Comentários sobre a entrevista de Haddad ao Estadão

Foto: Marcelo Cardoso / GP1

A entrevista de Haddad ao blog Inconsciente Coletivo, de Morris Kachani, hospedado no Estadão, está excelente. Haddad consegue analisar com muita ponderação, e a necessária dureza semântica, diversos aspectos do governo Bolsonaro. A íntegra pode ser lida aqui.

Há pontos na entrevista que, por darem oportunidade para alguma polêmica, achei dignos de serem comentados. Reproduzo, por exemplo, o trecho abaixo.

Qual a sua visão sobre o bloco de oposição que está se formando? Seguimos replicando o modelo de desagregação do segundo turno?

Eu acho que, assim como o bloco da situação ainda não está plenamente constituído, é natural que o bloco da oposição também esteja em fase de constituição. Mas já há um núcleo básico que pode ser observado. Nas bancadas do PT, PSOL, PCdoB, PSB com certeza; não diria juntos, mas articulados. E acredito que essa carta recém-publicada dos governadores do nordeste seja muito significativa. Porque são governadores progressistas e que marcam posição de uma maneira muito ativa, muito responsável e politicamente madura, inaugurando uma forma de interação com o Governo Federal muito interessante. Eu diria que são dois movimentos, o das bancadas desses quatro partidos e dos governadores do nordeste que realmente são uma novidade.

Haddad fala de “núcleo básico” de um “bloco de oposição”, formado “com certeza” pelas bancadas de PT, PSOL, PCdoB e PSB. Este núcleo estaria, segundo o petista, “não diria juntos, mas articulados”. Ele deixa de fora o PDT, que o repórter irá mencionar na pergunta seguinte, mas sobre o qual o ex-prefeito evitará qualquer comentário.

A menos que o ex-prefeito tenha informações que não partilhou com a repórter, e com ninguém, o que vemos, até agora no Congresso, são dois grupos: um formado por PT e PSOL, e outro por PDT, PSB e PCdoB, com estratégias distintas de atuação.

Alguns movimentos evidenciaram essas diferenças. Na votação de um projeto de lei em que havia risco de criminalização de movimentos sociais, PT e PSOL adotaram estratégia de votar contra o projeto em sua íntegra, ao passo que PSB, PDT e PCdoB negociaram com o relator a remoção dos itens específicos que comprometiam os movimentos, e votaram a favor. Houve até um certo burburinho após a votação porque o deputado Marcelo Freixo, do PSOL, fez um vídeo comemorando a “vitória do PSOL”. De fato, não seria errado afirmar que esses dois grupos, PT e PSOL de um lado, e PSB, PDT e PCdoB, de outro, atuaram conjuntamente, embora não sei se de maneira consciente, e a vitória pode ser atribuída a todas as legendas de esquerda, porque havia consenso, entre elas, contra os possíveis riscos que o projeto, não fosse modificado, levaria aos movimentos sociais. Mas havia duas estratégias diferentes na mesa – derrotar o projeto do governo, na íntegra, ou remover os itens perigosos – e a que prevaleceu foi a do PDT-PSB-PCdoB. Eu escrevi um post sobre o assunto.

Há outros movimentos em curso, que igualmente põem em evidência esses realinhamentos políticos, como uma reunião sobre a reforma da previdência, em que apenas representantes do PSB, PDT e PCdoB estiveram presentes.

Mais recentemente, os deputados Alessandro Molon (PSB), Tulio Gadelha (PDT) e o senador Randolfe Rodrigues (Rede), realizaram bate papo ao vivo sobre a conjuntura, em que também ficou claro uma sólida afinidade política entre, pelo menos, os setores mais vibrantes desses três partidos.

Em entrevista concedida ao Cafezinho, o líder do PDT na Câmara, o deputado André Figueiredo, opina que o PSB está mais próximo da estratégia trabalhista do que do PT.

No Senado, temos o bloco “Senado independente“, formado entre PDT, PSB, Rede e PPS, que é liderado pelo senador Vital do Rego, do PSB.

Haddad inclui, na resposta sobre os partidos, a iniciativa de governadores do nordeste de criarem um consórcio, como que atribuindo-lhe um viés partidário que, se de fato existe (e a fala de Haddad sugere isso), debilita os seus objetivos, na medida em que sua força residiria justamente na construção de consensos supra-partidários entre parlamentares da região, para exercer uma pressão coesa sobre o Congresso e o governo federal.

Pelas informações que temos, portanto, a resposta de Haddad refletiu mais um desejo do que uma realidade.

