Conheci Marcia Tiburi há alguns anos na fila de embarque de um aeroporto, no dia de seu aniversário. Um sorriso no rosto e a simpatia no abraço já mostraram muito sobre quem era Marcia. Desde aquele dia até hoje, muita coisa mudou no Brasil. No Brasil daquela ocasião, Marcia era uma celebrada autora, defensora dos direitos humanos, professora e filósofa. No Brasil de hoje, com Bolsonaro presidente, seu nome estampa manchetes com a notícia de que teve que se retirar do país devido a ameaças constantes que vinha recebendo. Não é coincidência.
Atendendo a um convite de Lula, Tiburi resolveu candidatar-se a governadora do Rio de Janeiro no ano passado pelo Partido dos Trabalhadores. Atendendo a um convite seu, eu embarquei nesta jornada ao seu lado. Se até então eu tinha por ela uma admiração pela pensadora que é e pela pessoa amiga e generosa que eu conhecia, passei a admirá-la com a paixão de quem viu de perto, minuto a minuto, a entrega, a força e a garra de Marcia durante o difícil processo que foi atravessar esta campanha.
Que não seria fácil, todos nós sabíamos. Somos brasileiros conscientes do estado caótico e fragilizado das instituições nacionais, sobretudo a tão mencionada e “celebrada” democracia. Quando se decide participar de um pleito carregando no peito a estrela vermelha do PT no auge do antipetismo e com Lula preso, pensa-se saber o que é que vem por aí, mas todo o horror vivido durante os quarenta e cinco dias de campanha que tivemos não só atendeu às nossas expectativas, como superou todas elas.
Era imensa a minha vontade de tentar transmitir ao eleitor aquela Marcia que eu conhecia e se tornava cada dia maior. Eu vi a transformação de uma pessoa em nome de um projeto, em nome do que ela acreditava que poderia fazer pelo estado do Rio. Em cada estudo sobre os valões fluminenses, eu via vontade de transformar. Em cada comunidade que visitávamos, eu via força no seu olhar de quem tentava amparar, ainda que por breves minutos, a dor da miséria daquelas pessoas.
Crua e nua nos jogos de poderes da política, Marcia embarcou topando seguir o roteiro que rege uma campanha eleitoral. Gravou programas de TV, discursou em palanques, caminhou pelas ruas com bandeiras, gritou em microfones, defendeu seu programa de governo. Iniciava seus dias ainda pela madrugada e os encerrava também nela. Era incansável na missão de cumprir com aquilo que tinha se proposto e de atender a tantas vozes que agora entoavam seu nome, seguravam suas bandeiras e esperavam dela a solução.
Por muitas vezes, eu, que a acompanhava em cada atividade e compromisso durante todo este período, pensei que ela não fosse aguentar. E com uma força descomunal, ela conseguia ir adiante. Juntos, visitamos os lugares onde a miséria se faz presente. Viajamos num carro blindado a muitos lugares do Rio de Janeiro, sobretudo a região metropolitana e a baixada fluminense. Encaramos de perto o olhar da tristeza daqueles que são abandonados pelo estado.
Não cabe em apenas um texto toda a experiência que vivemos e o que aprendi caminhando ao lado de Marcia Tiburi, mas se paro para pensar, cenas lindas me surgem na memória. Lembro-me do carinho de Marcia com cada mulher que lhe abordava, com cada uma das “meninas das bandeiras”, cuja função ela gostaria de ter abolido devido ao sol escaldante do Rio. Vejo Marcia se agachando para olhar nos olhos daqueles a quem ela pedia voto. Lembro do seu sorriso de vergonha quando saímos pela primeira vez para distribuir material de campanha.
Por inúmeras vezes vi Marcia chorando por se sentir impotente diante da destruição que toma conta do estado do Rio de Janeiro. Ouvi outras incontáveis vezes ela dizer “Nós temos que ganhar essa eleição, olha como essa gente vive!”. Vi seus olhos incharem ao conversar com as mães da Rocinha, da Tavares Bastos, de São Gonçalo, de Padre Miguel. Vi Marcia se empolgar com o interesse das mulheres por política, sobretudo as mulheres negras. Senti sua emoção quando nos encontramos com a mãe de Marielle e Marcia proibiu o uso de seu nome em todos os seus atos de campanha. “Não vou usar Marielle”, ela disse.
Certa vez, quando voltávamos de uma caminhada no subúrbio do Rio, depois de termos visto cenas de puro descaso e muita miséria e abandono, Marcia teve uma crise de choro dentro do carro. “O que vai ser dessa gente? Quem vai cuidar dessas pessoas?”, me perguntou aos prantos. Numa visita a Duque de Caxias, parou um discurso no meio porque cruzou com o olhar de uma mãe esperançosa que a assistia. Novamente, chorou em silêncio. Quando conseguiu seu ônibus de campanha, o Tibus, celebrou: poderia levar com ela o maior número de mulheres possível e não andaria mais de carro sozinha, e sim com todas elas.
