Command US, preventivamente iria cortar o acesso à internet para um edifício de escritórios em São Petersburgo que hospeda a Agência de Pesquisa sobre Internet, conhecido como “a fábrica de Trolls”.
A notícia do ataque, que nunca foi confirmada pelas autoridades russas, também não causou muita surpresa em Moscou. Por anos, e no contexto da escalada do conflito entre a Rússia e o Ocidente, a vulnerabilidade da conectividade global tem sido discutida.
Poucos dias antes, Vladimir Putin havia alertado para a possibilidade de a Rússia ser cortada da rede global. Ele disse que, para o ocidente, um ataque cibernético só tinha uma desvantagem: suas operações de espionagem poderiam ser interrompidas. E afirmou:
“As agências de inteligência do Ocidente estão na Web. É sua criação(internet). Eles ouvem, veem e leem tudo que você diz e recolhem informações sobre segurança. No entanto, tudo é possível em teoria. Por isso, devemos criar um segmento [da Internet] que não dependa de ninguém”.
No início deste mês, os legisladores russos seguiram as recomendações de Putin e aprovaram um projeto de lei que molda o mais ambicioso projeto no país para controlar o segmento russo da Internet e sua conexão com o resto do mundo.
O projeto de lei de “Internet soberana”, que foi apresentado pelos legisladores aliados ao Serviço Federal de Segurança da Rússia, seria exigir que, os operadores de telecomunicações supervisionem, todo o tráfego de Internet usando tecnologia de filtragem e também criar uma estrutura para um switch ” on / off ” que poderia permitir que a Rússia se isolasse da rede global em caso de um ataque cibernético.
Tudo indica que Putin sancionará o projeto em breve, medida que é considerada um passo em direção a um firewall semelhante ao que a China possui. Desde os anos noventa, a Rússia tem sido caracterizada por uma política aberta em torno da Internet global.
“Não deve ser viável”, diz Keir Giles, da Chatham House (um centro de estudos focado na política internacional). O especialista explica que os serviços de segurança russos vem pressionando há anos para reformar o segmento da Internet:
“No entanto, o país tem se preparado, para esse momento, com tanta intensidade e por tanto tempo, que se alguém é capaz de promover essas medidas tecnológicas, são eles.”
O governo pôde vivenciar o enorme impacto das operações de pirataria, em 2008, hackers russos lançaram um ataque cibernético contra a Estônia, que paralisou o país. Por outro lado, as operações cibernéticas desempenharam um papel importante na anexação da Criméia pela Rússia, em 2014.
Os Estados Unidos estão conscientes de que são alvo dos hackers militares russos desde 2016, quando esses hackers foram acusados de invadir os servidores do Comitê Nacional Democrata e publicar danificar informações sobre Hillary Clinton. James Lewis, pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), em Washington ressaltou:
“Os Estados Unidos, já disseram que aqueles que os atacarem no ciberespaço devem ser responsabilizados e os russos sabem as consequências que isso tem para eles”.
No entanto, os detratores do projeto estão céticos sobre a viabilidade desta medida. O firewall chinês foi desenvolvido com o objetivo de controlar o conteúdo externo, e o país investiu fortunas na tecnologia de filtragem e na limitação de pontos de entrada no país. Em contraste, o projeto de firewall russo foi desenvolvido desde o início com pontos de entrada projetados para promover o fluxo eficiente de informações e integração com o Ocidente.
Os analistas calculam que a implementação desta lei custará mais de 300 milhões de dólares e certamente o custo será maior. E o teste do sistema foi adiado, enquanto os legisladores reconhecem a potencial perturbação que poderia causar, em meio a protestos da industria de tecnologia.
Os opositores a medida argumentam que, o governo estabeleceu uma tarefa impossível, e permitirá maior controle sobre os cidadãos do país e, em troca, não vai aumentar a segurança.
Os legisladores vem “tentando aprovar novas leis desse tipo”, diz Alexander Isavnin, do movimento RosKomSvoboda, que defende a liberdade na Internet. Ele ajudou a organizar um protesto em Moscou no mês passado contra a lei da Internet que atraiu mais de 15 mil manifestantes. Isavnin argumenta:
“A maior parte de nossa regulamentação da Internet, bloqueio de conteúdo e filtragem de dados é uma forma de o governo obter mais poder e informações. Mas se eles não conseguiram nem bloquear o aplicativo Telegram, como eles vão fazer uma Internet soberana?”
Quase metade do tráfego da Rússia viaja através de um ponto de troca em Moscou chamado MSK-IX. Em seu livro The Red Web, os jornalistas Andrei Soldatov e Irina Borgan descrevem o prédio de 19 andares como o “coração da Internet russa”. O Google aluga um quarto em um andar, enquanto um posto de escuta do FSB (orgão de inteligência que sucedeu a KGB) está em outro.
Para isolar-se da rede global, a Rússia teria que desviar primeiro todo o seu tráfego através de pontos de intercâmbio, a nível nacional, como MSK-IX, onde você pode analisar a informação, filtragem de conteúdo e em caso de crise, interromper o fluxo de informações do exterior.
Depois de tomar essas medidas, a Rússia implementará sua própria versão do Sistema de Nomes de Domínio (DNS), que traduz as URLs para endereços IP e direciona o tráfego de usuários para os servidores nos quais os sites estão sendo executados. O DNS funciona como uma lista telefônica para a Internet e, se a Rússia puder desenvolver sua própria versão, que é cara, poderá controlar quais servidores são acessíveis a partir da Rússia. O especialista, Alex Henthorn-Iwane, da ThousandEyes, empresa de monitoramento de rede, explica:
“Por exemplo, a URL de um site estrangeiro, como o Guardian, ou um aplicativo, como o Facebook, que o governo não quer que seja permitido no país, pode ser direcionado para um endereço IP sem saída, e assim impedir usuários casuais, nacionalmente sancionados ou mesmo sites de mídia social locais. Isso é comumente usado como parte do grande firewall chinês atualmente”.
