Por Vitor Vogel
O único fotógrafo que documentou todo o congresso que reconstruiu a UNE reencontrou os estudantes em Salvador 40 anos depois. Dessa vez, sem câmera. Milton Guran pegou o microfone e falou para os universitários, secundaristas e pós-graduandos presentes na plenária final do encontro estudantil que encerrou a 11a Bienal de Arte e Cultura da UNE.
Foi uma fala de memória. Como combatente da democracia que é, Guran escolheu a fotografia como “arma de amor, justiça e conhecimento”, relembrou as incertezas, seu companheiro de cobertura Silvio Tendler e as lutas para reposicionar os sindicatos no campo democrático e popular brasileiro. Revisitou o passado para preparar a ação no presente e, num canto de esperança típico dos calejados pela luta democrática, afirmou que “nós não vamos apenas resistir. (…) Nós vamos avançar. Nós vamos transformar, Nós vamos revolucionar. Aqui reside a maior força do povo brasileiro a diversidade, a combatividade e a generosidade.”
Quatro décadas depois, Guran fez como Rogério Reis, Wania Corredo, Nana Moraes e Dante Gastaldoni quando entregaram o Manifesto da Fotografia Brasileira pela Democracia, Liberdade e Direitos para Fernando Haddad e Manuela D’Avilla. Era um comício na Lapa com um palco de intelectuais e artistas. Deixaram a câmera em casa e se puseram como intelectuais orgânicas(os) que são, estritamente vinculadas(os) ao povo, ao país e ao avanço do processo civilizatório brasileiro.
Os dois fatos são indícios de um mesmo processo. Um movimento que tem relação com o fortalecimento da fotografia brasileira estudado pelas pesquisadoras Ana Mauad, Silvana Louzada e Luciano Gomes. Em artigo publicado na coletânea “Não foi tempo perdido”, organizada por Samantha Viz Quadrat, defendem que a fotografia brasileira se afirmou na década de 1980 a partir de três experiências fundamentais: “as agências de fotografia como iniciativa independente (…), o engajamento dos fotógrafos na criação e recuperação de sindicatos (…) e a elaboração pela Funarte (Fundação Nacional de Arte) de uma política nacional em prol da fotografia”.
As reuniões que delinearam a organização da fotografia na eleição de 2018, a entrega do manifesto da Fotografia pela Democracia para a candidatura do campo democrático e a fala de Guran no plenário dos estudantes são fatos de um processo mais amplo. São balizas do amadurecimento pleno do ciclo de 1980. Com a Fotografia Brasileira afirmada, os agentes do campo se põem como sujeitos conscientes do seu papel como agentes da esfera pública. Entram no processo político brasileiro e posicionam a fotografia como linguagem, um campo articulado que se move nos mares agitados da civilização nos trópicos.
Quarenta anos depois, a questão democrática continua no DNA da fotografia. Mas Guran não está mais sozinho. Os estudantes e suas entidades mantiveram a tradição de ser ponta de lança da sociedade civil e, em 2015, organizaram um singela proposta: uma rede de fotografia estudantil dentro do CUCA da UNE. Em diálogo estreito com a Mídia Ninja, a experiência mais avançada da fotografia brasileira na década de 2010, formularam metodologias diversas de coberturas fotográficas colaborativas. Mal sabiam que isso estruturaria uma rede de fotógrafas, fotógrafos e outras gentes de várias linguagens uma rede de comunicação colaborativa que se nacionalizou e consolidou-se nessa Bienal.
Logo após a fala de Milton, as entidades apresentaram o teaser da convocatória para a mostra Encontro Na Fotografia 19 – Um olhar da juventude sobre o Brasil, a ser realizada entre a Bienal e o Congresso da UNE. Da convocatória surgirá uma exposição fotográfica que percorrerá o país e será exibida nos congressos da UNE, UBES e ANPG. A fotografia, quase sempre tratada como mera ilustração, encontrou nas entidades estudantis um locus libertador de suas potências. Ele é a linguagem estruturante de uma rede colaborativa, militante e engajada com todas as linguagens para documentar a resistência, a luta e a retomada democrática.
Agora são 150 fotógrafas e fotógrafos que saem de Salvador para os quatro cantos do país. São Marias, Vitors, Karlas, Guilhermes, Patrícias, Caios, Brunos, Marianas e Camilas. Se Guran já dava dor de cabeça para a repressão, não há raio X capaz de rastrear a rede digital na qual se organiza essa geração. Não há dobermans suficientes para caçá-los. Não há forças em braços de estivador que parem a Fotografia Brasileira afirmada, consciente de si e engajada na luta democrática. A noite que começou no dia 1º de janeiro de 2019 não durará uma década. A juventude estará com a câmera engatilhada para fotografar o raiar da democracia brasileira. Tal qual Manoel de Barros, acho que a foto vai sair legal.
Vitor Vogel é fotógrafo especializado em documentação cultural e de instituições. Também atua como pesquisador, editor e professor de fotografia. É formado em História na UFF e dentre suas foto documentações mais importantes estão alguns congressos da UNE, UBES, Bienais e passeatas do movimento estudantil. Foi editor na gênese da rede de fotografia do CUCA da UNE. Militou no movimento que gerou o Manifesto da Fotografia pela Democracia. Atualmente, milita no Coletivo Niterói Fotográfico e é o primeiro fotógrafo a presidir o Conselho Municipal de Política Cultural de Niterói.