Divide et Impera: a hostilidade de Ives Gandra Martins Filho aos Trabalhadores do Brasil

Por Arthur Silva*

Na semana passada, em uma decisão histórica[1], a Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho considerou que greves contra privatizações são abusivas. O julgamento referia-se à paralisação de 72 horas dos funcionários da Eletrobrás em junho de 2018 contra a tentativa do governo de Michel Temer de entregar a estatal. O relator Godinho Delgado votou a favor da manutenção do direito dos trabalhadores em realizarem a greve, citando o parecer favorável da OIT a respeito do assunto. No entanto, acabou prevalecendo a posição do ministro Ives Gandra Martins Filho, para quem as greves devem ser voltadas única e exclusivamente para questões próprias do grupo grevista, como reajuste salarial ou vantagens diversas.

O voto do ministro Ives Gandra Filho não é nenhuma surpresa, haja vista seu longo histórico e de seu pai de flagrante hostilidade aos trabalhadores brasileiros, sobretudo contra sua organização. Mas o que chama a atenção é o caráter estratégico da decisão, que confere a essa vitória da sanha privatista um alcance que transcende a questão da Eletrobrás ou até mesmo das privatizações: o ministro do TST quer proibir as chamadas “greves políticas”.

No voto do ministro Ives Gandra, o que configura “greve política” é que suas reivindicações são “dirigidas ao Estado” e não para “impor um ônus diretamente ao empregador”. Isto é, para o magistrado, somente são consideradas greves legítimas aquelas que se pautam por interesses imediatos dos trabalhadores grevistas em relação ao seu empregador particular ou conjunto de empregadores de uma categoria particular, como manutenção do emprego, reajustes salariais, horas-extras e etc.

Salta aos olhos como essa decisão impacta o elo que une a atuação sindical à indispensável Questão Nacional. Em um momento em que os agentes do Império atacam os pontos nevrálgicos da economia brasileira, a ação conjunta da classe organizada em um jogo recíproco com os representantes no Congresso Nacional torna-se o principal meio de defesa do patrimônio pátrio frente à dilapidação promovida pelo globalismo financista. Atrelar a chancela estatal a um movimento grevista ao critério do particularismo de suas pautas significa fraturar e segmentar os trabalhadores. Como rezava o antigo dizer romano: “divide et impera”. Os trabalhadores, atomizados em suas pautas imediatas, são impedidos de se constituir enquanto classe. Como a lógica do capital é por si própria imperialista, a ausência de organização dos nossos trabalhadores patriotas tem como consequência uma Nação de joelhos frente à marcha triunfante do Império.

Esse ponto central da decisão do TST foi ignorado até mesmo por advogados trabalhistas situados à esquerda no espectro político[2]. As críticas à decisão do TST assumem um caráter de uma “microfísica do poder”, afirmando que a política também penetra as miudezas da intimidade do local de trabalho, borrando as fronteiras de uma greve política e uma greve econômica. Embora esta frase isoladamente considerada esteja correta, ela é somente uma meia verdade, pois ignora a economia nacional como uma totalidade articulada pela complementaridade de suas partes.

Na perspectiva desses críticos, as lutas dos trabalhadores se complementam por uma mera adição de movimentos paralelos que convergem em direção ao Estado. Assim, a luta de cada segmento contra sua precarização e pela manutenção de seus direitos deixa de ser “isolada” pela solidariedade de outros segmentos premidos pelas mesmas injustiças. As análises que correspondem a essa perspectiva abundam na literatura da sociologia do trabalho, bastante lida pelos juristas ligados à área trabalhista. Esta produção acadêmica se limita a uma crônica sem fim do avanço da precarização, da retirada de direitos e etc. Mas é incapaz de realizar uma composição estratégica.

