A vitória da estupidez e a busca por sujeitos não fascistas

"Civilização" Americana - ou deuses do mundo moderno - José Clemente Orozco

Por Sergio Graziano* e Rogerio Dultra dos Santos

“Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar numa imagem todo mal do nosso tempo, escolheria essa imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento.” – Primo Levi, É isto um Homem?

Vivemos tempos de ode à ignorância, à estupidez e à imbecilidade. Na história, tal situação se inaugura com um certo ar de esquisitice.  Hoje experienciamos, na verdade, tempos sombrios. A violência, que segue a ignorância de perto, faz com que nosso Estado democrático em germe se despeça sem cerimônia. A democracia a construir vai arrastada por um vendaval quase incontrolável e cede espaço a um arbítrio impregnado de moralismos, ódio e rapinagem a qualquer custo. O anti-intelectualismo e a barbárie substituem a ciência e a civilização.

Nesses momentos traumáticos, Theodor Adorno percebe o surgimento de uma nova espécie antropológica, o “homem autoritário”.

A descrição não deixa dúvida do que estamos assistindo bem diante de nossos olhos:

“Em contraste com o fanático de velho estilo, esse último parece combinar as idéias e habilidades típicas da sociedade altamente industrializada com crenças irracionais ou anti-racionais. Ele é ao mesmo tempo esclarecido e supersticioso, orgulhoso de ser um individualista e sempre temeroso de não ser igual aos outros, ciumento de sua independência e inclinado a se submeter cegamente ao poder e à autoridade”.

Hoje o tipo autoritário domina social e politicamente o país. Ele e a sua estupidez submetem e estão submetidos constantemente a uma propaganda antidemocrática, de ode à violência, que potencializa a chance de consolidar plenamente o seu fascismo.

Instalado no poder, e sem nenhuma vontade de desvincular-se, o tipo autoritário realiza bovinamente o papel que dele se espera: eliminar as regras do Estado de Direto e disseminar a violência necessária para submeter o país a forças do capitalismo internacional.

É bom que se diga que o domínio da estupidez não surge espontaneamente. Ele precisa ser adubado com o nosso ancestral ódio à diferença, plantado com sementes de guerra híbrida e regado com desinformação e disparos massivos de fake news. É somente assim que o domínio da estupidez estende seus tentáculos e atinge os procedimentos democráticos no que estes têm de mais básico.

Uma de suas vítimas óbvias nesta quadra foi a validade formal das eleições, com um Presidente da República eleito por uma rede de financiamentos ocultos que só agora começa a ser exposta.

Mas, no cotidiano mais comezinho do desmonte nacional das instituições e das regras, surge a violência torpe, que seduz e mimetiza o homem autoritário: aquela que passa a ser consentida oficialmente e festejada em praça pública.

Sob o pretexto de humanizar, tolhem-se direitos fundamentais. Sob a propaganda do combate ao crime, regulariza-se a selvageria. Sob a pauta da defesa da vida, a morte é servida farta e impunemente aos comensais da bestialidade.

Instaura-se nesse contexto um verdadeiro jogo psicótico, de incapacidade de lidar e identificar o que é real. Nos últimos anos, esse processo de alienação do real permitiu, no dizer de Hannah Arendt, o estabelecimento de “uma vida sem pensamento”, uma ascensão de homens que não refletem sobre o que dizem e o que fazem.

Em compensação Arendt argumenta que esta vida sem pensamento “fracassa em fazer desabrochar a sua própria essência – não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como sonâmbulos”.

Foi também Arendt que cunhou a expressão “banalidade do mal” ao observar o julgamento do nazista Eichmann, em Jerusalém. Percebeu que aquele ser humano havia perdido sua capacidade de pensar e, segundo seu relato, “a conspícua superficialidade do agente tornava impossível retraçar o mal incontestável de seus atos”.

O que a deixava “aturdida” era que Eichmann, mesmo diante dos atos monstruosos praticados era uma pessoa simples, mas tinha uma “característica notória que se podia perceber tanto em seu comportamento anterior quanto durante o próprio julgamento e o sumário de culpa que o antecedeu era algo de inteiramente negativo: não era estupidez, mas irreflexão.”

