As armadilhas políticas do caso Venezuela

O assunto Venezuela oferece muitas armadilhas ao internauta que procura assumir uma posição coerente, tanto com suas próprias ideias e valores, quanto com sua estratégia individual (integrada ou não a uma estratégia coletiva) para lutar contra as ideias, valores e governos dos quais discorda, e que reputa nocivos para si mesmo, para seu país e para a humanidade.

Dito de outra maneira: todos nós temos nossas ideias e valores, os quais acreditamos serem os mais corretos, e procuramos governar nossas ações, na medida do possível, em harmonia com eles. Mas também temos uma estratégia para que esses valores triunfem no mundo, e isso pode incluir (quase sempre inclui) muita sutileza, recuo, segredo e contra-inteligência. Isso é a essência do que se entende como estratégia. Deixamos de reagir imediatamente a uma injustiça observada no trabalho, na rua, na imprensa, não exatamente por covardia, mas porque apostamos numa estratégia alternativa ao confronto direto, que comporte o menor risco e a maior chance de sucesso possíveis. Engolimos em seco uma repreensão injusta de um chefe, mas secretamente conspiramos para obter um emprego melhor. Reagimos com silêncio a um disparate político de um parente, porque intuímos que uma discussão agressiva não trará resultados satisfatórios, mas ficaremos sempre à espreita, em busca de uma informação, um fato, que nos permita encontrar um flanco vulnerável na sua argumentação.

No caso Venezuela, uma das armadilhas é a cristalização de estereótipos acerca da opinião de quem não pensa igual a você. Uma opinião pública dividida em campos radicalmente opostos, incomunicáveis entre si, favorece quem detêm o poder. E quem detêm o poder, na era da guerra híbrida, são os grandes meios de comunicação, que por sua vez são controlados por interesses financeiros vinculados ao imperialismo.

Isso vale para o internauta que defende a Venezuela e seu governo, os quais entende serem vítimas de um ataque imperialista, mas também para aqueles que criticam o regime Maduro, visto como uma ditadura, ou como um governo autoritário e incompetente, que deveria ser logo trocado por um outro regime político, que pudesse proporcionar mais estabilidade, democracia e crescimento econômico ao povo venezuelano. Ambos os internautas podem partilhar os mesmos valores, mas estão separados por interpretações radicalmente opostas da mesma realidade.

Para a esquerda pró-chavista, seria um grande erro subestimar o poder de persuasão da imprensa ocidental, que muitas vezes não usa uma linguagem francamente conservadora, e consegue penetrar fundo na consciência pública média.

Na guerra híbrida, o conceito de “vitória” é muito singular, por isso é também um erro brandir uma “vitória” do regime Maduro, seja no campo da realpolitick, seja no campo da comunicação, apenas porque se entende que uma fase da crise foi superada. Na guerra convencional, a vitória é atingida quando os equipamentos militares do adversário são destruídos. Na guerra híbrida, não se pode esperar um resultado tão claro: a CNN, o Financial Times, a Globo, não podem ser “destruídos”. No máximo, podem ser neutralizados, temporariamente, por contra-narrativas.

Análises que falam, em tom triunfal, de uma vitória do regime Maduro são contraproducentes e ingênuas, porque tem efeito desmobilizador.

A guerra híbrida é uma guerra sem fim, travada dia e noite, sem tréguas. Apenas quando o ordenamento mundial possuir um sistema internacional de comunicação mais democrático e plural, com autonomia suficiente para se recusar ao papel de simples marionete dos interesses imperiais, teremos conseguido domesticar e civilizar a guerra híbrida (que mesmo assim deverá prosseguir, por meios mais sutis). Até lá, nossa batalha é constante e diária.

Outra armadilha perigosa é o isolamento político daqueles que defendem o regime Maduro, ou que não se alinham, automaticamente, à narrativa unilateral antichavista promovida pela mídia.

A crise na Venezuela, por exemplo, já serviu para estabilizar e reconstituir as relações entre a Globo e o governo Bolsonaro. A Globo não tem amigos, como todos sabem, mas tem interesses em comum com o governo. Interessa à ambos, ao governo e à Globo, isolar a esquerda, associando-a à defesa incondicional de um regime que não tem boa imagem junto à maioria da opinião pública. As postagens da família Bolsonaro já deixaram bem claro que estão usando isso.

