Assassinato no Extra, que mãos estamos segurando?

Assassinato no Extra: Afinal, que mãos estamos segurando?
Por Guto Alves

Há quase ano eu me debruçava sobre este teclado para perguntar: Quem és tu, Marielle Franco? Questionava-me quem era Marielle diante de seu brutal assassinato, uma execução sumária que até hoje não foi esclarecida. Me doía não saber Marielle de verdade. Me doía no peito pensar nos tetos que nos protegem e nos desalentos que matam Marielles. Por isso, perguntei: quem és tu, Marielle, que morre e me mata um pouco? Quem és tu, que me protegia e eu nunca protegi?

A nefasta morte de Marielle Franco abriu um caminho de dor e de sangue no Brasil. Este sangue, de inocência pisada, corre pelas nossas veias, estas veias abertas de um país que sucumbe em uma nova era que desafia os limites da liberdade. Num país em que Marielle morre, tudo é possível. E cabe nesta impossibilidade toda a gigante inércia de quem se encontra em um profundo estado de depressão cívica.

Esta inércia, que reage perplexa, com lágrimas nos olhos e fraqueza nos braços, permite, se assim posso dizer sem ferir nossos egos de luta, que a morte de Marielle seja apenas um fato que emociona e nos faz bradar gritos de guerra.

Ninguém solta a mão de ninguém, e eu pergunto: mas nas mãos de quem estamos segurando? Desde Marielle lanço sempre a mesma questão: quem és tu, Moa do Katendê? Quem és tu, Dandara? Quem és tu, Quelly da Silva? Por que te mataram e te arrancaram o coração? Quem são vocês treze que foram fuzilados no morro? Quem és tu, “um jovem negro”, que morre a cada 23 minutos no Brasil? Quem és tu, Pedro Henrique Gonzaga, de 25 anos, que foi estrangulado até a morte, diante de sua mãe, por um segurança do supermercado Extra?

Casos como o de Pedro, chocam tanto pela brutalidade do ato como pela consciência que leva um segurança a fazer isso. A consciência do desejo de morte, de destruir algo que talvez não se destrua com a morte.

Ao estrangular um garoto em estado de surto, completamente imobilizado e rendido, a pulsão de morte deste segurança ultrapassa o que entendemos por dar fim a algo. No caso, na agressão que parte deste sujeito num ato impetuoso, o desejo de morte o leva a usar a morte como arma, pois é sabido por ele que certas coisas não se matam, não se aniquilam.

Era esse o desejo de matar: o de matar o que não morre. É por isso que, mesmo aos apelos para que soltasse o rapaz, mesmo estando diante de uma mãe desesperada por ver seu filho morrer e ser incapaz de salvá-lo para além dos gritos de desespero e desamparo, mesmo sabendo que a morte ali seria apenas uma questão de decisão, que ele tinha poder sobre a vida daquele jovem, decidiu seguir, estrangulando-o até que lhe faltasse ar por completo. Estava morto o rapaz, mas está mais morto este segurança, assim como estamos mais mortos todos nós.

O Brasil de Bolsonaro e o assassinato de Pedro Henrique

Quando Pedro é assassinado de forma tão brutal e o que se segue é a sequência lógica de desamparo do estado – o segurança responderá em liberdade após pagar fiança e foi acusado de homicídio culposo, quando não há intenção de matar -, quando observa-se que casos como este acontecem a todo o tempo no Brasil, seguindo pela mesma lógica de desamparo do Estado, é preciso repensar como estamos reagindo ao que nos impõem no que chamam de Nova Era.

É preciso abrir os olhos e enxergar além dos números das estatísticas. É preciso segurar nas mãos dessas pessoas de verdade, pois é verdade também que há um genocídio em curso. A probabilidade de que Pedro, caso não tivesse morrido ali, morresse abatido de outra forma é grande. É disso que estamos falando: de destinos selados, de futuros roubados, de vidas eutanasiadas.

O Estado, quando não protege a vida das pessoas, não educa seus cidadãos, não prepara sua polícia e não regula as relações opressoras de trabalho, faz todos viverem numa esteira rumo a uma eutanásia social. O desejo de morte é grande porque atende a uma cadeia alimentar capitalista que só gira se os velhos morrerem sem dar despesa e se os indesejáveis desaparecerem de cena. Por praticidade ou por pura crueldade. Foi assim a história da humanidade e é assim a história que se constrói no Brasil de Bolsonaro.

É impossível ouvir os relatos da morte de Pedro nesta quinta-feira no Rio de Janeiro, cientes de como se deu o estrangulamento de um jovem por um segurança de supermercado, e não pensarmos no período político, como recorte histórico e social, pelo qual o Brasil atravessa seus dias.
Com as instituições ruídas, totalmente sem credibilidade, com governos que possuem projetos claros de extermínio e arrocho da classe trabalhadora, com um estado que estimula a violência e, como produto dela, o escárnio, cenas como a que narrei acima, com Pedro e sua mãe, serão cada vez mais comuns.

