É seguro afirmar, por sua maciça votação final e por inúmeras declarações de voto, que Bolsonaro foi o escolhido de muitas pessoas cujas categorias profissionais eram frontalmente atacadas no discurso do então candidato. Dois exemplos: professores, ameaçados em sua liberdade de cátedra por conta de uma suposta – e delirante – doutrinação marxista nas escolas, e servidores públicos, atingidos em cheio pela linha econômica de Paulo Guedes, a qual tem como princípio basilar uma drástica redução do tamanho do Estado.
A que se deve este estranho fenômeno?
Uma boa pista está em uma palavra muito em voga: ideologia, aqui considerada como um conjunto de ideias, pensamentos, doutrinas ou visões de mundo de um indivíduo ou grupo.
Se o ego pode ser definido como a concepção que o indivíduo faz de si mesmo e de sua própria personalidade, a ideologia parece reproduzir o mesmo mecanismo no âmbito coletivo. Acaba tornando-se, assim, uma espécie de identidade coletiva.
Por conta de sua própria natureza, o ego apresenta um notável efeito colateral: uma dificuldade exacerbada de admitir estar errado. Seu impulso é o de sempre tentar sustentar a ideia que faz de si mesmo.
Se a ideologia emula o mecanismo básico de funcionamento do ego, reproduz também seu efeito colateral. Eis uma boa explicação para o tanto de pessoas com posições e opiniões políticas flagrantemente contrárias aos próprios interesses: o ego coletivo, digamos assim, tenta a todo custo manter sua identidade de grupo.
Estas reflexões me vieram à mente após a leitura de alguns comentários em notícias sobre as movimentações militares que rondam a Venezuela. Muito embora aparentemente estejam diminuindo, não são poucas as manifestações de brasileiros favoráveis à linha intervencionista que Donald Trump está claramente disposto a adotar.
Linha que vem contando, aliás, com o auxílio bovino de Bolsonaro. O presidente vem fazendo exatamente o oposto de sua estapafúrdia promessa de “acabar com o viés ideológico” nas ações do governo – como se isso fosse possível. O que mudou é que agora a ideologia passa por cima de qualquer razoabilidade nas tomadas de decisões.
Bolsonaro resolveu meter o bedelho no conflito que se desenha, a despeito do alerta dos militares e até do Rodrigo Maia de que a empreitada de mandar “ajuda humanitária” serviria apenas como forma de elevar os conflitos na fronteira e, assim, fornecer justificativas para uma invasão dos EUA. Se os militares não bancarem uma posição sensata, corremos o risco de entrarmos em uma bela furada.
Ainda mais quando são evidentes as motivações imperialistas dos Estados Unidos, que reconheceram de imediato um curioso “presidente autodeclarado” que agora sugere não descartar um pedido de intervenção militar estrangeira para depor Maduro. E a Venezuela é rica em petróleo… Já vimos esse filme, não? O roteiro está ficando manjado.
Diante dos fatos, basta um pouco de lógica – acompanhada de uma singela pitada de bom senso – para perceber que apoiar uma guerra em um país vizinho é insanidade. Ser consorte dos EUA no plano de, se necessário, transformar a América Latina em um novo Oriente Médio é positivamente estúpido.
A não ser para quem é controlado pela própria ideologia. Nesses casos, Trump é o capitalista de sucesso, Maduro é o ditador esquerdista. Trump só pode estar certo e Maduro, como sempre, errado. Guerra à Venezuela, portanto.
Se acontecer de nos metermos em uma impensável guerra, que os militares tenham o bom senso de instituir um filtro ideológico nas convocações. Algo como “Só é obrigado a se apresentar quem foi favorável a esta patacoada”.