Transcrevemos a seguir nota elaborada por Pedro Santander para o CELAG / Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica em 31 de Outubro de 2018, e traduzida para o português por Fabricio Mendes da Silva.
Para ler no original: https://goo.gl/Byf1jo
“A imprensa mundial dedica todos os dias extensos espaços (de preferência manchetes e colunas de opinião) para ressaltar todas a dificuldades pelas quais atravessa o povo venezuelano. Ao fazê-lo, sempre culpa a gestão do presidente, Nicolás Maduro. Jornalistas, escritores de opinião, cantores, atores, acadêmicos e políticos opinam com fruição nos principais veículos de comunicação sobre a Venezuela. Mas essa obsessão midiática com o país caribenho sempre oculta uma variável chave para qualquer análise minimamente rigorosa: o bloqueio.
Como tem ocorrido por décadas com Cuba, se julga e se critica o processo político e a situação venezuelana como se não existisse essa importante variável. Não é novidade que um país cujo governo tente fazer uma política interna e externa de maneira independente e que, ademais, pretenda uma crítica ao sistema capitalista seja brutalmente bloqueado. Ocorre com Cuba há mais de 50 anos. Ocorreu com Salvador Allende que, desde o início de seu mandato, teve que lidar com um bloqueio econômico internacional que impulsionou o congelamento das vendas de cobre no exterior. De fato, em seu discurso de dezembro de 1972 perante a ONU, Allende denunciou ‘o bloqueio financeiro e econômico exercido pelos Estados Unidos’. O mesmo fez esse ano o presidente Maduro na 73ª Assembleia Geral das Nações Unidas.
A estratégia é a mesma: bloquear política e economicamente os países dissidentes (ou seja, soberanos) e ocultar midiaticamente o bloqueio, assim como suas consequências, ante a opinião pública mundial. É o que passa em Cuba, ocorreu no Chile e o que sucede na Venezuela.
Entretanto, em cada caso o bloqueio adquire expressões e modalidades particulares. Para o caso da Venezuela podemos distinguir quatro: 1) bloqueio através de decretos extraterritoriais; 2) bloqueio através de intermediários; 3) bloqueio mediante agencias de classificação de risco; e 4) bloqueio informativo impulsionado pelas corporações midiáticas.
A primeira modalidade se formalizou em 9 de março de 2015, quando Barack Obama assinou um decreto executivo que declarou a Venezuela como uma ‘ameaça inusual e extraordinária’. Literalmente, este decreto disse: ‘Por meio da presente, informo que emiti uma ordem executiva declarando uma emergência nacional com respeito à ameaça inusual e extraordinária para a segurança nacional e à política exterior dos Estados Unidos representada pela situação na Venezuela’. Essa ordem executiva foi se estendendo no tempo e ampliando seus efeitos. Em maio de 2018, Donald Trump, em resposta à insolência chavista de convocar (uma vez mais) as eleições, decretou sanções do Departamento do Tesouro para proibir a compra, por parte de cidadãos estadunidenses, de qualquer dívida do Governo da Venezuela, incluídas as contas a serem cobradas. Estas sanções incluem o Banco Central e a estatal petroleira PDVSA. Hoje, a Venezuela não pode fazer uso do Dólar como moeda internacional, nem pode negociar nenhuma transação internacional através dessa divisa. Isso implica a impossibilidade de negociar a dívida externa, já que a maioria dos contratos da dívida pertencem à jurisdição estadunidense.
Nessa linha, grande parte do sistema financeiro internacional veio propiciando, nos últimos anos, um esquema de bloqueio para as operações financeiras da Venezuela. Sucederam-se cancelamentos unilaterais de contratos do correspondente bancário do Citibank, Comerzbank, Deutsche Bank, etc. Desde julho de 2017, o agente de pagamentos do bônus emitidos pela PDVSA, Delaware, informou que seu banco correspondente (PNC Bank) nos Estados Unidos se negava a receber fundos provenientes da estatal petroleira.
