Por Felipe Knöller
A importância da questão educacional sempre habitou os mais diversos discursos políticos no Brasil, independentemente do espectro ideológico-partidário. Por vezes carregados de pura demagogia e falsidade – principalmente por aqueles que representam, na política, nada mais do que o interesse pela manutenção e naturalização dos privilégios da elite – mas, por outras vezes, como um compromisso verdadeiramente expresso de fazer da educação popular uma questão prioritária e revolucionária de transformação social do País.
Este é o signo distintivo do PDT, que desde a sua fundação preserva, como um mandamento intocável, a consciência de que numa sociedade que se desenvolve letradamente e baseada na apropriação do conhecimento e da cultura, tanto os analfabetos quanto aqueles que são insuficientemente instruídos são destinados à completa marginalidade social, transformando-se em meros objetos de força muscular que se veem obrigados a vender sua mão de obra a preço vil. E, tal como ocorre no Brasil, quando esta marginalização forma a maioria esmagadora da população, é o próprio País que se vê condenado a existir à margem do progresso civilizatório de seu tempo.
A educação como prioridade fundamental do PDT é, essencialmente, fruto de sua ideologia socialista e democrática, o que o permitiu – contra todas as práticas políticas da tradição liberal conservadora brasileira, que sempre teve total descaso com a educação popular – ser uma vanguarda na percepção da gravidade do problema educacional brasileiro e de como isso perpassa estruturalmente uma sociedade tão desigual quanto a nossa. Mas, sobretudo, como uma ideologia que o impulsiona para um enfrentamento corajoso de inúmeros e poderosos interesses, dispendendo todos os seus esforços políticos e a maior parte dos recursos de que o Estado pode dispor a favor de um projeto educacional emancipatório. Este foi o caso de uma revolução educacional, não apenas sonhada, mas implementada no Rio de Janeiro por Leonel Brizola e Darcy Ribeiro durante seus dois mandatos no Governo do Estado: trata-se da criação dos CIEPs – Centros Integrados de Educação Pública.
Ao invés de explicar de forma meramente objetiva sobre os aspectos fundamentais do funcionamento dos CIEPs, farei isso de forma testemunhal, pois tive a sorte de ser uma entre milhões de crianças que estudaram em um CIEP e que, assim como eu, tenho a certeza de que preservam, não apenas boas lembranças deste período, mas, principalmente, marcas poderosas que transformaram definitivamente as suas (a minha) realidades.
Estudei da 1ª a 4ª série em um CIEP chamado Glauber Rocha (CIEP 123), em Nova Friburgo – RJ, de 1991 a 1994. À época, este período era o que se chamava de Ensino Primário. Eu havia feito o C.A (alfabetização) em uma escolinha próxima de minha casa, então cheguei ao CIEP já sabendo ler e escrever. Contudo, o projeto educacional do CIEP compreendia, já àquela época, uma concepção que ainda temos dificuldade de compreender e aceitar hoje em dia: nem todas as crianças chegam na escola em igualdade de condições e de capacidades intelectuais, e aquelas que têm, desde o berço, acesso a estímulos, ainda que pré-reflexivos, já chegam nas escola destinadas ao sucesso ou ao fracasso. Por isso havia uma abordagem inovadora neste sentido, que identificava individualmente as necessidades de cada aluno, promovendo sua alfabetização de modo que não atrapalhasse aqueles que já chegavam alfabetizados.
Eu poderia ter continuado na pequena escola próximo a minha casa, onde teria até mais facilidade de locomoção, e porque era onde 90% das crianças próximas a mim estudavam. Mas a opção por estudar em um CIEP foi fruto da convicção política de minha mãe, que compreendia aquele formato de escola de tempo integral não apenas como eficiente e justo, mas, sobretudo, revolucionário.
Minha mãe – falecida desde 2007 – era uma Brizolista convicta e apaixonada pela história de Brizola. Foi militante do PDT nos anos 80 e ajudou a fundar o partido em minha cidade. Pude viver em meio ao clima das eleições de 89 e, embora lembre apenas de forma vaga de algumas poucas imagens, tenho toda a memória afetiva daquelas eleições, e da tristeza de minha mãe após a derrota no primeiro turno. Portanto, a minha ida para um “brizolão”, como eram apelidados os CIEPs, era não apenas uma escolha por uma boa educação, mas também, uma questão de honra para ela.
O princípio fundamental dos CIEPs era oferecer educação em tempo integral, como se faz em qualquer lugar minimamente civilizado e desenvolvido do mundo. Os “brizolões” funcionavam das 8h às 17h (mas também à noite para educação de jovens e adultos). Mas minha jornada começava bem antes, já às 5h30. Minha mãe era operária de uma fábrica alemã de tecidos nesta época, e precisava acordar muito cedo. Eu era acordado por ela com um tradicional copo de café com leite – que, a bem da verdade, eu não gostava nenhum pouco – e, depois de devidamente acordado, precisava me arrumar, colocar meu uniforme amarelo, o agasalho, escovar os dentes, e ainda esperar das 6h até às 7h, sozinho em casa, pois minha mãe já havia saído. Minha mãe me criou sozinha, sem qualquer auxílio paterno. Foi mãe e pai ao mesmo tempo.3
Minha espera, na verdade, era por uma vizinha, responsável por me levar até o ponto de ônibus onde passava o transporte escolar disponibilizado pela prefeitura, que além de alunos de escolas municipais, também levava alunos dos CIEPs. O transporte escolar era gratuito para qualquer criança uniformizada, ou que portasse um passe escolar, durante o Governo Brizola, mas era mais seguro ir com o ônibus escolar, pois os ônibus de linhas comerciais se limitavam a deixar os alunos/passageiros nos pontos, e não já dentro da escola, como fazia o ônibus que me levava.
