A mão invisível do mercado deve estar coçando a cabeça.
Os últimos movimentos do governo Bolsonaro provocaram um impasse no tabuleiro político e a reforma da Previdência anda mais desacreditada que a seleção do Tite.
O presidente saiu do script tradicional dos chefes do executivo e, ao invés de mergulhar na costura de apoios à proposta, mandou um “fiz minha parte” e seguiu firme no seu discurso de campanha de que não entraria na lógica do “toma lá dá cá”.
É evidente que, por baixo dos panos, o “toma lá dá cá” continua rolando solto e deve inclusive aumentar de intensidade. Mas esta é, na verdade, uma discussão totalmente enviesada. Em um modelo de civilização no qual o egoísmo impera sobre a visão coletiva, é virtualmente impossível evitar que pessoas, investidas de cargos públicos ou não, exijam benefícios para si mesmas para tomar esta ou aquela decisão. No caso, a exigência de espaços no governo e liberação de emendas para garantir voto aos projetos do executivo me parece algo inescapável e até natural.
O cerne da discussão não deveria ser este, mas sim o mérito das propostas. O escândalo é atacar a renda dos mais pobres e dos trabalhadores enquanto não se toca nos ganhos dos tubarões da economia. Se essa crueldade é feita por meio de negociações ou por convicção pessoal, dá rigorosamente no mesmo para quem vai sofrer as consequências. Nas questões de fundo, as forças conservadoras têm pleno acordo: o alvo deve ser sempre o 99%, o andar de baixo da população. Tanto é assim que a tendência é o Congresso tocar alguma reforma da Previdência, mesmo que não seja a proposta pelo executivo.
Mas o que quero destacar é a estratégia de Bolsonaro no imbróglio. O presidente está mostrando ser mais esperto do que se supunha, ao menos quanto ao que deve fazer para se manter no poder. Seu filho Carlos, o responsável pela atuação nas redes sociais, postou o seguinte ontem, no Twitter: “As pessoas que querem Bolsonaro longe das redes sociais sabem que é isso que o conecta com o povo, já que não tem mídia a seu favor. Foi isso que garantiu sua eleição, inclusive. Em outras palavras, o querem fraco e sem apoio popular pois assim conseguiriam chantageá-lo”.
Basta lembrarmos o que aconteceu com Dilma Rousseff após a vitória nas eleições de 2014 para chegarmos à conclusão de que Carlos está coberto de razão. O abrupto rompimento da comunicação direta com a população construída durante a campanha, somado à adoção da política econômica do adversário, enfraqueceu a presidenta, acabou com seu apoio popular e resultou na queda do governo por meio de um golpe.
A comunicação, a propósito, foi um desastre permanente nos governos petistas. Mesmo nos áureos tempos de popularidade estratosférica de Lula, o debate costumava ser pautado pela mídia hegemônica. Reconheça-se que a comunicação governamental com vistas à formação de cidadania não é um problema simples de ser abordado. Como disse Pepe Mujica sobre os governos de esquerda da América Latina, “Conseguimos, até certo ponto, ajudar essa gente (pobres) a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos”.
Bolsonaro usa a comunicação direta com a população para construir uma narrativa lunática dos acontecimentos, para açular sua matilha contra quem considera inimigo e para angariar apoio às suas propostas antipovo como a reforma da Previdência.
O efeito positivo dessa comunicação é, por motivos óbvios, limitado ao seu séquito de seguidores. Imagine as possibilidades de uma comunicação direta e eficiente feita por um governo que privilegie o 99% da população e que vise à formação de cidadania.
O budismo ensina que nossos inimigos devem ser encarados como mestres. São eles que nos ensinam, por exemplo, a desenvolvermos a qualidade da paciência. Bolsonaro é, de fato, um ótimo exercício diário de paciência. No caso da comunicação, contudo, sua prática pode ser uma valiosa lição para o enfrentamento das narrativas hegemônicas.