Se o seu sistema funcionasse perfeitamente, um usuário russo não notaria uma grande mudança se o governo estivesse bloqueando a entrada e a saída do tráfego na rede. Os sites russos continuariam a funcionar normalmente e o governo espera que a maioria dos usuários desista de entrar nessas páginas e serviços que se tornem inacessíveis.
A verdade, é que se trata de um projeto muito ambicioso e difícil. Em princípio, pode ser fácil redirecionar o tráfego da Web a partir de um navegador, mas as finanças e o comércio internacionais dependem cada vez mais de processos automatizados que geram tráfego transfronteiriço. E os produtos que usamos no nosso dia-a-dia exigem cada vez mais conectividade com a Internet, o que significa que o sistema russo teria que levar em conta telefones, carros e outros produtos de consumo ao projetar o sistema.
Ao contrário da China, “a Rússia está profundamente integrada ao ecossistema digital e à rede global”, diz Henthorn-Iwane. Que ressalta:
“Um conjunto abrangente de elementos-chave da economia russa, de serviços financeiros para software aplicativos de negócios e serviços, dependem fortemente de interconexões com serviços no exterior. O mais provável é um corte total, possa isolar a Rússia da Internet global, o que iria perturbar todos esses serviços e causar um impacto econômico que não se pode menosprezar”.
A Rússia, como outros países, está procurando maneiras de aproveitar os benefícios econômicos da Internet e, ao mesmo tempo, evitar os perigos de uma maior conectividade entre os usuários. Nesse sentido, Lewis ressalta que “os países querem estar abertos aos negócios, mas fechados à política”.
Muito antes do aparecimento da lei “Internet soberana”, a Rússia estava procurando maneiras de limitar a disseminação de informações consideradas perigosas, criando bancos de dados de sites proibidos e, de tempos em tempos, submetendo usuários da Internet a acusações pelo que publicam e gostam na Internet.
Em 2018, o Kremlin bloqueou o serviço de mensagens do Telegram. No entanto o serviço, em grande parte, conseguiu superar a proibição, movendo-se entre os endereços IP, o que causou constrangimento ao sistema regulador de Internet na Rússia, o Roskomnadzor.
A verdade é que o governo mostrou que está disposto a tomar medidas drásticas quando achar adequado. Durante uma série de protestos em outubro passado na região de Ingushetia, no norte do Cáucaso, um jovem manifestante chamado Khasan notou algo incomum: ele não podia fazer upload de fotos para o Instagram ou escrever sobre protestos no Facebook. Na verdade, ele percebeu que não podia acessar a Internet de seu telefone e nem seus amigos ou familiares.
Os manifestantes entenderam rapidamente o que havia acontecido. As operadoras de telecomunicações, a pedido do governo russo, cortaram o acesso à Internet em uma região russa em um esforço para sufocar os protestos. O governo esperava esgotar o oxigênio dos manifestantes, impedindo que as imagens virais e as contas ligadas aos protestos fossem divulgadas. A televisão ignorou os tumultos. Um dos envolvidos, identificado como Khasan, pediu para não ter seu sobrenome revelado, relatou:
“Este foi o dia mais importante em anos e de repente a internet paroude funcionar. Eu soube imediatamente que não foi um acidente e por que eles fizeram isso. Eu simplesmente não imaginei que eles poderiam faze-lo tão facilmente”.
À medida que a Rússia aumenta mais sua força no exterior, ela tem como alvo as concessionárias da vizinha Ucrânia e também expressou preocupação de que possa atacar infraestruturas importantes para a Internet global. As autoridades militares da OTAN, alertaram em 2017 que a Rússia havia intensificado a atividade em torno de cabos de dados submarinos no Atlântico Norte e que poderia ter desenvolvido armas para serem usadas contra satélites. Analistas apontaram que, no caso de um ataque, a Rússia optaria por se isolar rapidamente de suas conseqüências, agregou Giles:
“Se a Rússia quiser chegar além de suas fronteiras e atacar infraestruturas críticas, a extensão dos danos, perturbações, caos e consequências econômicas que isso significaria faria sentido para a Rússia tentar se isolar preventivamente das conseqüências.
A Rússia planejava testar o novo sistema antes de 1º de abril, mas agora adiou os planos até novembro. Em qualquer caso, é improvável que permaneça em segredo. “Se eles fizerem um teste em larga escala, acho que será bastante óbvio”, disse Giles.
Giles ressalta que, durante anos, os serviços de segurança da Rússia enfrentaram provedores de serviços de Internet (ISPs), considerando que os regulamentos eram muito frouxos. Os ISPs protestaram contra as mudanças porque teriam que instalar equipamentos de controle de tráfego de acordo com a lei e porque isso provavelmente prejudicaria o tráfego da Internet.
No entanto, o conflito se resume a visões radicalmente diferentes da Internet e como, cada vez mais, a Rede é vista como uma perigosa arma de ataque do exterior e como uma ferramenta para organizar campanhas nacionais de protesto.
De acordo com Giles, ISPs têm indicado que:
“se você tentar impor o tipo de segurança que os serviços de segurança russos federais e outros têm em mente, não permitirá o livre fluxo de informações, e haverá uma fratura do rede”.
Texto de Andrew Roth (Moscou) publicado originalmente no EL Diario da Espanha.