Tive o prazer de entrevistar o professor e escritor Luis Eustáquio, que lançou um livro extremamente instigante sobre o imperialismo americano.
Para ler um trecho do livro, clique aqui.
Para adquiri-lo, faça seu pedido por este e-mail: luiseustaquiosoares@gmail.com.
1. Miguel do Rosário: O que levou você a escrever o livro?
Luis Eustáquio Soares. O ultraimperialismo americano e a antropofagia matriarcal da literatura brasileira é uma obra que dá seguimento, sob novas bases, a pesquisas realizadas anteriormente, sendo uma resposta, sempre situacional,aos desafios que emergiram de outro livro, publicado em 2014:A sociedade do controle integrado: Franz Kafka e Guimarães Rosa, livro em que procurei analisar a sociedade atual como resultado de um amálgama entre a sociedade da soberania, com a disciplinar e a do controle.
Em A sociedade do controle integrado: Franz Kafka e Guimarães Rosa procurei demonstrar que o modelo de sociedade não acaba com o advento de outro. A sociedade da soberania não terminou com o advento da sociedade disciplinar. Pelo contrário, tornou-se uma sociedade disciplinar soberana. As sociedades da soberania e disciplinares não acabaram com o surgimento do atual modelo social capitalista, o que é baseado na sociedade do controle, sob domínio mundial estadunidense. Antes igualmente pelo contrário, pois a sociedade do controle é também disciplinar e soberana; é, pois, a sociedade do controle integrado, ao mesmo tempo soberana, disciplinar e do controle.
Como se vê, a sociedade mais antiga, a da soberania, é o modelo transversal, historicamente falando. É, pois, a sociedade estilo esfinge: decifra-me ou devoro-te. Compreender suas mutações históricas é fundamental, coisa que o marxismo, até onde saiba, ainda não fez, embora, deva ressaltar: realizei e realizo minhas pesquisas tendo como eixo a crítica da economia política do marxismo, essa categoria que parte do princípio de que é a ontologia do ser social do trabalho é que vem primeiro; é o princípio da práxis real, social, política e cultural, e, portanto, do pensamento emancipador.
Nesse sentido, o que se visualiza, como desafio, tem relação com a seguinte questão: como as atualizações da sociedade da soberania, epicentro do estado de exceção contra os povos, impedem a autoliberação destes?
Para responder a essa questão, no livro A sociedade do controle integrado: Franz Kafka e Guimarães Rosa, dialoguei com os seguintes romances do escritor tcheco, Franz Kafka, a saber:O processo(1925), analisado como alegoria ficcional da sociedade disciplinar soberana; O castelo (1926), figuração literária da sociedade da soberania; América (1927), narrativa que descreve, em uma perspectiva visionária incrível, já tendo EUA como epicentro, o advento da sociedade do controle. Dialoguei também com o romance Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, tendo em vista a seguinte questão: não haverá uma ontologia do ser social, o povo, que se atualiza em resistência? Isto é: não haveria uma forma de ser povo, em resistência, para cada modelo de estado de exceção imposto contra si, o povo?
Para responder a essa questão primeiro é preciso admitir, ainda que como hipótese, que cada modelo de sociedade é um arranjo sócio-histórico de estado de exceção contra o povo. Assim, a sociedade da soberania seria um estado de exceção soberano; da mesma forma a sociedade disciplinar soberana seria um estado de exceção disciplinar soberano e a sociedade atual, a do controle integrado, constitui-se como um estado de exceção do controle integrado. Nesse sentido, conclui-se que o soberano não é fundamentalmente um rosto, uma pessoa, mas uma arranjo social-produtivo controlado por oligarquias. O rosto é o efeito transcendental de arranjos produtivos de exceção. É nesse sentido que é intercambiável. É nesse sentido que derrubar um soberano não é garantia de mudança social efetiva, uma vez que é o próprio ser social-produtivo de exceção que deve ser reestruturado, destituído.
