Quem acompanha a política brasileira há algum tempo sabe que desde o fim da ditadura e o advento da nova república, temos experimentado uma longa e dolorosa crise, apenas pontuada por felizes, mas brevíssimos, momentos de calmaria.
E agora chegamos ao final do terceiro mês do governo Bolsonaro, e já podemos reconhecê-la, nossa velha e ranzinza amiga.
A Folha divulga que o governo se reúne nesta segunda-feira 25 de março, para discutir… a crise.
É sintomático.
O governo não vai discutir o desemprego, a desindustrialização, a queda abrupta na produção mineral, o risco de novos rompimentos de barragem, os novos conflitos no campo, o aumento da violência nas cidades, a deterioração do sistema prisional brasileiro.
Não, nada disso. O governo vai se reunir para discutir a “crise política”, cuja face atual (amanhã será outra coisa, naturalmente) é o desentendimento crescente entre o Executivo e o Legislativo. Até mesmo os deputados do partido do presidente, aqueles que se elegeram quase que exclusivamente na onda do 17, e que, supostamente, seriam absolutamente leais às determinações vindas do Planalto, estão agitados, insatisfeitos e dando declarações rebeldes.
As estimativas do “Termômetro da Previdência”, monitoramento diário feito pela consultoria Atlas Político, apontam que o governo tem hoje apenas 92 votos garantidos: precisa mais 216 votos para conseguir os 308 necessários para aprovação da PEC. A oposição à reforma, por sua vez, já tem 142 votos, e precisaria de mais 63 votos para derrotá-la.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, perdeu a paciência com os desmiolados do Planalto, obcecados com pautas ideológicas com as quais, ele, Maia, assim como a maior parte dos liberais, nunca se identificou.
E agora não se sabe o que vai acontecer com a reforma da previdência, para desespero dos “operadores de mercado”, que olham para ela como se olhassem para uma pontuação num videogame.
O “mercado”, neste sentido, é o nosso equivalente do Estado Islâmico. Não está preocupado com possíveis vítimas de seus atos.
Seu objetivo é exclusivamente produzir um factoide midiático favorável a si mesmo, que gere picos especulativos e lucros instantâneos.
É claro que o dinheiro sai de algum lugar, e quando contemplamos o deserto da economia brasileira, com centenas de milhares de lojas fechadas nos últimos anos, dezenas de milhares de indústrias em concordata e mais de 60 milhões de nacionais com nome sujo na praça, a gente vê muito bem de onde saem os recursos que alimentam a ciranda financeira e os 100 mil pontos da bolsa de valores de São Paulo.
Ainda na imprensa de hoje, lemos que, em função das intrigas palacianas envolvendo a presença dos “olavetes” na pasta, os programas do ministério da Educação estão paralisados, atrapalhando a vida de milhares de escolas em todo país. É uma coisa irritante, porque o governo, além de não ter oferecido, até o momento, nenhuma proposta para melhorar a deficiente educação pública brasileira, ainda está atrapalhando o pouco que já temos.
Outra notícia de hoje é que o governo suspendeu, por dois anos, a avaliação nacional da alfabetização. A desculpa não poderia ser mais esfarrapada: o governo quer esperar a implementação de sua nova política de alfabetização, o que não me parece ter sentido nenhum, pois apenas será possível identificar futuros avanços no setor, e portanto, corrigir eventuais erros de rumo, se tivermos informações atualizadas e seguras sobre o grau de aprendizado das nossas crianças.
Uma das principais bandeiras do governo Bolsonaro era o foco no Ensino Básico, que, de fato, deixou muito a desejar nos últimos anos. No entanto, já eleito, o que o governo propõe? Até agora, a única notícia relevante na área foi a viralização de um vídeo, da titular da secretaria nacional de educação básica do ministério da educação, Ioleme Lima, anunciada como “número 2 do MEC” (já foi demitida), em que ela afirma que “a educação baseada em princípios é baseada na palavra em Deus”, e “onde geografia, história, matemática” serão vistas sob “a ótica de Deus”.
Quando nos deparamos com esse tipo de coisa, é de se perguntar onde estão os tão falados “liberais”?