A segunda forma, o bloqueio mediante intermediários, é uma expressão própria destes tempos. O objetivo é evitar que qualquer intermediário que realiza transações com a Venezuela leve-as a cabo, impedindo toda interação e relacionamento da Venezuela com empresas dos Estados Unidos. E não só desse lugar: o Novo Banco (Portugal) notificou, em agosto de 2017, a impossibilidade de realizar operações em dólares com instituições públicas venezuelanas por bloqueio de intermediários. Se impede, assim, que os intermediários de pagamento atuem, bloqueando qualquer ação de pagamento. Esta modalidade teve consequências humanitárias, tanto que ficaram afetadas, por exemplo, as compras de medicamentos e de alimentos.
Em 2017, 300 mil doses de insulina pagas pelo Estado venezuelano não chegaram ao país porque o Citibank boicotou a compra deste insumo. O banco estadunidense se negou a receber os fundos que a Venezuela estava depositando para pagar a importação deste imenso carregamento, necessário para os pacientes com diabetes. Em consequência, a insulina ficou paralisada em um porto internacional, apesar de existirem os recursos para adquirir o medicamento. A isso se soma que o laboratório colombiano BSN Medical impediu a chegada de um carregamento de primaquina, medicamento usado para tratar a malária. Um total de 23 operações no sistema financeiro internacional foram devolvidas (entre elas 39 milhões de dólares para alimentos, insumos básicos e medicamentos). Finalmente, desde novembro do ano passado, 1,650 bilhão de dólares da Venezuela destinados à compra de alimentos e medicamentos ficaram sequestrados por parte da empresa de serviços financeiros Euroclear, em cumprimento das sanções do Departamento do Tesouro dos EUA.
O bloqueio de intermediários não só afeta as operações financeiras. Também afeta a mobilidade dos venezuelanos nos mais diversos âmbitos. Desde 2014 se foram da Venezuela Air Canada, Tiara Air, Alitalia, Gol, Lufthansa, Latam Airlines, Aero México, United AirLines, Avianca, Delta Airlines, Aerolíneas Argentinas, etc. É cada vez mais difícil chegar pela via aérea na Venezuela.
Também as agências de viagem se unem ao cerco. Por exemplo, 15 boxeadores venezuelanos não puderam se apresentar no evento classificatório para o Jogos Centro-americanos e do Caribe 2018 (CAC), devido à impossibilidade de chegar a um acordo com as agências, as quais puseram várias limitações, entre elas, o preço da passagem: este passou de 300 a 2.100 dólares por pessoa quando a empresa se inteirou que se tratava do translado da Federação Venezuelana de Boxe. Quando, então, um agente privado ofereceu um voo charter para transportar a equipe, Colômbia e Panamá não autorizaram o uso de seus espaços aéreos, então o México também decidiu se negar a ceder seu espaço para voo. Antes havia ocorrido uma situação similar com a seleção feminina de voleibol. Este ano, a Guatemala negou vistos para a seleção de rugby venezuelana participar do Sulamericano e, também, à seleção nacional de luta para o Campeonato Pan-americano.
Também se bloqueou as expressões culturais: no começo do ano, o banco italiano Intensa Sanpaolo bloqueou os recursos para a participação do pavilhão da Venezuela na XVI Bienal de arquitetura de Veneza. Isso foi classificado como um ‘crime cultural’ pelo Ministro Ernesto Villegas que conseguiu, depois de árduas negociações e denúncias, romper esse cerco.
E não só vemos travas para que manifestações culturais e esportivas venezuelanas saiam para o exterior e representem seu país, posto que o boicote também opera de modo inverso: artistas e esportistas de outros países se negam a ir à Venezuela e, com autoconfiança, falam sobre o governo venezuelano e do chavismo. Talvez Miguel Bosé e Jaime Bayly são os exemplos mais grotescos nesse sentido. Este boicote cultural e esportivo é muito efetivo no momento de incidir na opinião pública mundial e uma poderosa ferramenta para a construção de um sentido comum negativo para Venezuela, devido à popularidade de gente como Miguel Bosé, Alejandro Sanz, Kevin Spacey, Gloria Stefan ou Francisco Cervelli (receptor dos Pittsburg Pirates) que disseminam propaganda negativa, em um contexto de bloqueio multidimensional.