Se essa questão for pensada a partir da crítica da economia política dos estados de exceção impostos contra os povos, talvez fosse o caso de analisar como os povos resistem e atualizam a suas respectivas resistências, na contramão das atualizações históricas dos soberanos.
Como, insisto, a sociedade da soberania é o segredo dessa trama toda, é preciso perguntar o óbvio: por quê? Porque mais que o berço das grandes religiões a religião é seu berço. A sociedade da soberania propriamente dita funciona por meio da dialética entre invisibilidade transcendental e visibilidade intranscendente, matável.
Essa dialética funciona assim: o soberano impõe o estado de exceção contra o povo, escravizando-o e exercendo livremente o seu direito de morte contra as maiorias. Nesse sentido, é o povo matável, o povo mortal, que é visibilizado, como um ritual, na sociedade da soberania. O soberano precisa expor a condição mortal do povo para roubar deste a transcendência. Esta, mais que uma palavra abstrata ou um termo metafísico, aqui é definida como o efeito imaterial (bens imateriais) dos “frutos” do trabalho coletivo; os frutos materiais e culturais.
A transcendência só é negativa se e quando estiver em posse do soberano, que transforma a riqueza comum em concentração de poder e, portanto, em metafísica de si mesmo, ao impor-se como origem e destino da própria sociedade. Como o soberano é o próprio arranjo sócio-histórico que decide o estado de exceção contra o mundo do trabalho, no capitalismo, é o próprio capital que declara permanentemente o estado de exceção contra o trabalho, a partir do sequestro da riqueza produzida por este último e tendo em vista o desafio da reprodução ampliada do capital contra o trabalho.
Sob o ponto de vista do soberano, a reprodução ampliada do capital produz como efeito uma metafísica específica, a saber: o capital funciona como origem soberana e o lucro se apresenta como seu destino metafísico. Nesse contexto, resta ao trabalho ser apresentado como decadente, impotente, ignorante, improdutivo ou mesmo subordinado ao capital, como se este fosse a origem transcendental das riquezas.
Mas não esqueçamos: é o vetor patriarcal da sociedade da soberania que impõe um sacrifício permanente aos povos e assim lhes rouba não apenas a riqueza produzida comumente,mas também a transcendência. No capitalismo, um desses vetores é o capital; outro é o imperialismo, que o administra, belicamente,mundialmente.
Com isso quero dizer que na sociedade da soberania a luta é antes de tudo pela apropriação da transcendência, que separa o divino (o soberano, o patriarca) dos mortais: a vida nua, os povos. No entanto, há outro vetor importante na sociedade da soberania, a saber: a transcendência ( traduzível como religiosidade) experimentada, vivida e expressa pelos povos, como fator de resistência ao estado de exceção patriarcal-soberano.
Em Grande sertão: veredas encontrei um princípio de linha de fuga com especial atenção à singularidade dos modos de ser jagunço, como o modo de ser da personagem Riobaldo. Este, como narrador-personagem dessa singular narrativa de Guimarães Rosa,narra, na obra, antes de tudo, a plasmação da transcendência, sob o ponto de vista dos povos, da racionalidade religiosa destes últimos, indicando, desse modo, que a sociedade da soberania, berço histórico das grandes religiões ( como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, por exemplo), pode ser pensada tanto sob o ponto de vista de sua tradição soberana patriarcal, atualizada, na civilização burguesa, no capital, na expansão imperialista, como sob o prisma do trabalho dos povos, na luta de classes trans-histórica destes para emanciparem-se do estado de exceção permanente que lhes rouba o direito de serem sujeitos de suas histórias e, portanto, de seus bens materiais e imateriais
Como o que está em jogo, portanto, é a relação entre os impérios, esse outro nome para o eterno retorno do soberano, e os povos submetidos, o que, enfim, me levou a escrever o livro O ultraimperialismo americano e a antropofagia matriarcal da literatura brasileira” foi desafio de investigar a atualização dos impérios no capitalismo.
