Celebração da ditadura: negar a história e ultrajar a memória
Por Waldeck Carneiro*
Diferentemente de outros países latino-americanos que viveram a experiência da ditadura e que, uma vez restabelecida a democracia, abriram os arquivos do arbítrio, tornando públicos nomes de vítimas, paradeiros de corpos, centros de tortura e identidades de criminosos, no Brasil, a chamada transição para a democracia, feita pelo alto, em diálogo até mesmo com partidos e forças políticas que apoiaram a repressão, não permitiu a exposição das entranhas da ditadura empresarial-militar, que ficou no poder por mais de vinte anos (1964-1985).
Até hoje, inúmeras famílias não receberam pedido oficial de perdão do Estado brasileiro. Também não foram economicamente indenizadas – embora as indenizações jamais consolem ou compensem a perda de entes queridos nem apaguem, com recompensas individuais, uma tragédia que é coletiva, como salientou B. Kucinski, em seu tocante livro “Relato de uma busca”. Mais importante: no Brasil, incontáveis famílias jamais puderam enterrar seus mortos, assassinados pela ditadura, de modo a lhes restaurar, ainda que postumamente, a dignidade que lhes foi subtraída pelo terror perpetrado pelo Estado brasileiro.
Ora, como se tudo isso fosse pouco, o despreparado presidente Jair Bolsonaro pretende produzir um apagamento da história da repressão no Brasil, negando a ditadura e até mesmo propondo a celebração da data de deflagração do golpe de Estado de 1964, como importante efeméride nacional! Nunca é demais lembrar que o golpe de 1964 se materializou, após três tentativas malogradas: em 1954, com a conspiração ultraconservadora para derrubar o governo Getúlio; em 1955, com as mesmas forças, fracassadas no ano anterior, que tentaram impedir a posse de JK; e em 1961, quando o campo conservador no Brasil, sempre a serviço do capital internacional, tentou impedir a posse de Jango, após a renúncia de Jânio Quadros.
Além da acertada e necessária decisão judicial que impediu o desqualificado presidente Bolsonaro de promover comemorações alusivas à ditadura empresarial-militar, importa destacar as manifestações, em diferentes cidades do Brasil, organizadas para desautorizar e enfrentar o fã e discípulo do torturador Brilhante Ustra, rejeitando sua tosca, despropositada e provocativa atitude.
No Campo de São Bento, em Niterói, e na Cinelândia, na capital, entre outros lugares de luta e de luto, manifestantes se fizeram presentes para celebrar, isto sim, a memória de homens e mulheres que resistiram e lutaram contra a ditadura, pagando o preço de suas próprias vidas. Em homenagem a esses perseguidos e mortos por um regime que praticou ostensivo terrorismo de Estado, prendendo, exilando, torturando e matando, mas também em solidariedade aos perseguidos e mortos de hoje, como professores censurados, afastados e processados administrativamente pelo governo Witzel; líderes populares covardemente executados, como a vereadora Marielle Franco; lideranças históricas da classe trabalhadora, internacionalmente reconhecidas, que sofrem diuturna perseguição política e judicial, como é o caso do presidente Lula, as ruas, praças, parques e avenidas do Rio de Janeiro e do Brasil falaram novamente, brandindo bem alto o pavilhão dos direitos, da liberdade e da democracia.
Em vez de propor a celebração daquele regime assassino, o presidente Bolsonaro deveria se preocupar em esclarecer suas relações e de seu grupo político com integrantes de uma organização conhecida como “escritório do crime”. Até agora, não há nenhuma explicação plausível para fotos, homenagens, almoços, parcerias políticas, namoros e vizinhanças, que envolvem o grupo político de Bolsonaro e membros de sua família, que atuam na política, com criminosos ou suspeitos de crimes atrozes.
Não é surpresa que um obscuro deputado, que passou sete legislaturas na Câmara Federal, sem qualquer protagonismo na tribuna, em comissões, na apresentação de projetos ou em debates, não tenha estatura política nem capacidade de gestão para governar o Brasil. Também não surpreende o fato de que o (des)governo Bolsonaro continue e aprofunde a entrega de nossas riquezas estratégicas ao capital internacional, a pulverização da soberania nacional e a desconstrução do acervo de direitos sociais, na mesma linha de seu antecessor, Michel Temer, alçado à presidência, sem a legitimidade do voto popular, por força de um golpe dito “parlamentar”, mas que contou com participação substantiva de diferentes segmentos da sociedade, inclusive parcela do Sistema de Justiça, setores do grande empresariado nacional e transnacional, além do ostensivo e despudorado apoio dos principais veículos da mídia oligopolizada. Não surpreende tampouco que o (des)governo Bolsonaro atue com voracidade no campo da moral e dos costumes, combinando posições obscurantistas com ideias estapafúrdias, em especial por meio da trinca de ministros terraplanistas (o desbussolado Vélez Rodriguez, a caricata Damares Alves e o reacionário Ernesto Araújo).
Ainda assim, com todo esse programa previsível, que conquistou a vitória eleitoral no pleito de 2018, sustentado no ódio e na intolerância, é deplorável que Bolsonaro, como primeiro magistrado da República, pretenda celebrar a prisão política, o exílio de perseguidos, a crueldade da tortura e a covardia dos assassinatos, verdadeiras execuções, como se fossem valores capazes de forjar uma Nação. Tortura, jamais! Ditadura, nunca mais! Liberdade para Luiz Inácio Lula da Silva!
*Professor da UFF e Deputado Estadual (PT-RJ)
Paulo
01/04/2019 - 18h39
Estive aqui pensando quando haverá uma Comissão da Verdade em Cuba. Se há lado bom numa ditadura, o lado bom das ditaduras de direita é que elas duram pouco (exceção feita ao Franquismo, talvez)…