A substituição do Estado de bem-estar social pelo controle penal da população é relativamente recente nas democracias ocidentais. O sociólogo francês Löic Wacqüant denominou o fenômeno de Estado Penal. Suas características foram primeiramente observadas nos EUA, após o boom do sistema carcerário na passagem dos anos 1980. Após a liberação das privatizações, a população carcerária saltou de algo em torno a 300 mil para mais de 2 milhões em menos de duas décadas. A população negra e pobre, antes monitorada por serviços de assistência social e beneficiadas por programas e direitos, passou a ser criminalizada e controlada majoritariamente por mecanismos repressivos.
Esse fenômeno de larga implicação social – hoje 65 milhões de norte-americanos têm ficha criminal – deu origem a um sem número de estudos analíticos, bases de dados e pesquisas empíricas. Eles fazem ver um movimento coordenado de controle social, econômico e político da população estadunidense a partir do sistema penal, com largo apoio dos meios de comunicação de massa.
Essa união nefasta entre repressão e propaganda não passou despercebida. David Garland, um dos maiores estudiosos do fenômeno, afirma que a união entre mídia e sistema penal possibilita o extermínio em massa da população pobre. Isto se dá pela naturalização de uma cultura do controle expressa, inclusive, em campanhas eleitorais de candidatos populistas.
Convivemos há décadas com um sistema repressivo que funciona sob a lógica do Estado de exceção, violando direitos, executando cidadãos sem processo, criminalizando preferencialmente a população pobre e negra. Ainda assim, o arbítrio repressivo herdeiro de nossas raízes escravocratas e ditatoriais sempre operou à margem da lei. Ele conviveu harmoniosamente com a espada de Dâmocles a punir não as políticas públicas criminosas, mas os agentes de ponta, bodes expiatórios da violência de Estado perpetrada por eles próprios.
A implantação “oficial” de um Estado Penal e de uma cultura do controle passa, portanto, pela legalização, pela incorporação ao sistema jurídico da violência de Estado que sempre operou às claras no país, mas sempre encontrou o inconveniente de ter que fazê-lo ao arrepio da Constituição e da lei. Mesmo sob a Ditadura Empresarial-Militar de 1964, o sistema jurídico teve que operar dentro de determinados critérios. Ele foi forçado a respeitar procedimentos, como os da defesa jurídica, realizada por advogados imbuídos de suas prerrogativas, mesmo em casos mais extremos.
A introdução de um novo paradigma penal e processual penal, capaz de eliminar direitos e legalizar a violência de Estado, não se deu de uma hora para outra. Desde os anos 1990 o país tem, aqui e ali, aprovado um tipo específico de legislação extravagante. Aquela que restringe direitos, afronta cláusulas pétreas, retira o processo penal da esfera do controle público e o canaliza para decisões privadas, como a famigerada negociação da culpa.
Este longo processo de reformas legislativas nos legou uma ampliação sensível do sistema carcerário, sem que isto significasse a diminuição da criminalidade. Entre 1995 e 2014, enquanto a população brasileira cresceu de 155 milhões para 203 milhões (21,74%), a população carcerária aumentou de 148 mil para 622 mil (418,25%). Hoje se percebe que com o aumento exponencial de pessoas presas no Brasil, amplificaram-se as organizações criminosas e os dados da violência urbana. Criminalização e violência crescem juntas, apesar do discurso oposto: quanto maior a repressão, mais aumenta a criminalidade no país. A alternativa óbvia, alargar a rede de proteção cidadã, não emplacou nas últimas eleições.
O papel da Lava-Jato
Mas o verdadeiro ponto de virada, o momento em que se passou a entender possível que um modelo de controle exclusivamente penal da população fosse implantado, legalizando o que a nossa Constituição considera violações de cláusulas pétreas, foi o acontecimento da “Operação Lava-Jato”, a partir de 2014.
O protagonismo político e judicial da “Operação Lava-Jato” foi um balão de ensaio absolutamente bem sucedido no sentido de estabelecer um novo padrão de comportamento das agências encarregadas do controle social via criminalização, como o judiciário, o Ministério Público e as polícias. Estes órgãos passaram a operar inconstitucionalmente em uníssono, num modelo corretamente classificado pelo falecido Ministro do STF Teori Zavascki como “medievalesco”.
Isto porque ao invés da prevalência de um sistema acusatório (onde há a distinção entre investigação, acusação, julgamento e defesa), a operação funcionou de forma inquisitorial: investigação, acusação e juízo procedendo em conjunto e praticamente impedindo o funcionamento regular e produtivo da defesa. O resultado já se sabe: investigações sem critério, acusações sem fundamento, condenações sem prova.
Nesse sentido, é um truísmo classificar o pacote de alterações penais e processuais penais proposto pelo Ministro Sérgio Moro de fascista. E talvez isto seja até mesmo antipático, indicando um enviesamento inconveniente diante de tão grave situação. É fascista, sim, de acordo com quaisquer parâmetros históricos, em especial se comparado o projeto Moro com elementos do Código Penal Fascista italiano ou com a codificação penal e processual penal nazista.
Mas o mais correto seria tentar classificar esse pacote legislativo tecnicamente, segundo os elementos de um Estado Democrático Constitucional de Direito. Aliás, a nossa Constituição se presta exatamente a isto, a permitir verificar as inconstitucionalidades dos Projetos de Lei oferecidos ao Parlamento, como é o caso deste “projeto de lei anticrime” apresentado nesta segunda-feira.
Nesses termos, o “projeto” oferecido pelo Ministro da Justiça contém uma quantidade inédita de inconstitucionalidades, equívocos de técnica legislativa, falta de exposição de motivos, falta de fundamentação em estudos estatísticos (aparenta desconhecer as estatísticas de segurança pública e do sistema de justiça criminal) além de não dar uma resposta sistêmica adequada à questão da violência e deter-se em alterações pontuais do sistema.