E o nome dessa atualização é este: imperialismo. E, tendo em vista a fase atual do capitalismo, o imperialismo sofreu uma mutação e se tornou ultraimperialismo.
2. Miguel do Rosário: Poderia resumir do que ser trata?
Luis Eustáquio Soares: No livro A acumulação do capital (1913) Rosa Luxemburgo realizou uma importante critica do volume II e III de O capital, de Marx, porque nele chegou à conclusão de que o capitalismo não funciona por suas categorias imanentes, como mais-valor absoluto, mais-valor relativo, por exemplo.
A líder do movimento espartaquista alemão argumentou que a acumulação primitiva do capital, descrita de maneira extremamente realista no capítulo 24 do livro I, mais que anterior à formação do capitalismo, tendo em vista o saqueio da sociedade feudal, seria transversal. Isto é: o movimento de reprodução ampliada do capital não seria possível sem uma acumulação primitiva permanente.
Essa acumulação primitiva do capital é o estatuto colonial da humanidade e o imperialismo capitalista emerge para administrá-la, em escala planetária. O imperialismo pode ser definido, nesse contexto, como um metacapitalismo e cuida, dentre outros objetivos, de administrar a divisão social internacional do trabalho inaugurada por Cristóvão Colombo, com a descoberta das Américas, em 1492.
Outra importante referência para o livro O ultraimperialismo americano e a antropofagia matriarcal da literatura brasileira é obra Nascimento da biopolítica(2008), de Michel Foucault, sobretudo por um trecho que está como pé-de-página, que Foucault iria ler no curso que realizou a respeito, mas que, por alguma razão, desistira( suspeito evidentemente do seguinte motivo: autocensura).
É um trecho em que Foucault associa o liberalismo, imperialismo e biopolítica. Interpreto essa associação da seguinte maneira: a biopolítica mundial seria um dos principais objetivos do imperialismo, pois, ao produzir uma humanidade à sua imagem e semelhança, a força imperialista, esse retorno do patriarcalismo, que conseguisse esse objetivo, levaria grande vantagem sobre as demais, na disputa do trabalho e da riqueza dos povos.
Esse objetivo, no entanto, só foi conseguido a partir da Segunda Guerra Mundial, com o domínio estadunidense. Antes disso, houve o período das guerras interimperialistas, com destaque para a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda (1939-1945). É nesse sentido que o imperialismo americano pode ser definido não mais como um metacapitalismo, mas sobretudo como um ultraimperialismo, termo que tomei emprestado de Karl Kautsky, tendo em vista o seu ensaio de 1914, “O utraimperialismo”, no qual argumentara que após o fim da disputa interimperialista pelo saqueio do planeta, surgiria um período de paz consensuada entre as grandes potências imperialistas.
A esse período suposto de paz consensuada entre as grandes potências, após a distribuição do saqueio dos povos, Kautsky chamou de ultraimperialismo: uma fase posterior às guerras interimperialistas. De minha parte, usei o termo cunhado por Kautsky, mas não no sentido desenvolvido por ele. Ultraimperialismo é o nome que dou ao modelo de dominação mundial estadunidense, finalmente levado a cabo a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, período a partir do qual, via indústria cultural, os Estados Unidos intensificaram o projeto de produzir uma humanidade à sua imagem e semelhança.
Como o ultraimperialismo americano constitui uma forma de retorno da sociedade da soberania, tendo em vista o domínio da sociedade do controle em escala planetária; e como a sociedade da soberania é em si uma estrutura religiosa que separa o soberano e a vida nua ( os povos colonizados), passou a ser desafio do livro a análise do modelo de realização religioso da dominação americana, que funciona assim: um retorno ao Antigo Testamento, como princípio religioso; e um lançar-se para o futuro, como princípio estratégico de dominação sempre atualizada, inclusive sob o ponto de vista tecnológico, militar, cultural e também biopolítico.
