Um debate sobre as novas relações entre PT e PSOL

Imagem: Eduardo Matysiak/Futura Press/Estadão Conteúdo

O erro crucial do PSOL

Por Frederico Krepe

Os eventos políticos de 2018 e seus desdobramentos em 2019 marcam uma profunda mudança na relação entre PT e PSOL, onde os dois partidos se aproximaram de uma forma nunca antes vista. É um processo que vem se desenrolando, pelo menos, desde 2016 com o golpe parlamentar que derrubou Dilma. Se antes tínhamos um partido em busca de se construir como uma alternativa de esquerda ao PT, agora temos os dois partidos intimamente ligados, praticamente compartilhando a mesma narrativa sobre a derrota de 2018 e dando indicativos de que a aliança entre os dois só começou. As críticas aos erros do PT foram ficando cada vez mais esvaziadas, sendo substituídas por leituras cada vez mais convergentes até o momento onde quase não se vê mais críticas do PSOL ao PT e quando aparecem sempre são bem particulares e localizadas, como vimos nos debates eleitorais em 2018. Diante disso tudo, fica registrado no senso comum da sociedade a crença – cada vez mais forte – de que o PSOL é uma espécie de linha auxiliar do PT. É uma mudança forte para um partido que nasce se contrapondo ao PT e que traz consequências importantes no cenário político.

O PSOL nasce em 2005 a partir do descontentamento de alas petistas mais radicais profundamente críticos das práticas do PT, especialmente daquelas que o partido adotou a partir do momento em que assume a presidência em 2003. O PT, em vez de aplicar uma agenda política progressista e antineoliberal, resolve seguir as regras do jogo na época e adota uma política econômica bastante conservadora e rebaixada, se aliando aos bancos e mantendo a estrutura da desigualdade brasileira intacta. Ao mesmo tempo, se escancara que o partido não representava algo novo na política brasileira, repetindo práticas de financiamento dos partidos tradicionais, se aliando a empreiteiras e outros grandes empresários para manter uma estrutura partidária robusta para vencer eleições, inclusive se fazendo do uso de caixa 2. Esse descontentamento é exemplificado por meio de dois fatores que são determinantes para o surgimento do PSOL: a reforma da previdência aprovada por Lula em 2003 e o escândalo do Mensalão. A mensagem passada por esse movimento de ruptura com o PT e fundação do PSOL é que a esquerda precisava buscar um caminho independente a qualquer custo e que não deveria ter que se sujeitar a um partido que traiu seus princípios. Todo esse quadro conduz à fundação do PSOL, partir de correntes que rompem com o PT pela esquerda e outros grupos articulados que não se sentiam representados pelas práticas políticas de outros partidos da esquerda radical, como o PSTU. Desde então, a relação entre os dois partidos sempre foi conflituosa, com o PSOL sustentando uma postura de quem busca a construção de uma alternativa independente ao PT, o que foi expresso em todas as candidaturas a presidente do partido, de 2006 a 2014. A situação se inverte em 2018 e é selada a aproximação do PSOL com o PT, com o marco desta mudança sendo a candidatura de Guilherme Boulos à presidência.

