No mito da caverna, alegoria clássica do filósofo Platão, um grupo de pessoas que está acorrentado em uma caverna só pode ver as sombras da realidade, as quais toma pela realidade em si.
Será que conseguimos perceber a realidade ou temos acesso apenas às suas sombras? Essa discussão atravessa a história do pensamento humano, até porque é essencial a este. Um exemplo relativamente recente é o do filme Matrix, que explora a mesma ideia – com mais efeitos especiais e batalhas sangrentas do que Platão, é claro.
Todos temos as nossas certezas quanto à realidade, diante das quais é uma postura sábia lembrarmo-nos destas reflexões sobre os limites do saber humano. A dúvida permanente é uma grande aliada se quisermos ver além das sombras.
Pois o tamanho do drama que o Brasil vive pode ser medido pelo tamanho das certezas que tem nosso atual presidente. Bolsonaro leva a crença nas ilusões ao paroxismo.
A começar por seu guru intelectual, o dublê de filósofo Olavo de Carvalho. Olavo constrói sua realidade paralela – na qual tudo que não se alinha à extrema-direita lunática está impregnado com o tal “marxismo cultural” – com vídeos e posts furibundos há uns bons anos. Seu séquito de seguidores, antes uma piada de internet, agora está incrustado em áreas sensíveis do poder central.
O presidente é um dos integrantes do séquito. Olavo tem razão e nada pode convencer Bolsonaro de que a sombra não é a realidade. O presidente acredita estar tirando o Brasil de um horripilante período socialista e diz amém para qualquer arroubo online do seu guru. A última foi demitir a ala mais sensata do MEC porque esta foi para cima dos olavetes que tiveram a brilhante ideia de mandar cartas para as escolas do país todo solicitando que as crianças, dentre outros absurdos, recitassem o slogan de campanha de Bolsonaro.
Esse tipo de maluquice, assim como as peripécias pornocarnavelscas do presidente, não agradam os militares, que querem apenas seu generoso naco de poder e que sua aposentadoria siga intocável. Seguramente não agrada também o mercado, os bancos e a mídia, que querem estabilidade para aprovar logo as reformas antipovo.
Entretanto, o presidente tem outras certezas que podem ser ainda mais perniciosas do que as teorias olavianas.
Suas convicções sobre o que é um cidadão “de bem”, por exemplo. Bolsonaro acha que apoiar publicamente as milícias – organizações criminosas que costumam ter entre seus integrantes pessoas ligadas ao próprio aparato repressor do Estado – é algo digno de um cidadão “de bem”.
Certamente não vê nada de mais no fato de seu filho Flávio empregar, no seu gabinete, a mãe e a esposa de um miliciano foragido, por exemplo. As milícias, na lógica do presidente, são baluartes da luta contra a criminalidade. Se cometem brutais assassinatos e acabam virando organizações criminosas idênticas às que alegam combater – ou piores, dadas as conexões dos seus membros com o poder, paciência.
As ligações do presidente e da sua família com milicianos suspeitos ou condenados por bárbaros crimes são muitas e de tipos variados: familiares, profissionais, político-ideológicas… O PM reformado acusado de matar Marielle Franco, preso hoje, mora, vejam vocês, no mesmo condomínio do presidente. Mas Bolsonaro pensa que ele e seus filhos são todos cidadãos “de bem”.
Um presidente da República cheio das certezas já é um problema. Quando as certezas são tacanhas como essas, é uma tragédia.
Há também a hipótese de que Bolsonaro tenha plena consciência do caráter brutalmente criminoso das milícias. Outra hipótese – a qual não exclui a primeira – é que as intrincadas e abundantes ligações suas e de seus filhos com milicianos (mal) escondam coisas mais pesadas ainda. Uma terceira hipótese – a qual não exclui as duas anteriores – é que o presidente acredite que na guerra contra um tipo específico de criminoso (preto e pobre) e contra os vagabundos da esquerda, vale tudo.
Nesse caso, a ilusão de Bolsonaro é supor que alguém tão rasteiro como ele próprio esteja à altura de comandar um país.
No mito da caverna, um dos prisioneiros consegue se libertar. Ao sair para a luz, percebe que o que via quando estava acorrentado eram apenas as sombras da realidade. Ao voltar à caverna para contar aos outros, é ridicularizado. Sendo as únicas coisas que os prisioneiros conheciam, as sombras eram a realidade e ponto final.
Cedo ou tarde, o Brasil terá que libertar-se das correntes e sair da caverna. O presidente e sua turma seguirão olhando para as sombras.