O repórter Morris Kachani não é especializado em política, senão dificilmente deixaria de provocar o ex-prefeito a explicar um pouco essas contradições de sua entrevista. Kachani tem um blog no Estadão em que aborda temas políticos, mas também (como deixa em destaque, na capa de seu blog), “coordena a área de conteúdo não-ficção da Prodigo Films, com séries e documentários para canais como HBO, A&E e Arte1”.

Haddad deixou transparecer a estratégia do PT, que é organizar um “bloco de oposição” formado pelo próprio PT, PSB, PCdoB e PSOL, mas do qual o PDT não faria parte. Até o momento, contudo, o que vemos é um esforço para emplacar uma narrativa.

O PCdoB integra formalmente o bloco do PDT, que alçou a deputada Jandira Feghali ao cargo de Líder da Minoria.

Nesse ponto, vale um comentário sobre uma situação inusitada, quase divertida. Apesar de Jandira ter conquistado esse cargo pela articulação do PDT, a comunicação da deputada nas redes deixa claro seus vínculos com as narrativas mais caras ao PT (Lula livre, Zé de Abreu presidente, etc), ao passo que Molon, que chegou a Líder da Oposição numa articulação com o PT, é alguém que parece se identificar mais com o trabalhismo de Ciro Gomes (ao qual apoiou no primeiro turno de 2018). PSB e PDT se coligaram no Rio de Janeiro, nas eleições legislativas para federal.

Outro ponto da entrevista que me parece curioso é o cuidado, quase obsessão, de Haddad, em usar o termo “centro-esquerda” para se referir ao PT e ao campo que o partido representa.

Em determinado trecho, em que o repórter menciona uma amiga que lhe pedira para perguntar “por que você não se desvencilha da mochila pesada do PT?”, Haddad responde o seguinte:

(…) eu penso que o PT ainda é o instrumento da classe trabalhadora. Se os trabalhadores quiserem transformar o Brasil, eles têm ainda à disposição esse instrumento. Sem prejuízo de reconhecer mérito em outras agremiações, eu penso que o PT é ainda o partido mais forte da centro-esquerda, em função do legado que deixou pra população mais frágil economicamente do país.

O uso insistente, por Haddad, do termo “centro-esquerda” é uma sutileza que pode parecer besteira, mas revela uma psicologia muito forte no PT, que é a importância que atribui a esse lado mais teatral, mais narrativo, da disputa política. Lembro-me que uma das polêmicas um tanto irritantes do primeiro turno das eleições presidenciais em 2018 aconteceu porque Ciro Gomes, em entrevista a uma revista norte-americana, afirmou que o Brasil não suportaria um governo “de esquerda”, e que o seu projeto seria de “centro-esquerda”.

Na disputa de narrativa acirrada daquele momento, muitos quadros petistas importantes (em especial das correntes mais à esquerda), além dos blogs mais próximos ao partido, recortaram apenas o trecho em que Ciro falava que o Brasil não suportaria um governo de esquerda, omitindo a continuação da frase, onde Ciro qualificava o seu próprio projeto com o epíteto de “centro-esquerda”. O Viomundo publicou post intitulado “Em entrevista, Ciro se posiciona para ser também o candidato da direita”, o 247 mancheteou que “O Brasil não precisa de um governo de esquerda, diz Ciro Gomes”.

No fundo, isso tudo reflete um vício negativo, e irritante, por parte de amplos setores da esquerda, muito denunciado por intelectuais progressistas, como o professor norte-americano Mark Lilla. O termo esquerda passa a ser visto como um selo “identitário”. Ser de esquerda deixa de ser uma bandeira universal, difusa, inspirada em valores como fraternidade, igualdade, liberdade, para se tornar uma qualidade auto-proclamada, uma propriedade que pertence a mim e não a você, e um motivo de discórdia entre movimentos irmãos.

Os partidos progressistas passam a se preocupar mais com golpes semânticos, com “narrativas”, que lhes permitam monopolizar para si epítetos hoje um tanto esvaziados, como “esquerda” e “centro-esquerda”, do que construir uma comunicação verdadeiramente popular, que não apenas use expressões mais simples, como também fale de coisas mais prosaicas e concretas, como mobilidade urbana, cinturão agrícola, saúde pública e limpeza.

A tentativa de forçar a construção de líderes e “blocos” de oposição a golpes de narrativa, não vai dar certo, assim como não deu emplacar pesquisas eleitorais favoráveis. O que vale é o voto, a realidade, o cotidiano da luta política. E aí que serão forjados as novas lideranças e os blocos.

Até as eleições de 2020, quando o pulso do povo será mais uma vez ouvido, continuaremos vulneráveis a todo tipo de manipulação narrativa, à esquerda e à direita, num processo viciado pela existência de “bolhas de opinião” que iludem os analistas mais experientes.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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