Ao violar um sem número de direitos fundamentais, ao ignorar um universo significativo de pesquisas na área da segurança pública, colabora para o aprofundamento da violência, para a hiperpopulação carcerária e, paradoxalmente, para a impunidade. Destaca-se no projeto a carta branca para que os agentes de segurança executem indivíduos e não sejam devidamente responsabilizados.
O pacote criminalizador
O pacote legislativo do Ministério da Justiça fragiliza o papel da justiça criminal, ao ampliar os poderes do Ministério público e restringir direitos de defesa. No projeto, MP e PF se transformam em órgãos quase que politicamente independentes de controle externo ou subordinação Constitucional, tantas são as “prerrogativas” criadas, bem nos moldes de violações já conhecidas da “Operação Lava-Jato”. A título exemplificativo e não exaustivo, seguem algumas aberrações que saltam aos olhos numa leitura inicial:
- A execução provisória da pena por condenação em segunda instância viola o art. 5º, inc. LVII da CF, que garante o direito à presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença condenatória.
- A criação da “legítima defesa da honra”, quando o agente comete excesso de legítima defesa por “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Isto autoriza o feminicídio e demais crimes contra a vida, porque prescinde do elemento objetivo da “injusta agressão, atual ou iminente”. A excludente de ilicitude é ampliada através desses critérios absolutamente subjetivos.
- Os agentes policiais passam a estar em situação de legítima defesa em ambiente de “risco de conflito armado”, ou seja: mesmo não havendo conflito armado, é possível que policiais “abatam” “suspeitos” e permaneçam em situação de legítima defesa. É o que se está chamando de “lei do abate”, ou autorização para execuções sem processo.
- A ampliação de situações: a) que o regime inicial de cumprimento da pena passa a ser fechado, b) que a progressão do regime (de fechado para semi-aberto ou aberto) é dificultada, ou mesmo c) que a progressão é proibida, violando frontalmente o art. 5º, inc, XLVI, que garante a individualização da pena. Tais medidas, além de inconstitucionais, ampliam a superlotação e incham artificialmente o sistema carcerário com indivíduos, por exemplo, que não cometeram crimes violentos.
- É risível a citação expressa de organizações criminosas como “Comando Vermelho” e “Primeiro Comando da Capital” no corpo do texto legal. Uma lei geral, como é o caso da lei penal, deve ser impessoal e não pode se referir a pessoas ou grupos. A primariedade do texto e a falta de técnica legislativa saltam aos olhos também nesse aspecto, para além de palavras genéricas e vagas que pululam em todo o projeto.
- É criada a bizarra autorização para as forças de segurança utilizarem-se diretamente de produtos apreendidos, como armas, carros, etc. As polícias serão estimuladas a se comportar como milícias, realizando ações para se equiparem com instrumentos de serviço não padronizados. Uma porta escancarada para a corrupção.
- A introdução da negociação da culpa e da pena – o plea barganing norte-americano, hoje amplamente criticado –, transfere o poder de gerir ao processo à vontade privada do órgão do Ministério Público. O direito ao devido processo (Art. 5º, inc. LIV) é claramente violado e uma quantidade expressiva de cidadãos inocentes vai preferir assumir culpa a enfrentar um processo cuja condenação pode exceder largamente a pena “oferecida” na barganha.
- A violação expressa do direito constitucional de ampla defesa (Art. 5º, inc. LV) e do sigilo profissional (Art. 5º, incs. XIII e XIV), ao permitir gravações de conversas de réus presos e de réus com advogados (!!!!). Uma excrescência de caráter claramente nazi-fascista (aqui não deu para evitar a adjetivação). Medida ilegal e largamente repetida durante a “Operação Lava-Jato” diga-se de passagem.
- A violação da integridade física e da presunção da inocência de cidadãos sem condenação transitada em julgado, quando se permite coleta de DNA de condenados em primeira instância para criação de banco de dados.
- A criação de forças-tarefas de caráter internacional sem o controle do Ministério da Justiça, e diretamente controladas pelo MP e pela PF, estimulando uma verdadeira autonomia política de órgãos de Estado. Estes devem estar subalternizados ao controle institucional e constitucional, conforme reza o art. 128, parágrafos e e art. 144, parágrafo primeiro.
- Mais grave do que esses fatores, que por si atingem o projeto “anticrime” de morte, se é que ainda prezamos por garantias democráticas, é o estímulo a uma cultura da delação, do denuncismo, do medo, com a legalização do alcagüete secreto.
Este projeto é, em resumo, a generalização legislativa do medievalismo da “Operação Lava-Jato”. É a carta branca para que o Estado brasileiro controle repressivamente a população, inclusive através de seu extermínio, sem sequer estar violando a lei.
Hoje, mais do que nunca, é preciso uma grande mobilização para evitar que este projeto grotesco e autoritário chegue à luz do dia. A comunidade de cidadãos, associações, partidos e juristas deve se manifestar em todos os foros possíveis. O Legislativo deve ser sensibilizado para o desastre social, político e institucional que este projeto representa.
A sua aprovação significará a instalação de um Estado policial, de uma “ditadura constitucional” nos moldes dos mais reacionários projetos políticos jamais pensados. Nada que não tenha sido dito a torto e a direito na campanha presidencial, a despeito dos céticos de plantão que insistiam em classificar como bravatas as violências repetidas ad nauseam pelo então candidato a Presidente. Com este Projeto de Lei, Bolsonaro começa a entregar o que prometeu: um país em que o guarda da esquina tem poder soberano de vida e morte sobre qualquer cidadão.