Desde a sua fundação, o PSOL sempre fez questão de ter seus candidatos para a disputa presidencial. Em 2006, o partido lançou o nome de Heloísa Helena, senadora de Alagoas na época e uma das principais vozes dissidentes do PT e conseguiu alcançar um resultado impressionante para uma primeira candidatura do partido, conquistando um terceiro lugar na disputa com quase 7% dos votos e mais de 6 milhões de votos. Em 2010, o partido lança a candidatura de Plínio de Arruda Sampaio, um dos maiores quadros da esquerda radical brasileira, mas não alcança uma votação tão expressiva como a de 2006, obtendo 0,9%, com algo perto de 900 mil votos. O sucesso econômico do segundo mandato de Lula (o PIB do Brasil cresceu 7,5% em 2010) impulsionado pela explosão dos preços das commodites no mercado internacional foi um fator importante para esvaziar qualquer outra candidatura a esquerda e impulsionar a aposta em Dilma; outro fator que contribuiu para o esvaziamento da candidatura de Plínio foi a presença de Marina Silva na disputa, que herdou grande parte dos votos de Heloísa Helena e tentou ocupar uma posição de alternativa à polarização PT/PSDB. O cenário das eleições de 2014 já era o de uma crise econômica seguida de uma grande crise política desencadeada pela Lava Jato e os abalos de junho de 2013. O PSOL seguiu na linha crítica ao PT lançando Luciana Genro como sua candidata. É digno de nota que todas as candidaturas presidenciais do PSOL, pelo menos até aquele momento, trilharam um caminho de construção independente do PT, com um discurso profundamente antissistêmico, sendo um bom exemplo a alcunha de “gêmeos siameses” que Luciana Genro cunhou para se referir a Dilma, Aécio e Marina nos debates televisivos. O resultado em 2014 foi bem melhor que o alcançado em 2010, com Luciana Genro recebendo mais de 1 milhão e 600 mil votos, correspondendo a 1,55%. É importante destacar que em 2014 havia uma pressão muito grande para o “voto útil”, pois havia a possibilidade de vitória de Dilma já no primeiro turno, fato que tirou alguns votos da candidata do PSOL. A linha crítica aos grandes partidos do sistema rendeu bons frutos ao PSOL, que cresceu com a campanha de Luciana Genro. É certo que algumas figuras públicas do partido se aproximaram de forma muito automática a Dilma no segundo turno, como é o caso de Marcelo Freixo e Jean Wyllys, mas ainda era mantida uma independência em relação ao PT e uma postura bastante crítica das decisões políticas de Dilma no seu segundo mandato.

Por fim, chegamos a 2018, o momento em que tudo mudou com a candidatura de Guilherme Boulos. Defendo aqui que o ano de 2018 foi definitivo na aproximação do PSOL com o PT e a candidatura de Guilherme Boulos é um marco disso. Boulos sempre teve uma proximidade com o PT, já foi convidado a entrar para o partido diversas vezes e sempre esteve em constante diálogo com setores importantes do petismo, mesmo que ainda adotasse uma postura crítica das ações do governo, em especial do segundo mandato de Dilma e sua política de ajuste fiscal. Por ser o coordenador do maior movimento por moradia do Brasil (MTST), essa proximidade com os movimentos sociais foi a justificativa principal para a aposta em convidar Boulos para ser candidato do PSOL em 2018. Mas não foi só isso. A candidatura de Boulos também marcou uma mudança drástica, talvez a mais importante da história do PSOL, na sua relação com o PT. A disputa por espaço, com o intuito da afirmação de um projeto independente do PT, sempre foi a tônica dos embates entre os dois partidos. Com Boulos, houve uma opção deliberada pelo diálogo mais próximo com as bases petistas. Isso é expresso pelos inúmeros atos em que Boulos e vários setores do PSOL dividiam o palanque com os principais quadros do PT. A presença de Boulos, ao lado de Lula, no dia de sua prisão, marca bem isso, assim como o “boa noite presidente Lula” no primeiro debate eleitoral na TV, na Band. O que ocorreu, na prática, é que o PSOL tentou um atalho para se construir enquanto um partido com grande capilaridade social, esperando que – com uma postura de abertura ao diálogo – parte da base petista pudesse se descolar do PT, passando a orbitar a figura de Boulos como uma e o PSOL atuando como o polo aglutinador de uma possível reorganização. A esperança era a de atrair a base lulista para o PSOL, não mais com uma disputa pelas contradições e erros do PT e de Lula, mas sim como uma espécie de herdeiro do lulismo. Tudo isso fez com que o PSOL acabasse por seguir a reboque de toda a estratégia do PT e esse é um erro que pode ser fatal para o partido.