Em Brasília, quando fomos para o registro da candidatura de Lula, andamos perdidos a pé pela cidade abarrotada de manifestantes pela liberdade de Lula, além dos olhares de repreensão que recebemos no aeroporto, tivemos momentos de muito carinho e amizade. Por todos os lados, pessoas paravam Marcia pedindo fotos e declarando afeto. Em verdade, é preciso ressaltar quanto amor Marcia inspirou por onde passou, atravessando o ódio de quem a afrontava, e quanto amor também recebeu. Lembro que em Brasília, perto de perdermos o voo e longe de conseguirmos um Taxi, ganhamos carona de uma fã que não parava de chorar enquanto nos levava ao aeroporto.
Em certa ocasião, eu passava pela rua quando um carro parou ao meu lado e o vidro escuro se abriu. Era Marcia, chorando, me pedindo que entrasse. O que foi? Perguntei aflito. “A vida é muito miserável”, ela me respondeu aos prantos. Em um dos muitos atos de campanha, Marcia havia encontrado com um grupo de crianças que lhe pediram ajuda. Duas das crianças já tinham também seus próprios filhos. Crianças criando crianças nas ruas do Rio de Janeiro. Nestes momentos, que foram muitos, nossos olhares se cruzavam e nós chorávamos. Chorávamos porque sabíamos que a vitória daqueles que não se importam com estas crianças se aproximava. Chorávamos porque era pesado demais. Chorávamos porque éramos cúmplices na dor.
Ao longo do caminho, quando conhecíamos mais do estado e do jogo da política, ainda que exauridos fisicamente, ganhamos mais voz, força e garra para seguir em frente. Minha fonte era Marcia. A dela, eu sei, era o povo. Marcia se descobriu uma grande interlocutora com a voz das ruas. Era lá onde gostava de estar, com as pessoas, dialogando, escutando. Com as mulheres da periferia, com os homens das favelas, com as crianças das ruas que corriam ao seu encontro.
Com uma equipe de trabalho pequena, abandonada por muitos, Marcia nunca deu um passo atrás durante todo o processo eleitoral. Foi muito duro assistir de perto uma pessoa tão doce e sensível enfrentar monstros tão cruéis e poderosos. Na era da desinformação, uma incansável força-tarefa tinha que dar conta de combater robôs e uma indústria de fake News que disseminavam absurdos escabrosos sobre ela.
Quanto mais a mensagem positiva de sua campanha e seu programa de governo se espalhavam, mais Marcia era atacada covardemente por aqueles que se escondem em suas casas, mas se mostram valentes nas redes sociais. Algumas postagens em sua página de campanha chegaram a receber mais de mil comentários de ataques contendo ameaças, calúnias e difamações, tanto a direita quanto à esquerda: o que não faltou a Marcia foi fogo amigo. De cabeça erguida, Marcia tentava encarar tudo com bom humor, sabendo que era só o início do um Brasil triste que se consolidaria meses depois com a posse de Jair e sua bolsomonarquia.
Vi Marcia ser atacada durante caminhadas. Vi Marcia ser atacada durante falas em locais públicos. Vi Marcia ser atacada durante as gravações de seus programas de TV. Vi o MBL editar, manipular e disseminar vídeos que a difamavam. Ouvi e li, ao seu lado, palavras e agressões tão malvadas que não me sinto a vontade para reproduzir aqui a baixeza dos xingamentos que a ela direcionavam.
“Eu sou forte, não se preocupe comigo”, ela dizia. E, de fato, força é um de seus maiores atributos. Talvez seja a força que provém da inteligência. Ao fim de todos os dias, depois de tantos atos de campanha, o que Marcia fazia era ir pra casa estudar. Estudar para saber mais do povo, conhecer melhor o que poderia oferecer até mesmo aqueles que a achincalhavam e a linchavam virtualmente.
No dia das eleições, fomos juntos votar em um colégio tradicional no Flamengo. Ali, o horror dos horrores. Vaiada desde que saiu do carro, por pouco não foi agredida pelo ódio fascista daqueles que ali estavam. Uma senhora que aparentava ter idade para ser sua mãe, encostou seu rosto no dela para gritar, odiosamente, que ela não iria ganhar nunca, chamando-a de imunda. Meu peito apertava, Marcia se assustava, mas seguia em frente. Naquele dia, respiramos aliviados, horas depois, pois havia acabado o inferno da corrida eleitoral. Ela cozinhou pra mim e rimos como dois amigos. Essa Marcia, pensei, os maldosos deveriam conhecer antes de espalharem inverdades.
