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Um espectro ronda o Planalto
Por Marcio Sotelo Felippe
Milícias são grupos formadas por policiais e ex-policiais que atuam nas comunidades carentes do Rio de Janeiro. Movimentam fortunas cobrando proteção contra o tráfico, serviços clandestinos de gás, assinatura de TV, energia. Matam se necessário para os negócios e também prestam serviços como assassinos de aluguel.
A investigação sobre a morte de Marielle Franco está apontando para uma das mais poderosas milícias do Rio de Janeiro, o Escritório do Crime, chefiada pelo ex-PM Adriano Magalhães Nóbrega. Seis testemunhas afirmaram no inquérito que Nóbrega é o assassino de Marielle.
A mulher e a mãe de Nóbrega eram lotadas no gabinete de Flávio Bolsonaro. Apesar de ser o responsável óbvio pela sua equipe de trabalho, o hoje senador diz que não tem nada a ver com isso e que elas foram indicadas por Fabrício Queiroz, seu motorista.
Queiroz, cujas movimentações financeiras atípicas (1,2 milhão de reais) chamaram a atenção do Coaf, depositou 24 mil na conta de Michelle Bolsonaro. O presidente disse que era apenas um empréstimo e imaginou que seria uma boa defesa acrescentar que Queiroz é um antigo conhecido e serviu sob seu comando na Brigada de Paraquedistas já em 1984.
A mãe e a mulher de Nóbrega depositaram cerca de 100 mil reais na conta de Queiroz. Essa investigação está suspensa por liminar do ministro Fux, à revelia da jurisprudência recentemente consolidada do STF.
Já há o suficiente para um PowerPoint, sem adiantar conclusões ou “convicções”, mas certamente útil para orientar investigações. Temos, afinal de contas, o precedente do PowerPoint de Dallagnol.
Vamos recordar aquele, que será o nosso modelo. No círculo central estava Lula. Outros círculos à volta apontavam para o ex-presidente preenchidos com dizeres como “reação de Lula”, “depoimentos”, “petrolão + propinocracia”, “poder de decisão”, “pessoas próximas da Lava Jato”, “mensalão”, “José Dirceu”, “enriquecimento ilícito”, “expressividade” etc.
Neste, colocaremos no círculo central Jair Bolsonaro. Nos círculos em volta, apontando para o presidente, teríamos os círculos “Queiroz, acusado de dez homicídios e amigo de Bolsonaro desde 1984”; “depósito de 24 mil na conta de Michelle Bolsonaro feito por Queiroz”; “ligação de Queiroz com Nóbrega, apontado como assassino de Marielle”; “mãe e esposa de Nóbrega lotadas no gabinete de Flávio Bolsonaro, supostamente indicadas por Queiroz”; “movimentação financeira de Queiroz de 1,2 milhão”; “defesa de Jair Bolsonaro das milícias e grupos de extermínio em 2003”; “defesa de Flávio Bolsonaro de legalização das milícias em 2007”; “Flávio Bolsonaro ultraja a memória de Patrícia Acioli, juíza assassinada por milicianos”; “defesa das milícias por Jair Bolsonaro na campanha de 2018”; “depósitos em favor de Queiroz feitos na agência Itaú situada em frente ao restaurante da mãe de Nóbrega”; “homenagem de Flávio Bolsonaro a Nóbrega na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro”; “Flávio Bolsonaro vota contra homenagem a Marielle na Assembleia Legislativa”; “Flávio Bolsonaro movimenta 4,6 milhões de reais em transações com imóveis”; “Queiroz se esconde na casa de Nóbrega em Rio das Pedras, centro das operações do milícia Escritório do Crime”.
Outros círculos podem ainda ser incluídos. Imagens captadas por câmaras dos caixas eletrônicos usados para depósitos em favor de Queiroz, já em poder do Ministério Público do Rio de Janeiro mas ainda não reveladas.
Poderíamos também colocar mais um círculo – talvez colorido de verde e amarelo – para a proposta do Banco Central de aumentar para 50 mil reais o piso do Coaf de acompanhamento de movimentações financeiras e tirar da lista de monitoramento obrigatório parentes de políticos.
O PowerPoint de Dallagnol, recheado de expressões subjetivas, “reação de Lula”, ou patéticas trivialidades como “poder de decisão”, era risível. Ao fim e ao cabo, Lula foi condenado por uma alegada propina de cerca de três milhões de reais, aplicados em um apartamento mequetrefe no Guarujá, em um contrato de três bilhões de reais. Lula deveria ganhar um registro no livro de recordes como o corrupto mais inepto do mundo.
Para o que nos conduziria o PowerPoint de Jair Bolsonaro? Talvez pudesse explicar como Jair Bolsonaro e seus filhos são donos de 13 imóveis avaliados em 15 milhões de reais, como recentemente Flávio Bolsonaro negociou 19 imóveis, como possuem diversos carros, jet-ski e 1,7 milhão em investimentos financeiros, sem outra fonte de renda a não ser os salários de deputados. Em 1988, Jair Bolsonaro era proprietário de um Fiat, uma moto e dois lotes em Rezende.
Parece que “rachadinha”, prática em que deputados se apropriam de salários de assessores, não dá conta de explicar isso. Se o PowerPoint de Dallagnol especulou ao absurdo a alegada corrupção de Lula, um PowerPoint sobre Jair Bolsonaro e seu clã seria bem mais razoável para testar a hipótese de a família ser o braço político de uma milícia.
E se a milícia matou Marielle, o seu espectro ronda o Palácio do Planalto tal como o espectro do pai de Hamlet rondava o Castelo de Elsinore.
Praticamente todos estes fatos estavam à disposição para qualquer repórter investigativo antes das eleições. As movimentações suspeitas de Queiroz eram de conhecimento do Coaf a dez dias das eleições. O patrimônio imobiliário da família Bolsonaro podia ser levantado de qualquer computador por uma pequena taxa no site Central de Registradores. Os vínculos entre os membros do clã e as milícias, a defesa política delas, eram fatos públicos. Mas a grande imprensa, seus cínicos colunistas e editoriais, apresentavam o capitão como alguém que podia ser no máximo um extremista que, afinal de contas, disputava com outro extremista. “Normalizou” um indivíduo cuja desqualificação era absurdamente escancarada e que, ao quase ser expulso do Exército, teve sob suspeita sua sanidade mental.
Isto tudo não emerge neste momento por causa de um surto ético em defesa da República. Emerge no momento em que vai se tornando clara a inadequação de Jair Bolsonaro para o cargo de Presidente da República para os verdadeiros donos do poder – os grandes grupos de comunicação, banqueiros, empresários – pondo em risco o projeto executado a partir do impeachment de Dilma Rousseff.
Se conseguiram fazer de um deputado obscuro – incapaz de, durante 20 anos, dizer qualquer coisa além de bravatas e xingamentos a minorias, apologia a tortura; misógino, racista, homofóbico, notório defensor de grupos de extermínios e das milícias – presidente da República, e em pouco menos do que 30 dias o colocar na iminência de ser apeado do poder, eles estão podendo tudo. E nós nada.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP