Em meio ao fogo cruzado da realpolitik, quando o obscurantismo e a violência tomam a forma institucional sem disfarce, a esquerda brasileira tateia por um rumo capaz de unificar a luta social e partidária. A falta de um projeto nacional é gritante e a necessidade de novos quadros é urgente. Nesse cenário, isolar o governo Bolsonaro e organizar a formação intelectual e política dentro dos partidos torna-se uma questão não somente de estratégia, mas de sobrevivência.
Essa é a opinião do novo Presidente da seção Rio de Janeiro da Fundação Maurício Grabois do PCdoB, o Professor Elias Marco Khalil Jabbour. Jabbour é professor no Departamento de Evolução Econômica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), filiado e militante do Partido Comunista do Brasil desde 1991. A sua trajetória de militância o fez passar por todas as instâncias de direção partidária, desde a base até o Comitê Central (Direção Nacional).
Doutor em Geografia Humana pela USP e estudioso do processo de desenvolvimento nacional da China, Jabbour assume o papel de renovar o processo de formação política e teórica da militância do partido no Estado do Rio de Janeiro numa quadra política extremamente complexa. Para falar um pouco desse momento histórico e do papel do intelectual na política, O’Cafezinho entrevistou Jabbour durante a semana, por e-mail. Abaixo a íntegra da entrevista.
Cafezinho – Como você analisa a conjuntura política Brasileira a partir de 2013 para cá? Sofremos realmente uma intervenção nos moldes de uma guerra híbrida ou os paradoxos da Nova República, com sua origem em uma transição consentida pelos militares, se fizeram sentir num momento mais agudo de crise política e econômica?
Jabbour – Acredito que o Brasil sofreu uma violenta intervenção nos moldes de uma guerra híbrida, sem dúvidas. Esse é o elemento principal, a meu ver. Mas existem contradições que devem ser levadas em consideração. A principal delas reside na convivência de uma constituição de caráter socialdemocrata, portanto avançada, com institucionalidades de tipo de neoliberal (tripé macroeconômico, anualidade ao cumprimento de metas de inflação leoninas etc) que não somente paralisaram a capacidade do Estado em responder a demandas de muitas pessoas que foram às ruas entre junho e julho de 2013, como por exemplo a necessidade de investimentos de longo prazo da ordem de algumas centenas de bilhões de reais em infraestruturas urbanas. Nos planos interno e externo pode-se perceber uma objetiva contradição entre forças produtivas x relações de produção.
Cafezinho – Nos últimos sessenta anos pudemos observar com clareza, especialmente nos EUA e nos demais países desenvolvidos a ascensão de Think Tanks vinculados a uma agenda de restrição de direitos e de liberalização econômica. Esses celeiros de ideias encomendadas pelos grandes interesses do capitalismo frutificaram e forjaram políticas públicas da mais variada natureza. Como você avalia a presença desse modelo no Brasil? E como é possível uma reação da esquerda no sentido de produzir contrainformação e contra-hegemonia?
Jabbour – Infelizmente o final da ditadura militar permitiu o assalto ao Estado por elementos de cunho liberal e a própria constituição de 1988 abriu brechas ao aparelhamento, por parte de elementos alienígenas, de instituições inteiras a começar pelo Ministério Público e em seguida todo o judiciário e a Polícia Federal. Na década de 1990 com o fim da URSS e o surgimento do Consenso de Washington a periferia toda do sistema foi bombardeada por propaganda massiva de caráter ultraliberal e as universidades tornaram-se aparelhos de legitimação da nova ordem neoliberal estabelecida. Veja o exemplo da padronização dos critérios de avaliação da Capes e do CNPq, ambas “americanizadas” indutoras do produtivismo e da especialização tornando esse padrão “americanizado” um símbolo da podridão intelectual da era do capitalismo financeirizado. No Brasil nunca mais surgiu, desde minha geração, intelectuais com visão estratégica e de totalidade da estirpe de Ignacio Rangel, Celso Furtado, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda etc. A falta de um projeto nacional aprofunda essa tendência à “americanização” e a onda de mediocridade intelectual que estamos a sentir por nossas bandas.
Sobre as esquerdas, acredito que dificilmente irão reagir enquanto não tomarem para si a tarefa principal de construir uma nação e um grandioso projeto nacional. É bom que se diga a fragmentação da agenda política vem junto com essa “americanização”. É um projeto completo para destruir as subjetividades e a capacidade de as esquerdas pensarem de forma estratégica. Há 40 anos atrás, segundo Darcy Ribeiro, “o Brasil era a maior das latinidades”, “berço de uma nova civilização” e hoje (para amplos setores da esquerda) somos um “país bicolor” que deve se envergonhar de seu passado “escravista” e “patriarcal”, ou seja, um país sem passado e que portanto deve ter seu destino entregue à potências estrangeiras. Sem negar as contradições, mas observando a síntese, a quem interessa isso? Enquanto a esquerda não cair em si, deixando de olhar para o circuito Elizabeth Arden e olhar mais para casos de sucesso como a China Socialista, estaremos a mercê de oportunistas de direita e “esquerda” que se produzem aos montes na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Cafezinho – Temos o exemplo da Fundação Perseu Abramo do PT que, no meu entender, nunca conseguiu furar o bloqueio político do próprio partido e ocupar um lugar de verdadeira direção intelectual, cultural ou política. Os governos do PT não fizeram a disputa ideológica na sociedade civil, ao contrário do que afirmam os ideólogos da direita. Como você imagina que uma Fundação nos moldes da Maurício Grabois pode se transformar numa produtora de agenda política para o próprio partido? Ou outros são os objetivos a alcançar?
Jabbour – A Fundação Maurício Grabois já tem uma agenda intensa que vai além das fronteiras do PCdoB. Não tenho dúvidas que dentre as fundações partidárias a FMG é a que mais discutiu os rumos do país nos últimos 15 anos. Mas temos muitas limitações típicas de uma fundação partidária de uma corrente política sob intenso ataque institucional e financeiro. Mas muita coisa pode e deverá ser feita. Aqui no Rio lançaremos um desafio fraternal às demais fundações partidárias das forças de esquerda em torno da construção de uma agenda política e programática que vá além do “denuncismo” ou do moralismo pequeno-burguês. O Rio de Janeiro precisa ser visto dentro de um amplo contexto estratégico e nos marcos de um projeto nacional de desenvolvimento a ser construído por nossas forças políticas
Cafezinho – Um dos gargalos para a renovação de quadros partidários é a burocratização do partido, a direção de quadros políticos com mandatos e a falta de acesso à cargos de governo que possam forjar novas lideranças. A crise geracional é uma realidade de partidos como o próprio PT. No caso do PSOL e do PCdoB a situação aparentemente é menos grave. Eu gostaria que você avaliasse como a Fundação pode colaborar para o incremento da participação política efetiva da juventude do partido nas instâncias decisórias.
Jabbour – O PCdoB é o partido onde a juventude mais tem espaço de poder e participação. São inúmeros os quadros criados por nossa juventude que hoje estão a dar contribuições relevantes ao país. A União da Juventude Socialista além de ser a maior organização juvenil da América Latina é a maior escola nacional de formação de jovens quadros de esquerda. A FMG terá foco especial na continuidade dessa política de juventude do PCdoB que já mostrou ser correta.
Cafezinho – Estamos entrando num período de clara fragilização institucional e de ascensão do poder militar sobre o governo civil. Como você compreende o futuro dos partidos e da disputa democrática nessas circunstâncias? A clandestinidade é uma possibilidade?
Jabbour – Não vejo a clandestinidade aberta, ainda, como uma possibilidade. Mas vejo que a violência política contra as esquerdas e suas lideranças marcha de forma rápida, o que é preocupante. Ainda assim, não vejo outra saída fora da política para isso. O desafio das esquerdas é o de isolar o governo Bolsonaro de todas as formas. E para isso precisa combinar radicalidade e amplitude. As mais amplas alianças e acordos políticos capazes de isolar o fascismo devem ser procedidas, sem proselitismos e sem “jogar para a torcida”. Quem quer jogar para a torcida nesse momento de radicalização da luta de classes no Brasil, utilizando-se do isolamento e de palavras de ordem “revolucionárias” par agradar liberais radicais de classe média (que se autoproclamam de “esquerda”) devem ser tratados como parte do inimigo principal a ser combatido. O Brasil não é para iniciantes e a luta de classes não é um passeio no parque.