Qual o pecado de Marcia Tiburi, afinal?
Enquanto eu, ingenuamente, pensava que conhecendo Marcia como eu conhecia as pessoas teriam uma outra percepção e menos ódio, me peguei pensando: afinal, por que odeiam tanto alguém que não conhecem? Qual o pecado de Marcia? A resposta é o medo. As pessoas têm medo de seres humanos como Marcia Tiburi. Um medo que nasce da inveja, mas medo. Uma mulher poderosa, que impõe suas ideias, escritora de sucesso, acadêmica premiada, personalidade relevante. Sua figura impunha medo e recebia o troco.
Quando Marcia sacode o establishment e escancara, sem medo, suas convicções, sendo mulher, ela extrapola o lugar que é concedido a ela no sistema de castas fascista que vem se tornando o Brasil. Com a eleição de Jair Bolsonaro ao poder, perde a esquerda, mas perde muito mais a direita brasileira. Quando o escárnio do horror se legitima com a faixa presidencial, qualquer possibilidade de soberania democrática, inclusive a pregada pela direita liberal, e de respeito aos direitos individuais desaparece. E figuras como Marcia, cuja existência e atuação questionam naturalmente este sistema, se tornam alvo fácil. Não é mais sobre direta e esquerda.
Deixa de ser apenas cruel e assustador quando as leviandades atingem o patamar das ameaças físicas. Deixa de ser apenas uma dor de cabeça quando você não tem mais a segurança de participar de um evento literário sem esquemas de proteção. Passa-se ao que devemos chamar o que se vive a partir de agora: um estado de exceção.
Derrotada nas eleições, a vida seguindo como escritora e colunista, Marcia não pode mais continuar com sua vida normalmente. Tornou-se alvo daqueles que nominam o período atual de “Nova Era”. Nesta nova era, jornalistas são ameaçados pelo presidente via twitter. Nesta nova era, parlamentares renunciam ao posto por ameaças de morte. Nesta nova era, pensadoras como Marcia Tiburi e Débora Diniz podem até dizer o que pensam, mas precisam buscar um lugar seguro para viver e preservar a integridade física.
A reação debochada daqueles que também a atacam é a prova de que há em curso um estado de exceção. Quando percebe-se que o direito à liberdade de expressão é atacado de forma tão doentia pelo exército de seguidores iludidos do bolsonarismo (que é nada, mas um nada perigoso), é preciso ter cautela para analisar os contextos.
Vejamos: vivemos sob a tutela de um governo mentiroso, reunido ao redor de uma figura medíocre, inapta e inconsequente, que governa cercado de seus filhos e se dirige à nação utilizando o Twitter como um adolescente usa para resolver conflitos de sala de aula. O Governo brasileiro virou um picadeiro sem graça, onde tudo é possível dentro do absurdo. Neste estado pós-democrático, onde a verdade não vale mais nada, ou melhor, onde se cria verdades convenientes, a desinformação tem sido a maior e mais perigosa das armas.
O modus operandi explícito é o da inconsistência e da bagunça organizada. Tudo parece muito desordenado, no entanto segue uma cartilha que nos levará ao pior. Enquanto o presidente tuíta absurdos e leva seus 3,4 milhões de seguidores a reações raivosas, contradizendo seus próprios atos e induzindo a erro o povo que o elegeu, o projeto de poder bolsonarista cresce na “surdina”, cercado pela equipe de governo mais militarista desde o período da Ditadura Militar.
O resultado não pode ser mais catastrófico. Estes que temem Marcia Tiburi, Diniz, Jean e tantos outros, estes que celebram o exílio de quem teme pela própria vida, estes pensam ter vencido neste jogo, mas estão prestes a descobrir que são peças descartáveis no tabuleiro do fascismo. Não há lugar para eles quando não há lugar para quem quer defendê-los de sua própria mediocridade. Não haverá lugar para eles quando o fascismo parar de brincar e resolver jogar de verdade com os peões brasileiros.
Com tristeza imensa eu acompanhei a saída de Marcia do Brasil. Com o peito apertado eu me despedi, pois sei o que significa assistir pensadores terem de deixar seu país quando viver nele se torna insustentável. É difícil ver Marcia ter que optar morar longe seu país, pelo qual tanto lutou e luta. Sei de sua dor, sei da dor que sofrerá o país. Neste cenário dominado pelo caos, é forte a mensagem que nos transmite com sua decisão. Mas fico feliz por saber que ela busca, mais uma vez, com mais força, com mais garra, seguir, onde quer que esteja, pensando e registrando nossos tempos, nossas barbáries e lutando por sua existência de mulher num mundo tão misógino que a expulsou de seu próprio país.