Com isso é possível deduzir o seguinte: para enfrentar o ultraimperialismo americano é necessário disputar o seu futuro, tendo em vista a forma como atualiza o Antigo Testamento a partir de sua edição permanente, via indústria cultural; edição, bem entendido, da história da humanidade inteira, concebida como um “Mar Vermelho” (diria literalmente) a ser atravessado pelo soberano do Destino Manifesto, com pragmatismo, desdém em relação história concreta, rumo ao futuro.
Como contraponto ficcional ao modelo de realização do ultraimperialismo americano, observei que o conceito de antropofagia, desenvolvido pelo escritor e poeta paulista, Oswald de Andrade, no “Manifesto antropófago” de 1928, tornou-se pedra de toque, para a análise de um contraponto dialético em relação à biopolítica do ultraimperialismo ianque.
E por quê? Porque no “Manifesto antropófago” o que está em jogo é uma estrutura ficcional ao mesmo tempo semelhante e distinta da do ultraimperialismo americano. Se neste há um retorno ao Antigo Testamento e um lançar-se para o futuro, colonizando este último, sendo que a história em si passa a ser concebida como ritual de passagem do Destino Manifesto; no caso do “Manifesto antropófago” propõe-se um retorno a um passado não patriarcal, um retorno a um passado matriarcal; e um lançar-se para o futuro, ao mesmo tempo em que a história do patriarcado passa a ser objeto de ruminação, antropofagicamente.
Para desenvolver esses argumentos, dialogo tanto com o livro Formação do império americano (2014), de Luiz Alberto Moniz Bandeira, como o livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado(1884), de Friedrich Engels e o livro Totem e tabu (1913), de Sigmund Freud, além de outros ensaios escritos por Oswald de Andrade, a partir de 1945.
Com o primeiro, incorporei em minha pesquisa a “formação excepcional do império americano”, tendo como referencial seu vetor religioso de Terra prometida. Com o segundo, dialoguei com o argumento de que o matriarcado seria um processo histórico anterior à família, à propriedade privada e ao Estado, de modo que, sob o ponto de vista de uma antropofagia matriarcal, o que se rumina ou o que deve ser ruminado é a história do patriarcado, compreendida como soberano que decreta o estado de exceção, via controle da propriedade privada, da família e do Estado. Com o terceiro, distingui o totem patriarcal do totem matriarcal: o primeiro interdita os povos; o segundo, como potência, libera-os, tendo em vista uma estrutura de herança matrilinear.
As obras literárias escolhidas são: Parque industrial (1933), de Patrícia Galvão; Marco zero I (1943) e Marco zero II(1945), de Oswald de Andrade, além do romance PanAmerica (1967), de José Agrippino de Paula. A primeira foi analisada como um exemplo de ruminação antropofágica do capitalismo disciplinar europeu, a partir de sua formação ampliada, como saqueio, no Brasil, sobretudo São Paulo e especificamente o bairro Brás; os dois romances de Oswald de Andrade foram analisados como uma ruminação antropofágica do golpe de Estado de nosso estatuto colonial atualizado, tendo em vista o golpe contra a oligarquia do café com leite, paulista e mineira, mas antes de tudo contra o posseiro Pedrão, personagem assassinado que figura como o princípio norteador da narrativa.
O último romance, PanAmerica, foi lido como uma ruminação da formação religiosa-cinematográfica do ultraimperialismo americano, que transforma tudo em questão de estúdio, toda a história da humanidade, sendo que a narrativa de José Agrippino de Paula, como o próprio livro, concebido como um processo de escrita e de edição, tem como enredo paródico a reescrita dos estilos de vida da biopolítica da dominação ianque.
3. Miguel do Rosário: Como esse livro pode nos ajudar a entender a crise atual no Brasil?
Luis Eustáquio Soares: Um argumento importante desenvolvido pelo livro é o seguinte: o que vem primeiro, no capitalismo, na era da dominação mundial do ultraimperialismo americano, não é a relação entre capital e trabalho, mas a relação entre independência nacional em face do modelo de realização do domínio do ultraimperialismo americano.