A terceira modalidade se expressa por meio da arbitrária e injusta classificação de risco que produzem as agências. O Risco País (RP) outorgado pelas agências de classificação é improcedente se observamos o cumprimento da Venezuela com o pagamento da dívida externa. Nos últimos quatros anos a República tem honrado seus compromissos de pagamento em um total de 73,359 bilhões de dólares. Não obstante, o RP continua subindo. Como denuncia o economista Alfredo Serrano, ‘são 32 meses nos últimos 14 anos em que o RP contra Venezuela subiu, apesar do incremento do preço do petróleo. Na atualidade, o RP, dado pelo JP Morgan (EMBI +), se encontra em 4.820 pontos, ou seja, 38 vezes mais do que dão para o Chile, mesmo quando este país tem uma proporção de dívida/PIB similar ao venezuelano. Tudo isso encarece e praticamente impede qualquer possibilidade de obtenção de crédito’.
Estes três bloqueios estão tingidos de cinismo e paradoxos: enquanto que, por um lado, a imprensa mundial denuncia ‘fome e crise humanitária’ na Venezuela, por outro, em ação coordenada, países e instituições pró-estadunidenses bloqueiam o ingresso de medicamentos e alimentos no país. Enquanto o Grupo de Lima, Estados Unidos e a União Europeia mostram consternação pela imigração venezuelana, as linhas aéreas desses mesmos países abandonam o território. E, mesmo cumprindo com os pagamentos, aumenta o risco país.
É uma absurda inversão da realidade. Entretanto, por muito absurda que seja, se sustenta ideologicamente graças à quarta modalidade de bloqueio: o midiático. Este bloqueio também é muito paradoxal, pois a Venezuela é o país de que mais falam os meios de comunicação das corporações internacionais. Se trata, pois, de um ‘bloqueio ruidoso’, diferente, por exemplo, do bloqueio silencioso que há a respeito de Guantánamo, dos massacres no Iêmen e Palestina ou dos constantes assassinatos de jornalistas no México. Pelo contrário, com a Venezuela há abundância informativa, continuidade da agenda de escândalo e banquete verborrágico.
Efetivamente, durante o ano de 2017, sobre uma amostra de 90 meios de comunicação estadunidenses, se contabilizaram 3.880 notícias negativas sobre a Venezuela, quer dizer, uma média diária de 11, encabeçadas pela Bloomberg e o Miami Herald. Enquanto as agências Reuters e AFP juntas reúnem 91% das notícias negativas. Por sua vez, o diário El País da Espanha mencionou a Venezuela em, pasmem, 249 das 365 edições de 2017, quase todos os dias e sempre negativamente. E se isso parece exagero, falta o adjetivo adequado para qualificar a cadeia alemã Deutsche Welle (DW): essa publicou 630 notícias sobre o presidente Maduro, quase 2 diárias! Para o caso da imprensa latino-americana são os meios do México, Colômbia e Chile (quer dizer, os principais integrantes da Aliança do Pacífico), os que mais e com menor rigor jornalístico informam: 4.200 notícias negativas apareceram no México em 2017, 3.188 na Colômbia e 3.133 no Chile.
NENHUMA MENÇÃO AO BLOQUEIO!!!
O cerco midiático opera gerando imenso ruído e, dessa vez, invisibilizando tanto o bloqueio como o povo chavista. Ambos não existem nos meios das corporações e, ao não existir, a opinião pública mundial, que majoritariamente acessa a informação sobre a Venezuela através da agenda informativa hegemônica, é inclinada a formar uma visão tendenciosa da realidade.
Essa é a formula do bloqueio atual, impulsionado pela política externa dos Estados Unidos contra os países periféricos que, como a Venezuela, buscam construir com soberania seus próprios caminhos. Podemos ver uma continuidade com os casos de Cuba e Chile durante o século XX, mas também vemos traços característicos do século XXI e desta etapa do imperialismo.”