Muito já se discutiu sobre o Brasil que elegeu Jair Bolsonaro. Afinal de contas, que Brasil é esse? Não se pode avaliar as variáveis que surgem a esta questão sem levar em conta o que se tinha conhecimento da figura em questão. Jair Bolsonaro, um homem médio, político medíocre e figura apagada no Congresso, ficou conhecido nos anos 2000 quando vieram a público suas declarações criminosas.

Em suas falas, defende a tortura, o assassinato, a posse irrestrita de armas, disse que sua filha foi uma “fraquejada”, ameaçou de morte os ativistas sociais do país, disse que a Ditadura Militar devia ter matado em vez de torturar uma “meia dúzia” que sofreu mutilações, choques, estupros e outros tipos de torturas. Exaltou o Coronel Brilhante Ustra na votação de impeachment de uma mulher que havia sido torturada por ele, um homem que enfiava baratas nas vaginas de mulheres presas.

Este homem, que hoje está a frente de uma das maiores nações do mundo, é o mesmo que se diz abertamente homofóbico no país que mais mata LGBTs. Em seu modelo de gestão, o ódio é propagado através de suas mensagens ao público, o jornalismo é perseguido covardemente e toda e qualquer notícia relacionada ao clã da família Bolsonaro é taxada como Fake News, numa campanha de descrédito da imprensa e supervalorização da comunicação direta do Planalto.

O Brasil que elegeu Bolsonaro sabia de tudo isso. Precisamos entender que Brasil é este: é um Brasil amplamente fascista? É um Brasil altamente manipulado e controlado? É um Brasil que abriu uma válvula de escape para todo o ódio de sua população ?

Entender que Brasil é este é fundamental para reagirmos ao que surge e para que seguremos de fato nas mãos uns dos outros. Quando se constrói um estado que tem como frente ampla o ataque aos Direitos Humanos, um projeto de emburecimento da população e endurecimento do controle sobre a vida privada, tudo isso somado a ascensão das igrejas evangélicas ao poder (com controle de mídia), é lógica a conclusão de que não basta fazer oposição, é preciso um plano de retomada de poder e muita luta para proteger a população.

Não se faz oposição a um governo que passa por cima de todos os princípios de legalidade democrática, que se elegeu por meio de uma campanha mentirosa e cruel, que não respeita a história do país, e que brinca de governar no Planalto. O que se faz frente a isso é lutar. O Brasil se tornou o picadeiro de um circo sem graça, onde tragédias dizimam vidas, morros são fuzilados,

Pedros são assassinados e nós nada fazemos.

Este Brasil de Bolsonaro sombrio se ampara no ódio e tira do armário o que há de pior naqueles que desejam a morte dos indesejáveis. Este Brasil de Bolsonaro é o Brasil da Vale que mata centenas e não é punida. É o Brasil do ministro do meio ambiente que ignora Chico Mendes. É o Brasil da ministra Damares que quer impor sua conduta religiosa a todos. É o Brasil do ministro da educação que diz que educação não é para todos. É o Brasil que despreza a cultura e odeia seus artistas. É o Brasil que faz arminha com as mãos e mata Marielles de mãos dadas com a milícia.

Às mãos
Quando pergunto sobre as mãos que seguramos é justamente porque me questiono se temos de fato estendido nossas mãos enquanto as pessoas morrem. Todos os dias nos comovemos com o genocídio a céu aberto que virou o Rio de Janeiro e outros lugares do Brasil. A cada dia, mais uma perseguição em universidade, uma declaração violenta de algum membro do governo. Ninguém solta a mão de ninguém segue como slogan, a resistência segue como palavra de ordem e o facebook e o twitter seguem como palanques recheados de discursos de como tudo está errado.

Na mesma semana em que ainda choramos as mortes de Brumadinho, a morte dos treze assassinados pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, na mesma semana em que se discute se a Homofobia (que mata) deve ser crime, na mesma semana em que a placa que homenageava Marielle foi emoldurada, Pedro foi estrangulado por tudo isso pelas mãos de um segurança de supermercado.

Ao morrer Pedro estrangulado, penso se alguém lhe segurava as mãos. Ao morrerem tantas pessoas em Brumadinho, penso se alguém lhes seguravam as mãos. Ao ter o coração arrancado, penso se alguém segurava as mãos da travesti Quelly. Ao me ver aqui escrevendo sobre toda esta barbárie, penso nas mãos de quem tenho segurado. De quem? A verdade é que não tenho conseguido segurar nem as minhas próprias. Falta força, falta crença, sobra medo e desamparo. Mas quando vejo as imagens do segurança estrangulando o garoto, faltam palavras, aperta o peito e a mão empunha: é nas mãos dele que eu deveria estar segurando.

TeXto de Guto Alves

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