A hostilidade à Venezuela une o campo liberal ao campo conservador: Hillary Clinton e Trump, PSDB e PSL, fascistas e ongs de direitos humanos…

O sectarismo, neste caso, seria fatal à esquerda. Não é inteligente nenhuma hostilidade contra quem pensa diferente, em especial contra setores progressistas ou liberais sob influência, há anos, das campanhas midiáticas antibolivarianas.

Não cabe aqui acusar o outro de “guinada à direita” porque fez críticas à Venezuela, ou porque não se engajou, como achamos que deveria, na luta anti-imperialista em defesa da revolução bolivariana.

A tática de empurrar para a direita quem não está alinhado à nossa estratégia, apenas fortalece o campo adversário.

As pessoas, incluindo jornalistas, formadores de opinião e políticos, guardam opiniões distintas sobre a Venezuela porque tem acesso a informações distintas. Cabe ao campo que defende a Venezuela oferecer informações alternativas e tentar estabelecer pontes de comunicação com o outro, com o diferente, e não engrossar ainda mais a camada externa de sua bolha. Até porque, reitere-se, essa é uma guerra sem fim.

Viu um político, um jornalista, um influencer, um amigo, falar mal da Venezuela, ou escorregar nas narrativas da mídia ocidental? Não xingue, não ataque, não destrua pontes. Ao invés disso, ofereça uma reflexão, uma narrativa diferente, uma informação alternativa.

Como a crise na Venezuela traz o risco de uma intervenção militar no país, com participação da Colômbia e do Brasil, pode-se dizer que estamos diante do que seria a I Guerra Híbrida Sul Americana.

Lutar nessa guerra requer o domínio das tecnologias e estratégias próprias da guerra híbrida. Sem armas ou recursos financeiros, cabe a nós, simples internautas, partidos progressistas, movimentos sociais, nos aperfeiçoarmos no campo da batalha da informação, até porque a vítima não é apenas a Venezuela, mas também o povo brasileiro. O impeachment e a eleição de Bolsonaro usaram técnicas da guerra híbrida para um novo tipo de colonização econômica e política.

A estratégia contra o imperialismo deve ser furar bolhas de opinião, construir a unidade, e buscar campos de batalha em que a vitória seja possível. Para isso, precisaremos às vezes fazer abordagens mais modestas, em linguagem mais simples, adotar posturas menos impositivas, desenvolvendo técnicas narrativas que permitam, objetivamente, quebrar resistências e preconceitos.

Não há problema algum em se criticar o regime Maduro, apontar seus erros ou aspirar por mudanças profundas em seu governo; muitas vezes, a melhor maneira de se defender a Venezuela é provar que se é possível fazer uma dura crítica a seu governo, desejar que haja mudanças, desde que o processo político do país seja contextualizado historicamente com honestidade, as informações colhidas com isenção e responsabilidade, e as propostas oferecidas sejam pacíficas, justas e democráticas.

Naturalmente, é preciso tomar cuidado, pelo bem da credibilidade do discurso progressista e democrático, para não se passar a imagem de leniente com o erro ou com o autoritarismo.

Pela mesma razão, deve-se procurar esclarecer a opinião pública que a intervenção externa não é a melhor fórmula para se buscar uma solução democrática a conflitos de ordem doméstica.

Dito tudo isto, a página rejeita absolutamente qualquer intervenção militar, mesmo que disfarçada de “ajuda humanitária”, na Venezuela. Se os Estados Unidos e outros países querem mesmo ajudar o país a superar sua crise econômica, então que suspendam embargos e permitam-no negociar livremente com o mundo. Distribuam alimento ao país através dos canais oficiais do Estado, e respeitem as decisões soberanas do sistema de justiça do país, que já estabeleceu que Nicolás Maduro é o seu presidente legítimo.

Quanto à opinião pública brasileira, que tome muito cuidado com as manipulações presentes na imprensa corporativa, brasileira ou internacional, cujos laivos de independência e espírito democrático parecem se esvanecer subitamente sempre que há temas vinculados aos interesses políticos e financeiros dos EUA.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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