É um mundo estranho em que vivemos, em que a primeira-ministra da Islândia, Katrín Jakobsdóttir, socialista, feminista e ambientalista, apressa-se para implementar leis de renda mínima, citando um dos fundadores do liberalismo moderno, John Stuart Mill, ao passo que o governo Bolsonaro, eleito por forças supostamente “liberais”, enche o governo de fundamentalistas, conservadores e antiliberais.
Lemos hoje que Bolsonaro tem estimulado os quarteis a celebrarem no 1º de abril, com o maior ruído possível, o aniversário do golpe de 64, enquanto os próprios militares, tentando não agravar o clima de polarização, até mesmo para não atrapalhar o governo, dão orientações para que haja manifestações discretas.
O presidente acaba de voltar do Chile, onde sua passagem provocou enorme desconforto no país, tanto pelas manifestações do próprio Bolsonaro, com sua propalada defesa da ditadura Pinochet, quanto de seu braço direito, Onyx Lorenzetti, que, numa entrevista a uma rádio gaúcha, falou no “banho de sangue” no Chile, feito pela ditadura chinela, como algo necessário à estabilização econômica daquele país.
O Chile é um caso interessante. Sua economia atrasada, desindustrializada, baseada na exportação de minérios, sobretudo cobre, cuja exploração é feita (ó ironia) em grande parte por uma estatal, a Codelco, criada por Salvador Allende, e mantida por Pinochet, tornou-se “modelo” para o pensamento neoliberal brasileiro. Sua previdência, implementada após o “banho de sangue” mencionado pelo ministro de Bolsonaro, e que hoje paga metade do salário mínimo do país a mais de 90% dos aposentados chilenos, é também considerada “modelo” para o que se deseja fazer no Brasil.
Aqui temos um ponto que merece atenção. A esquerda brasileira, ainda atordoada pela derrota eleitoral e pelas ações grotescas do governo, tornou-se em grande parte espectadora passiva das guerras culturais movidas pelo governo contra a imprensa tradicional, descrita esquizofrenicamente pelo governo como “esquerdista”.
E aí corremos o risco de cair no mesmo erro que nos levou até aqui. Parte importante da esquerda resume sua ação à defesa de “valores democráticos”, tentando desesperadamente obter apoio da própria mídia, e deixando de lado a crítica ao “modelo econômico” adotado pelo Brasil desde a redemocratização, baseado num processo acelerado de desindustrialização, concentração bancária e transferência de riqueza da produção para o sistema financeiro.
Muito se fala em “cortina de fumaça”, referindo-se aos constantes e fúteis escândalos oriundos do bolsonarismo, quase sempre envolvendo a agenda dos costumes, de que o infame tweet do presidente durante o carnaval, é um dos exemplos mais bizarros. Entretanto, a maior cortina de fumaça de todas é justamente essa divergência entre Bolsonaro e o “establishment” (cujo porta-voz principal é a mídia corporativa). Ora, a política econômica de Bolsonaro é rigorosamente a mesma política econômica do establishment, da Globo, da grande mídia. Em termos macro-econômicos mais gerais, Bolsonaro dá continuidade à mesma política adotada por FHC, Lula e Dilma. O contraponto a essa política também não é o “socialismo”, ou não precisa sê-lo, necessariamente, ou pelo menos não com esse nome, e sim um regime econômico próprio, criativo, organizado sob os parâmetros mais adequados ao nosso desenvolvimento. É esse regime novo que devemos defender, desde já.
Para isso, precisamos tomar cuidado para não repetirmos a mesma aliança nefasta que fomos, de certa maneira, obrigados a fazer nos últimos anos, entre os anseios democráticos e o receituário neoliberal, e que teve, como consequência, a criação de um sistema econômico profundamente dualista, em que uma parte da população tem direitos trabalhistas, salário, previdência social, e a outra parte vive na precariedade.
Não podemos derrotar Bolsonaro para eleger um João Dória em 2022. Precisamos de uma estratégia que nos faça mobilizar uma massa crítica contra Bolsonaro, sem nos levar para o colo de um neoliberalismo supostamente mais “democrático”, e que, no fundo, apenas perpetuará nossa miséria por mais algumas décadas.