Tal incapacidade é derivada da concepção atomizada da classe trabalhadora, ainda que essa concepção seja inconsciente. Na esquerda hegemônica no Brasil (e no mundo, na verdade), prevalece essa espécie de individualismo sublimado em que cada um lutando pelo seu, um ao lado do outro, conquistará os direitos almejados. Como o meme que circulava na internet até pouco tempo: “ninguém solta a mão de ninguém”. Nos anos 80, a produção sociológica uspiana e campineira, que tornou-se a ideologia dominante no Brasil, pregava uma autonomia do movimento sindical neste sentido. Nessa obra teórica, a crítica a articulação nacional dos trabalhadores era (e é) um lugar comum. O aparato sindical herdado do período varguista virou um “cachorro morto” chutado tanto à direita quanto à esquerda: ataques ao seu caráter “corporativista”, ao “peleguismo” de seus sindicatos, ao populismo que “roubava a fala” dos trabalhadores e etc. pautaram os últimos 40 anos de movimento sindical e da perspectiva teórica que o orienta.

A essa concepção atomizada de classe corresponde uma concepção igualmente atomizada de economia política. Os diferentes segmentos econômicos são reduzidos a uma igualdade genérica e abstrata. O apagamento de suas diferenças complementares impede que se veja o caráter estratégico de suas partes.

A Eletrobrás é fruto da luta do Brasil por sua autodeterminação. Nos anos 50 e 60, os governos populistas foram capazes de realizar importantes composições estratégicas no sentido de desapropriar empresas transnacionais que havia se apoderado do setor elétrico brasileiro, como a famosa encampação da CEE por Leonel Brizola[3]. O leitmotiv dessas desapropriações era claro: um Projeto Nacional de Desenvolvimentosoberano que demandava um poderoso setor energético para a maquinaria industrial. A criação das Centrais Elétricas do Brasil S.A. foi o produto desse longo acúmulo que culmina em 1962 com a criação da estatal.

Portanto, o setor elétrico não é somente “mais um” segmento afetado pela insanidade neoliberal e pela ambição imperialista. Trata-se de um setor estratégico cuja tomada é parte central de um projeto de submissão do Brasil.

Ironicamente, a concepção de “greve política” do voto de Ives Gandra se aproxima mais do conceito leninista[4] do que a teoria dominante na esquerda hegemônica:

“Numa greve política, a classe operária atua como classe de vanguarda de todo o povo. O proletariado desempenha em tais circunstâncias não apenas o papel de uma das classes da sociedade burguesa mas o papel de força hegemônica, isto é, de dirigente, de guia, de chefe. As ideias políticas que se revelam no movimento têm um caráter nacional, isto é, afetam as condições fundamentais, as condições mais profundas da vida política de todo o país.”

Não queremos com isso dizer que os direitos dos trabalhadores diretamente afetados pelo saque ao patrimônio nacional seja irrelevante. Na concepção leninista, a greve política se expressa nas greves econômicas, mas no sentido hegeliano de supressão (aufheben), isto é, uma negação que contém o negado. Ela é a base imprescindível onde se assenta a luta nacional. Contudo, sua centralidade estratégica não pode ser apagada por uma igualdade formal e abstrata.

Para deter a marcha triunfal do Império que massacra nossa Pátria, precisamos voltar a pensar o Brasil estrategicamente. Temos de abandonar o individualismo sublimado no fetichismo horizontalista que reina absoluto na esquerda hegemônica. Devemos resgatar aquela bela categoria com a qual o grande Getúlio Vargas iniciava seus discursos públicos:

TRABALHADORES DO BRASIL!

*Arthur Silva é graduado em Ciências Sociais pela FFLCH/USP e servidor Público do Estado de São Paulo. Pesquisa a Teoria da Dependência e História Brasileira.

Texto retirado do Portal Disparada

[1]http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/id/24793939

[2] https://www.conjur.com.br/2019-fev-18/opiniao-tst-insustentavel-doutrina-greve-politica#_ftn1

[3] http://memorialdademocracia.com.br/card/brizola-encampa-a-bond-share

[4] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1912/05/31.htm

Vinicius Costa Martins: Vinicius Costa Martins é jornalista formado pela ESPM/SP
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