O ônibus chegava ao CIEP antes das 8h. E logo nos era servido um café da manhã com pão fresco, café com leite, ou leite puro, iogurte, frutas frescas e suco natural. Uma das grandes preocupações do projeto educacional dos CIEPs era garantir que todas as crianças tivessem iguais condições de aprendizagem dentro das salas de aula, e melhorar o padrão nutricional era fundamental para isso.
Íamos enfim para as salas de aula. Além das aulas regulares (português, matemática, história, geografia, ciências, educação artística – onde todo o material didático era integralmente gratuito), tínhamos recreação em áreas de apoio, atividades na biblioteca – que também servia à comunidade – ginástica na quadra coberta, que era um salão polivalente que também era utilizado para shows e apresentações culturais para todo o bairro em volta do CIEP. No primeiro intervalo principal, uma refeição completa e que garantia todos os nutrientes necessários para o desenvolvimento de uma criança – ao todo eram 3 refeições altamente nutritivas durante o dia – e ainda um banho diário antes de irmos embora. Havia também atendimento médico preventivo, por meio de dentistas, nutricionista, oftalmologistas, e psicólogos.
Lembro ainda que no próprio prédio do CIEP viviam cerca de 20 crianças em condições de extrema pobreza – em seu projeto original, cada CIEP deveria abrigar até 12 meninas e 12 meninos abandonados e que estivessem em situação de risco e vulnerabilidade. Elas frequentavam as aulas durante o dia, e dormiam na escola durante a noite.
Esta última grande característica dos CIEPs, receber crianças em situação de extrema pobreza, ajudou a fomentar um preconceito mesquinho disseminado, seja pelos velhos inimigos políticos de Brizola e Darcy, seja pela elite e a classe média que viam nesta revolução pretendida no Rio de Janeiro uma grande ameaça à manutenção de seus privilégios de classe. Os “brizolões” eram classificados por estas pessoas como “escolas de favelados”. Tudo foi feito para boicotar a implementação dos CIEPS, uma vez implementados eram constantemente alvo de críticas e difamações. Até mesmo a quantidade de recursos destinados à educação era alvo de críticas da grande imprensa – a Globo tem um incontável acervo de reportagens contra os CIEPS – , dos políticos adversários e da elite. Não era admissível que se destinasse mais de 50% do orçamento de um Estado para a Educação, como era feito por Brizola e o PDT. A elite não o perdoava por estar promovendo uma revolução emancipatória em grande escala popular, e utilizavam o velho espantalho das elites contra qualquer governo popular já constituído neste país: o espantalho do populismo. Qualquer ação direcionada na busca de melhorar as condições de vida dos mais pobres e, neste caso, mais ainda, de causar uma transformação estrutural, é tratado como demagogia e “populismo”. Como se os pobres fossem indignos de receber qualquer política voltada para seus interesses. Este espantalho foi erguido contra Getúlio, contra Jango e também contra Brizola.
Minha mãe me buscava pessoalmente na escola às 17h, quando eu já estava devidamente alimentado e de banho tomado. Principalmente, ela tinha a certeza de que além do aprendizado e desenvolvimento intelectual, dos cuidados com alimentação e saúde, eu voltava para casa com algo muito valioso: a alma preenchida de um senso de dignidade, solidariedade e coletivismo que toda aquela experiência de sociabilidade me proporcionava. Além da segurança de saber que eu ocupava meu tempo longe de qualquer ameaça.
A região onde morava era periférica, e já bastante violenta, mesmo para uma cidade de interior. Eu não tenho a menor dúvida de que se não fosse aquele período longo dentro da escola, por praticamente um dia inteiro, desenvolvendo progressivamente princípios que passei a carregar por todo o resto de minha vida escolar, minha adolescência, e até hoje, não sei se poderia estar aqui tendo a oportunidade de escrever isso à luz de uma razoável consciência crítica desenvolvida, ou se estaria junto da grande maioria das outras crianças que conviveram comigo em meu bairro: preso, morto ou vivendo de forma absurdamente precária.
Portanto, posso dizer que muito do que sou hoje constitui-se como um fruto semeado dentro de um CIEP. Tenho orgulho de ser fruto de uma ideia radical e emancipatória presente como algo inegociável na ideologia do Partido Democrático Trabalhista até os dias de hoje. Sou fruto do sonho de Brizola e Darcy, um sonho de libertação popular, de soberania de um povo que deve crescer para além dos frios índices econômicos, mas que deve se desenvolver de forma digna e verdadeiramente emancipadora pelo único caminho capaz de realmente o libertar: pela educação. Mas sou fruto, principalmente, da força interior de uma mulher que acreditava nas ideias de uma revolução possível, e que, mesmo com todas as dificuldades e preconceitos, baseava-se numa convicção tão poderosa que me faz ter nela a profunda admiração e gratidão de quem o considera a maior brizolista que já conheci.
Felipe Knöller é Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. Trabalha com Tecnologia Assistiva e Acessibilidade voltada para Pessoas Com Deficiência Visual. É filiado ao PDT/SP e membro da Juventude Socialista.
Paulo
19/02/2019 - 23h26
Por mais que se possa criticar Brizola – e a maior crítica é aquela que se faz à sua atuação em 1964, quando ameaçou confrontar e derramar o sangue dos brasileiros, com a resistência do III Exército ao Golpe Militar, coisa que nem Jango ousou fazer -, eu confesso que é um cara de quem eu compraria um carro usado. Sua maior verdade é aquela frase que pronunciou nos idos dos anos 80: “Se quisermos reformar o ensino, no Brasil, é preciso impor aos políticos que matriculem seus filhos na escola pública”…