Essa não é apenas uma dicotomia da luta de classes que diz respeito ao Brasil, mas a todos os países do mundo e muito especialmente aos países que foram e são o objeto da expansão colonial e imperialista do sistema disciplinar do capitalismo europeu e do sistema de controle integrado estadunidense.
Nesse caso, o que as esquerdas precisam compreender, dialeticamente, e assumindo um materialismo histórico consequente, é que, antes de qualquer coisa, é impossível respirar sem uma negação consequente das formas de dominação do ultraimperialismo americano.
O Brasil foi colônia de Portugal, de 1500 a 1822; da Inglaterra de 1822 a 1889, de Estados Unidos, já tendo em vista a Doutrina Monroe, de 1889 até a atual data. Fomos golpeados por Estados Unidos pelo menos seis vezes de 1889 até 2016. Os golpes estadunidenses têm, dentre outros, o seguinte objetivo: apagar a história de independência nacional ( econômica, cultural, criativa, tecnológica, civilizacional) construída e substituí-la pela intensificação biopolítica da presença americana.
Faço críticas sérias a Michel Foucault, mas penso que o conceito de biopolítica seja importante, pela relação que tem com o imperialismo; relação que Foucault apenas sugeriu, sem desenvolver. Como metacapitalismo, um dos desafios do imperialismo é sabotar a luta de classes dos povos por meio da produção de esquecimento sobre a própria luta de classes, historicamente constituída. O ultraimperialismo americano, compreendido, também, como uma empresa mundial de produção de estilos de vida, tem como forma biopolítica de dominação a criação de estilos de vida cujo principal objetivo é dividir e produzir, por meio da divisão, uma pantomima de luta de classes.
O golpe de 1964 teve, dentre outros, como objetivo o apagamento da história da luta de classes (no sentido econômico, cultural, tecnológico, independentista) dos brasileiros, construída entre 1922 e 1964. Teve como um dos principais alvos o Modernismo. E falo não apenas do modernismo entendido como movimento estético, mas como um movimento nacionalista consequente e de tendência anti-imperialista, que foi adquirindo dimensões cada vez mais multitudinárias, de 1922 até 1964.
O objetivo do golpe, sob o ponto de vista do ultraimperialismo americano, foi de reprimir, mas também foi de apagar a história precedente colocando em seu lugar o estilo americano de vida. Enquanto os militares brasileiros se preocupavam em reprimir as esquerdas, a presença americana, no sentido biopolítico do termo, invadiu o Brasil. Desse modo, no mesmo ritmo em que as esquerdas eram eliminadas, com repressão, exílio e morte, pelos militares, houve uma ocupação biopolítica do estilo americano no Brasil.
É preciso compreender a biopolítica do ultraimperialismo americano como uma espécie de marine que se instala, como “senhores Smith”, no corpo das identidades, de modo que estas mesmas, mesmo que não o queiram conscientemente, tornam-se partes do golpe; e da dificuldade de superá-lo.
Quando Lula se tornou presidente, a partir de 2003, processo que se intensificou sob gestão de Dilma Rousseff, houve surpreendentemente um situação semelhante, ao menos sob o ponto de vista da ocupação biopolítica americana, a que ocorreu após o golpe de 1964: uma invasão do estilo americano jamais vista na sociedade brasileira. Invasão de “marines biopolíticos” que tomou as Universidades, o cotidiano das classes populares, as instituições de Estado, como o Judiciário, sem contar a intensificação programada do rito das Igrejas Evangélicas, que capturou inclusive a Igreja Católica – e não apenas.
Quando o golpe foi finalmente levado a cabo, em 2016, a resistência ao golpe, paradoxalmente, não foi capaz de compreender os bastidores do próprio golpe, que teve como epicentro a Operação Lava a Jato, porque estava e está mais americanizada do que nunca.
