Pode um gesto se transformar em grito? Pode o silencio representar um gesto? Na contemporaneidade as relações de poder inscrevem uma caligrafia de morte nos corpos.
A realidade é o jogo das relações de força que, em confronto, agônicos, definem uma ordem discursiva. Nela, nessa realidade, encena-se o teatro cotidiano, lugar onde os indivíduos se reconhecem; território onde os corpos são colocados numa rede de práticas e significantes que evidenciam o seu envolvimento com a produção de identidade. Em outras palavras, o corpo fala apoiando-se em algo que já falava por e através dele.
“Corpo incompreensível, corpo penetrável e opaco, corpo aberto e fechado, corpo absolutamente visível, captado por uma espécie de invisibilidade da qual jamais posso desvencilha-lo”, diria Michel Foucault em O Corpo Utópico, As Heterotopias (livro publicado pela Editora N-1).
Cada corpo possui um discurso que o acolhe, que determina seus costumes, seus usos, sua memória; códigos que permitem que ele se reconheça, marcas que possibilitam sua leitura inscrevendo-o, assim, num alfabeto dócil. O discurso busca marcar a circunscrição territorial da palavra final.
A lei vincula-se a si própria e suas referências vinculam-se a si mesmas, constituindo-se, assim, uma forma narcísica de discurso, onde a relação com o outro se funda numa falha originária. No seu espaço circular, qualquer lapso é preenchido por uma palavra reguladora que ali se cristaliza. É essa força, essa forma, portanto, que se entalha nos corpos através da palavra; mas como palavra de um texto único, sem possibilidades outras de interpretação. Palavra que se fecha em si mesma.
Não se pode descobrir a verdade das coisas, a realidade, a objetividade última sem colocar em jogo, ou melhor, em risco, um certo poder, uma certa dominação, um certo saber. Conhecer é dominar, e dominar é desenvolver formas definidas de organização e disciplinarização dos corpos. No tecido complexo das relações humanas, ele é um elemento central. É o protagonista de um jogo de poder que busca submetê-lo a uma tecnologia política através da qual se torna efeito-objeto, submetendo-o a uma racionalização instrumental. O corpo só existe no interior e através de um sistema político. É o poder político que dá ao corpo espaço para existir e se comportar, e se ele é força produtiva, se trabalha, não é por essência, mas por obrigação.
Aliás, a ideia de um corpo social que se constitui através da universalidade das vontades, não passa de um fantasma. Se esse corpo existe, se nos atravessa, é menos pelo consenso e mais pela própria materialidade do poder político que exerce sua força sobre as individualidades, afinal, nada é mais material, mais físico e mais corporal do que o exercício do poder; ele está impregnado em nós. Por isso o discurso – um dos instrumentos dessa força – deve ser denso, rígido, constante e meticuloso. Sua íntima relação é o que faz emergir a soma incalculável de sofrimentos e revoltas inaudíveis que rasgam os corpos – sobretudo os corpos insubmissos. A forma grito nos é tornada inacessível e o indizível enraíza-se em seu lugar, fazendo do silêncio a própria matéria do corpo. A exigência de conformidade é o rastro dessa caligrafia de morte e, apesar das diferenças fisiológicas que nos separam, há um lastro surdo e invisível de mudez que nos percorre a todos.
De um corpo a outro, de uma experiência a outra, há um mundo sem imagens, uma espécie de transparência silenciosa que quase paradoxalmente deixa aparecer – mas como visibilidade muda, como gesto sem voz, como história sem memória. Vivemos num regime de clausura, no tempo de uma repressão cega através do qual o corpo se torna assunto de polícia, de política. Corpo gay, corpo trans, corpo preto, corpo feminino. Exigência moral e econômica que se exerce sobre um corpo que se funda na experiência do trabalho; experiência do corpo dócil.
Na atualidade, uma nova geografia do corpo é fundada e, agora, deve ele se submeter a uma paisagem de natureza moral não tão recente, sob risco – caso não o faça – de ser condenado, de ser considerado maldito, de ser humilhado e violentado. A coação, hoje, possui lugar privilegiado nas relações humanas; instrumento social e politicamente aceito em lugares juridicamente – ainda – proibidos. A coação, materializada na linguagem, no discurso, na palavra e, por fim, nos corpos, permite a fuga de fantasmas que, achávamos, já estavam erradicados. O corpo é o lugar da verdade e da abolição; é o lugar da justiça e do exílio; do gozo e da punição. É o lugar de uma conformidade tão rigorosa quanto passível de coação, alienando completa e absolutamente sua liberdade.
Convocado incessantemente para um papel vazio e recusado em tudo aquilo que se pode conhecer sobre ele – atuando, por isso, na superfície de si mesmo através de uma máscara lhe é imposta – o corpo é “convidado” a objetivar-se aos olhos da razão contemporânea como uma espécie de estranho perfeito, ou seja, como aquele cujo desconhecido não se deixa revelar. O país dos homens que coagem não acolhe quaisquer corpos; eles só dão passagem àqueles que aceitam o preço do anonimato e da submissão.
Assim, como não conceber o corpo como território de resistência? Ele ocupa a fenda que se abre nesse jogo entre a vida e a morte. Ele abre um campo de dilaceramento que não lhe obriga a outra coisa, senão a interrogar-se. E se o corpo fosse uma obra, mais do que um instrumento? E se essa obra fosse, a um só tempo, a forma da insubmissão e a materialidade de uma linguagem outra, nua? E se o corpo fosse?