O erro do PSOL em seguir a reboque da narrativa do PT pode ser entendido tanto pelo ponto de vista interno como externo. Olhando pela perspectiva interna, temos um potencial de fragmentação partidária que pode ser explorado no futuro, já que boa parte das figuras que fundaram o partido o fizeram por um descontentamento profundo com o PT, cobrando uma autocrítica do partido sobre seus inúmeros erros. Essa parte ficou insatisfeita com a candidatura de Boulos, denunciando que aquele era o sinal de que o PT estava tentando controlar o PSOL. Toda essa situação pode acelerar um processo de divisão interna, criando dificuldades para o partido se manter coeso se essa aproximação evoluir para candidaturas conjuntas nas próximas eleições e o completo apagamento da diferenciação entre os dois partidos. A perspectiva externa é a mais grave, a meu ver, pois acaba por inviabilizar o PSOL enquanto alternativa independente do PT. Enquanto fazia oposição ideológica ao PT era fácil apontar a linha divisória entre os dois partidos, mas agora essa linha ficou muito mais difícil de ser delimitada. É difícil sustentar, aos olhos do povo, que o partido não é linha auxiliar reproduzindo a mesma narrativa do PT e se mostrando como aliado prioritário a todo momento. O primeiro resultado prático desse novo quadro foi a votação de Boulos em 2018, onde conseguiu pouco mais que 600 mil votos, ou 0,58%, sendo a pior votação presidencial da história do partido. Esse número deve ser encarado como um aviso. Se a aposta por seguir junto ao PT for confirmada, o partido pode sofrer mais derrotas, já que vai ter toda a sua imagem atrelada à do PT em um momento em que o antipetismo é dominante na sociedade. O que pode acontecer – e já está sendo esboçado – é o PSOL não conseguir herdar quase nada de uma base que é cada vez menor. É uma aposta em que os custos são muito altos e as vantagens são profundamente incertas. E os ganhos dentro da base petista são pequenos, já que entre escolher o PT original e uma cópia do “PT raiz” representada pelo PSOL, certamente a escolha feita será pelo primeiro.

Essa aposta em se aproximar do PT mata qualquer possibilidade do PSOL de se constituir como uma alternativa independente ao petismo, o impedindo de apresenta um projeto concreto para o Brasil, um problema central que atinge o partido desde a sua fundação e que será potencializado. Em todos esses anos, desde sua fundação, o PSOL falhou em apresentar para o Brasil um projeto com clareza e concretude, com saídas claras para os problemas que nos afligem, deixando de pautar o debate público e sempre agindo com uma postura defensiva. Enquanto o PT estava no governo era fácil a diferenciação, mas agora, em que ambos os partidos estão na oposição, a falta de um projeto para fazer esse tipo de diferenciação acaba por aproximar ainda mais os dois partidos. O prejuízo para o PSOL é gigantesco, já que sempre será aquele com menor capilaridade eleitoral e inserção nos movimentos sociais e vai acabar tendo o seu discurso desidratado pelo PT, que vai se usar da justificativa do “apoio ao mais forte” para ter sempre a voz hegemônica nas disputas futuras. A própria possibilidade do PSOL se construir como uma alternativa contra Bolsonaro está em questão, pois sua voz enquanto oposição será certamente sufocada pelo hegemonismo petista. A tarefa de construir um projeto independente do petismo acabou caindo no colo de Ciro Gomes, ex-ministro e apoiador histórico do PT desde 2002, que soube unir a força de um projeto com a necessidade de um distanciamento do PT para um projeto independente. É curioso notar como justamente o partido que mais fez oposição ao PT na esquerda não soube aproveitar o momento de se impor e finalmente mostrar a que veio.

Por Frederico Krepe da Silva, bacharel em filosofia pela UFJF e mestrando do programa de pós graduação da UFJF.

Publicado originalmente no Portal Disparada.

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