O homem autoritário materializa a irreflexão de uma sociedade capturada pela fake news, submetida às superstições obscurantistas e cujo jogo democrático foi esvaziado sem que perdesse a sua aparência de legalidade. A situação é sombria, apesar da aparente esquisitice.

A nossa democracia é hoje esse zumbi sem essência, a revestir de uma capa de legitimidade um processo político-eleitoral fraudado, a deglutir nossos cérebros, a nos criminalizar e matar, sob o domínio de uma autoridade fake.

Mas, se este é o contexto analítico geral da nossa distopia, é bom também que se dirija um olhar para o exercício do mal nos pequenos atos, nas pequenas mudanças que se avolumam no nosso horizonte legislativo.

Aos poucos, assim, se tornará possível dimensionar a brutalidade da banalidade do mal e, quem sabe, fazer despertar aqueles que ainda acreditam, irrefletidamente, que estejamos operando dentro da “normalidade”.

É o caso do Projeto de Lei que autoriza a cessão compulsória de órgãos e partes do corpo humano para transplante ou enxerto, oriundos de indivíduo morto em confronto com agentes públicos de segurança.

Ao que parece, a expressão cunhada por Arendt cabe perfeitamente no caso: um exemplo claro da estupidez humana, característica do homem autoritário que hoje domina a cena brasileira.

A leitura do projeto de lei de extração compulsória de órgãos é assustadora (no mínimo) ou transmite a impressão de que é fake news.

Mas não é!

O seu artigo 2º diz que o sujeito estará em efetiva e comprovada conduta delituosa em confronto com agentes públicos de segurança, quando ele estiver “portando todo ou qualquer tipo de arma branca, imprópria ou armamento restrito de uso das Forças Policiais e Forças Armadas” e que, com dolo (com intenção), atente direta ou indiretamente contra a vida de agente público de segurança ou contra vida de qualquer civil e, por consequência, do confronto com agentes públicos de segurança resulte em sua morte encefálica.

À liberdade para matar, usual na trajetória de países com raiz escravocrata como o nosso, soma-se a autorização para usar os corpos mortos.

Às famílias, tem-se sempre negado o direito de enterrar seus filhos, geralmente negros, geralmente pobres, geralmente inocentes, geralmente desaparecidos. Nega-se, agora, o direito de acesso aos corpos, vilipendiados pelo Estado, transformados em valiosa mercancia no pregão dos transplantes.

E isto porque o artigo 3º determina que a unidade de saúde, após atendimento de urgência e emergência, esgotado todos os meios para salvaguardar sua vida e constatada a morte encefálica, determinará o transplante, independente de autorização da família ou responsável.

Foucault igualmente nos alerta para a incapacidade e a opacidade de não se refletir sobre a realidade.

Segundo ele, seria o caso do cultivo e da revelação do fascista que habita dentro de nós. Ou seja, o prazer de ver a exclusão do outro, de limpar a sociedade e purificá-la dos males produzidos por pessoas que cometem delitos, a desintegração e eliminação do diferente, tudo isso alimenta o nosso fascismo.

O importante para o sujeito sem reflexão é o significado político da defesa da moralidade e, o que é pior, a partir da exclusão do outro. Moraliza-se uma agenda característica do capitalismo, a eliminação dos que são indiferentes no processo produtivo. Realizam-se os padrões morais determinados pela sociedade de consumo que, por si só, exclui, estigmatiza e guetifica.

O massacre das diferenças é o alimento e o berço das fobias sociais que libertam o fascista que há dentro de nós. Ele estimula o nosso silêncio, o silêncio dos que conhecem o significado real e a verdadeira repugnância dessa tragédia. Estimula também o culto à ignorância, fatal para o nosso desenvolvimento nacional soberano. E é também contra esta situação subjetiva que deve se voltar a nossa luta.

*Sergio Graziano é advogado em Santa Catarina, doutor em Direito pela PUC-RJ e pós-doutor em Ciências Criminais pela PUC-RS.

 

Rogerio Dultra: Professor do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense (UFF), do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Justiça Administrativa (PPGJA-UFF), pesquisador Vinculado ao INCT/INEAC da UFF e Avaliador ad hoc da CAPES na Área do Direito.
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