A pergunta que faz falta, nesse contexto, é: qual a diferença da invasão biopolítica dos “marines americanos”, ocorrida no Brasil sob as barbas do regime de exceção militar, em relação à invasão biopolítica da era Lula e Dilma? O livro em questão ajuda a compreender essa diferença ou essa dupla invasão. Imagino que isso seja fundamental para compreender o imbróglio em que estamos.
Miguel do Rosário: O que pensa da conjuntura atual?
Luis Eustáquio Soares: Imaginem se à época de Moisés, tendo em vista a narrativa bíblica da fuga dos Judeus da opressão do império egípcio, enfim, se à época, os judeus fossem soldados egípcios. Teria ocorrido o Êxodo? Claro que não porque os judeus mesmos se prenderiam.
Fiz essa comparação aparentemente sem fundamento porque o maior problema nosso na atualidade é que, biopoliticamente, nos tornamos, ainda que inscientes, soldados da dominação americana. Essa situação é tragicômica tanto mais se visualizamos que os Estados Unidos nos impedem, como povos, há mais de 100 anos e parece que fingimos desconhecer isso.
A luta de classe independentista, anticolonial, que é hierarquicamente a que vem primeiro, para um país como o Brasil, tende a se tornar uma farsa se não produz uma teoria revolucionária que esteja à altura de seus desafios. E isso não se consegue sem entender como os Estados Unidos nos dominam hoje.
Outro aspecto fundamental da luta de classes advém da importância fundamental de acertar o alvo a ser negado. Nosso alvo primordial não é a relação capital/trabalho, mas a relação entre o ultraimperialismo americano e o trabalho social da independência nacional. Como não assumimos essa premissa e mesmo a desprezamos, nos tornamos literalmente quixotescos. Isso é, lutamos contra moinhos de vento.
Foi assim que os administradores do atual golpe conseguiram nos manipular facilmente, já no início do golpe, com o “fora, Temer!”. Não era Temer o problema a ser visualizado. Era a atuação da Operação Lava Janto, como quinta coluna da guerra híbrida americana do controle integrado. Depois, em pleno período eleitoral( para prefeitos e vereadores), nos fechamos em Universidades e escolas, achando que estávamos mudando o mundo.
Nas eleições do ano passado, não conseguimos explicar para o povo os motivos e as forças históricas concretas que estão por trás do golpe, decretando um estado de exceção permanente contra a independência nacional e por isso os candidatos do golpe levaram uma vantagem danada. Não conseguimos sequer explicar, com objetividade, a prisão de Lula. Não conseguimos dizer que Lula preso é o Brasil preso; que Lula está preso porque fez algo grave para o imperialismo americano, como Jesus Cristo na Roma antiga. Isto é, Lula está preso porque se envolveu com o projeto da independência do povo brasileiro. Não conseguimos dizer que Lula cometeu o “crime” da independência nacional e que por isso não é corrupto, porque corrupção é ser vassalo dos impérios.
Lula foi “o decifra-me ou devoro-te” dessas eleições, que foram uma fraude completa. Como se sabe, os atuais modelos de golpe na América Latina funcionam assim: realiza-se o golpe de Estado e depois se esforça para o retorno suposto da democracia,via eleições. Essas eleições, portanto, eram fundamentais para os golpistas corruptos. Eles vieram com tudo.
No entanto, gostaria de dizer o seguinte. Não teremos chances alguma, para superar atual golpe,sem essa palavra de ordem: brasileiros ( vale para todos), desamerinizem-se! Sejamos mais orientais e menos ocidentais! Sejamos mais “Macunaímas”, um povo sem nenhum caráter, isto é: um povo que devora antropofagicamente todas as identidades. Um povo sem identidade: brasileiro, essa autoinvenção antropofágica permanente.
Sejamos Lula livre!
Abaixo, a capa do livro.